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A carta de um médico que se despede de Portugal
2014-11-12
Centenas de médicos estão a sair do país. Empresas de recrutamento e governos estrangeiros encontram cá o cenário ideal: profissionais bem formados e com condições salariais que conseguem ultrapassar facilmente

Erique Guedes Pinto está de malas feitas. Sexta-feira parte para Inglaterra, onde vai liderar uma equipa de radiologia de intervenção, num hospital do sistema de saúde britânico. Desistiu, finalmente, após uma luta de dois anos para ser contratado como especialista no Hospital Amadora-Sintra. É só o último a pedir certificado à Ordem para ir embora.

«Ao longo de todo este tempo, vim sempre recusando vários contratos internacionais que me foram propostos (...) Mas, infelizmente, já não é possível encontrar mais motivação para continuar num país no qual a medicina está numa total e completa mercantilização», escreve, na carta de «despedida» à Ordem dos Médicos.


Cerca de 200 médicos portugueses emigraram só no primeiro semestre deste ano, uma tendência que tem vindo a acentuar-se, sobretudo entre os jovens especialistas. Lá fora, há empresas e governos muito interessados neles. Portugal é agora uma espécie de paraíso do recrutamento destes profissionais de saúde, como já o era dos enfermeiros. 

«Há países que chegaram à conclusão que é mais rentável contratar médicos já formados do que formar médicos. Os médicos portugueses são muito bem formados e vão para fora ganhar salários 3 a 5 vezes mais altos, em média», explica à TVI24 o bastonário José Manuel Silva. 

Segundo as contas da Ordem dos Médicos, o Serviço Nacional de Saúde vai perder para o estrangeiro pelo menos 400 médicos só este ano. Isto, contando que a tendência apenas se mantém, mas pode ser pior: «Com as campanhas mais recentes, vão emigrar cada vez mais». 

No caso de Erique Guedes Pinto, demorou apenas uns dias a encontrar trabalho no estrangeiro. Na passada sexta-feira, a Administração Central do Sistema de Saúde deu o aval ao Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca para que o dispensasse. Uma semana depois, vai-se embora o único especialista em radiologia de intervenção desta unidade. «Desmantelaram completamente esta equipa por razões financeiras, mas até poupavam dinheiro ficando com este médico, porque ele fazia procedimentos em ambulatório, evitando que os doentes tivessem de ser operados», lamenta José Manuel Silva. 

Os médicos que estão a emigrar são de todas as especialidades. Normalmente, estão no ativo e são sobretudo jovens especialistas, que têm um «salário extraordinariamente baixo, de cerca de 8 euros limpos à hora». «Este é um salário que não retribui minimamente o trabalho médico», constata José Manuel Silva.  

Os anúncios de empresas de recrutamento no site da Ordem mostram que o dinheiro, lá fora, não é um problema. Entre esta segunda e terça-feira, representantes de hospitais da Arábia Saudita estiveram em Portugal a entrevistar algumas dezenas dos cerca de 200 candidatos com um grande trunfo: um salário entre os 8 e os 11 mil euros por mês, «livre de impostos», com alojamento garantido para a família, seguro de saúde familiar, «até 44 dias de férias», viagens pagas e mais «prémios». Mas não são os únicos interessados: 

Os sauditas procuram 30 médicos, de 15 especialidades diferentes, para trabalhar em vários países da península arábica. Já na Europa, são vários os países atentos aos profissionais de saúde portugueses. França e Irlanda oferecem entre 10 mil a 15 mil euros brutos por mês. Na Alemanha, há anúncios de cerca de 5 mil euros por mês. Segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, Suíça, Dinamarca e Noruega também estão a duplicar, no mínimo, o salário de um médico português em início de carreira. 

Há hospitais a contratar diretamente, mas o negócio faz-se sobretudo através de empresas de recrutamento. «Não temos conhecimento de nenhum problema com este processo. O feedback de quem está no estrangeiro é extremamente positivo. Os médicos dizem muitas vezes que, nesses países, o seu trabalho é respeitado», conta José Manuel Silva. 
  
Segundo fonte da empresa belga Moving People, que está a recrutar médicos portugueses, há «centenas de candidaturas» para médicos de família em França. Recorde-se que, em Portugal, há cerca de 1,1 milhões de utentes sem médico de família. «Estamos a formar acima das necessidades do país, mas depois temos falta de médicos», denuncia o bastonário. 

Na Bélgica, dois especialistas portugueses já estão a trabalhar e mais 15 serão colocados em 2015. «Estamos em permanência à procura em várias especialidades», completou a mesma fonte da Moving People. 

Já na Irlanda, fonte da Stanwood Medical Services Ltd recusou-se a disponibilizar números, por motivos comerciais. No entanto, garantiu que estão a receber «regularmente» candidaturas de médicos portugueses que querem trabalhar neste país e que há um grande interesse em continuar a recrutar por cá: «O padrão de qualidade dos médicos portugueses é muito alto». 

O Brasil prepara-se para lançar o programa «Mais Especialidades» que, numa primeira fase, tentará atrair só os médicos brasileiros que saíram do país, mas, de acordo com o bastonário, «deverá alargar-se rapidamente aos médicos portugueses, até porque não há a barreira da língua». O salário oferecido será de cerca de 5 mil euros. 

Estas campanhas e o número de médicos a emigrar devem preocupar o ministro da Saúde, que, contudo, não pretende atrair os mais jovens com uma melhoria salarial. «O valor que nós pagamos aos nossos médicos, quer quando acabam a licenciatura, quer quando acabam a especialidade, é do valor mais alto que pagamos a qualquer licenciado em Portugal», defendeu recentemente Paulo Macedo. Só mais à frente na carreira é que o ministro admite «eventuais problemas de remuneração dos médicos». 

O dinheiro pesa, mas não é o único fator de decisão. Segundo José Manuel Silva, os médicos continuam a ter emprego em Portugal, ainda que os concursos sejam «um caos», mas «preferem emigrar para melhores condições de trabalho e, sobretudo, para serem mais bem tratados». « Há uma instabilidade muito grande nos nossos hospitais e criou-se um ambiente favorável à emigração», denuncia. 

Na carta de «despedida» da Ordem dos Médicos, Erique Guedes Pinto lembra que, a trabalhar só com outra médica interna, faziam juntos «cerca de 300 procedimentos anuais». Ganhava 1200 euros líquidos por mês. Diz-se agradecido pela formação que recebeu no Amadora-Sintra, mas vai agora para «um hospital com equipamento de ponta e com projeto organizado nesta área». As palavras antes da emigração são estas:

 «Sim, de certa forma cedo ao desânimo dos muitos colegas com quem trabalho e que já não acreditam que o SNS consiga sair deste buraco em que está a ser empurrado. Mais não consigo fazer. Desisto, estou cansado, desanimado e magoado de tanta falta de consideração humana e profissional (...) Vou claramente contrariado, pois Portugal é o meu país, mas há algo que não se pode nunca deixar vender ou corromper, e esse algo é a alma e a dignidade do médico e o cumprimento do seu dever para com o doente».

 

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