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O drama da sangria de quadros
2014-11-24
Médicos, engenheiros, arquitetos, pilotos e enfermeiros: a formação deles custa muito dinheiro ao país, mas partem para enriquecer outras economias. As razões, as causas e as consequências

Rita e Filipe foram para Berlim. Luís rumou a Essen. Paulo instalou-se em Londres com a mulher e os dois filhos. Ângelo chegou há uns meses a Liverpool e já pensa em mudar de poiso. Ricardo levou a família para o Qatar e Júlio para a Suíça. Filipe está em Moçambique, Miguel em Angola, Lara na Austrália, João na Alemanha. Como eles há outros, muitos outros, que, nos últimos anos, deixaram o País para tentar a vida noutras paragens. A VISÃO escolheu seguir o rasto de arquitetos, engenheiros, médicos, enfermeiros e pilotos e perceber porque pegaram na trouxa e zarparam.
Tudo começou em 2008. Terminada a Expo'98 e efetuada a final do Euro 2004, a crise abateu-se sobre a construção, um setor que gera 500 mil empregos diretos. Arquitetos sentiram-lhe logo os efeitos. "Não havia obras suficientes para colmatar o crescimento da profissão", que vira nascer dezenas de cursos desde os anos 90, explica o presidente da Ordem dos Arquitetos João Santa-Rita. Algumas engenharias também foram afetadas. "Em civil, por exemplo, havia pleno emprego. Desde a crise do subprime, a situação tem-se degradado de ano para ano", refere o bastonário dos Engenheiros, Carlos Matias Ramos. Milhares de pequenos construtores - de serralharia, caixilharias, ar condicionado, materiais - foram à falência. Quando a troika chegou, a crise já ia longa, neste setor.

Em finais de 2011, o Governo (primeiro o secretário de Estado da Juventude e Desporto, Alexandre Mestre, depois ministro-adjunto, Miguel Relvas, e, por fim, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho) começou a incentivar os portugueses a emigrarem. Mas já um grande número tinha saído do País. Muitos para o Reino Unido, principal destino da emigração portuguesa. Outros para a Suíça, a Alemanha e Espanha.

Segundo o relatório estatístico de 2014, do Observatório da Emigração, a emigração portuguesa é cada vez mais europeia. E mais qualificada que no passado. Apesar de não representarem mais do que 10%, é de destacar que o número de emigrantes lusos com ensino superior quase duplicou. O Reino Unido é "não só o principal destino da emigração em curso, como o mais importante polo de atração dos emigrantes portugueses qualificados".

O fim do 'El Dorado'

Em 2010, a revista International Living considerava Portugal o 21.º melhor país do mundo para viver (à frente do Reino Unido, Mónaco, Suécia, ou Japão). Nessa altura, o índice de bem-estar (realizado pelo Instituto Nacional de Estatística) não parava de aumentar. Mas rapidamente se esfumou o El Dorado. O desemprego disparou. A vulnerabilidade económica acentuou-se. A desesperança instalou-se.

Vieram os cortes nos salários, nas horas extraordinárias, o aumento de impostos. Na Saúde, passou a sentir-se falta de pessoal e de material. "Ser médico, hoje, em Portugal, é uma aventura muito difícil", diz o bastonário, José Manuel Silva. Médicos e enfermeiros começam a queixar-se de serem maltratados. E pedem reformas antecipadas ou saem para o privado. Outros, emigram.

O desencanto alastrou. Hoje, 70% a 80% dos portugueses estariam dispostos a aceitar uma oferta de emprego no estrangeiro, segundo o relatório Decoding Global Talent, elaborado pelo Boston Consulting Group e divulgado no mês passado.

Lá fora, vislumbram-se saídas profissionais, mas também estímulos, motivações, perspetivas de futuro. Enquanto o País fechava as portas, o estrangeiro apresentava-se como uma janela bem aberta. E por ela passaram, no ano passado, quase 128 mil pessoas.

Ir para fora, lá fora

Num inquérito recente a 900 internos, 65% consideravam a hipótese de emigrar. "É investimento feito que vai para o lixo. É exportação a custo zero. E os hospitais, sem internos, fecham", lamenta José Manuel Silva. O hospital Garcia de Orta, em Almada, tem vindo a publicar anúncios no jornal, para "admissão urgente" de médicos de várias especialidades.

Estima-se que formar um médico custe cerca de 100 mil euros. A especialização são mais €400 mil a €500 mil. A seguir, vêm os "problemas de organização e de distribuição, o estímulo para saída para o setor privado, as horas extraordinárias que deixaram de compensar, o rendimento no público [€8 limpos, à hora]", elenca José Manuel Silva, para quem é clara a "filosofia de esvaziamento do Serviço Nacional de Saúde". E o resultado não lhe agrada.

"A falta de médicos no SNS, em algumas especialidades, é notória." A emigração, na classe, adensa-se (ver infografia). "Portugal está a fornecer médicos à Europa". A Alemanha "leva os médicos e as suas famílias". E, no Brasil, Dilma Rousseff anuncia o programa "Mais Especialista", para captar médicos no outro lado do Atlântico. Quem perde, com tudo isto? "O País e os doentes ", garante o bastonário.

Formar um arquiteto custa, ao Estado, cerca de €17 500; um engenheiro fica entre 20 e 25 mil. A saída de cada um, como diz José Manuel Silva, "é investimento feito que vai para o lixo" e, segundo as Ordens, terá grande impacto no futuro.

A formação dos pilotos já é um caso diferente. Custa €80 mil a 100 mil euros, mas é paga pelos próprios. A saída de pilotos da TAP pode não ser dramática, em termos de investimento, mas traz consigo outras sensibilidades. Em 30 anos, praticamente não houve saídas voluntárias de pilotos da TAP. O fenómeno, que começou em 2011, deve-se ao crescimento repentino das companhias do Médio Oriente e à sua necessidade de contratar pilotos, explica o porta-voz da TAP, António Monteiro. Jaime Prieto, que deixou, terça-feira passada, a presidência do Sindicatos de Pilotos de Aviação Civil, tem outra explicação: os pilotos (e pessoal da manutenção) estão a sair devido ao "mau ambiente laboral, aos salários nada competitivos, e à aplicação da austeridade de forma indevida". A massa salarial da TAP, exemplifica, é a segunda mais baixa da Europa, conforme se verifica numa comparação recente entre 17 companhias pior, só "uma low cost da Hungria." E cada saída tem efeitos desastrosos, diz. "Basta recordar o voo Lisboa-Barcelona do verão. Teve um atraso de três horas, porque não havia um único piloto disponível. O que foi voar estava de férias..."

 

Um País. Que futuro?

A taxa de desemprego tem estado a descer e tanto o Governo como o FMI preveem uma diminuição da ordem de 1,5%, em 2015. Mas, entretanto, o País foi-se esvaziando de quadros. Aos que emigraram, juntam-se os que deixaram a profissão. "Quem não trabalha na sua área de formação sente uma grande frustração", alerta Santa Rita. "Sobretudo num povo de grandes paixões", como o português.

O "número de arquitetos que abandona a profissão já é superior ao que entra. Mas o País precisa de arquitetos para gerir o património, inventariá-lo, mantê-lo, reabilitá-lo, programá-lo...", defende. Na engenharia é a mesma coisa. "Se não tratarmos do corpo, ele degrada-se. O País tem de gerir as infraestruturas que possui", explica Carlos Matias Ramos. E a engenharia está em toda a parte: "Nos arruamentos, nas pontes, no automóvel, no semáforo, nos ténis que usamos, nos sistemas de luz, na água com qualidade, nos telefones ..." Da forma como se apresenta, "o País está a perder, drasticamente, a possibilidade de ter um desenvolvimento económico grande. Um país sem engenharia é um país sem futuro".

É por isso que a Rita, o Ricardo, o Paulo, o Salvador e o Ângelo estão a cuidar do seu. Quantos se seguirão?

 



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