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Between the status of emigrant and the condition of middle-class Canadians
[Entre a condição de emigrante e a condição de canadianos de classe média]
Marta Rosales
Marta Rosales holds a PhD in social and cultural anthropology from the Faculty of Social and Human Sciences at the New University of Lisbon (FCSH-UNL), a master's degree in communication, culture and information technologies and a degree in sociology from ISCTE-IUL. She is a professor in the anthropology department at FCSH-UNL and a researcher at the Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-Iscte). Her main research interests focus on migration, material cultures and contemporary consumption, and media anthropology. She has developed fieldwork in Mozambique, Brazil and Canada.

 

Interview held in Lisbon, on November 8th, 2012, by Cláudia Pereira.  

 

Observatório da Emigração (OEm) - Podemos começar pela pergunta mais comum: como é que o seu percurso pessoal e/ou profissional a conduziu à emigração portuguesa?

Marta Rosales (MR) - Eu acho que fui parar às questões das migrações em um bocadinho por acaso. Eu fiz a licenciatura no ISCTE, em sociologia, e apanhei o último ano em que eram cinco anos com uma monografia final onde trabalhei questões ligadas ao consumo de moda. Na altura não havia ninguém a trabalhar sobre moda - havia até um ligeiro preconceito em relação a esse objecto de estudo, considerado assim mais secundário do ponto de vista académico - e muito menos sobre consumo. Então, a minha tese, que era para ser sobre consumo, acabou por ser uma monografia centrada nas questões da produção, porque o consumo era pensado através da lógica da produção, das marcas, da produção de objectos, ou seja, numa perspectiva muito clássica da cultura material. Foi bom ter feito esse trabalho que não foi bem aquilo que eu queria, porque me chamou a atenção para duas coisas: 1) o facto de essa perspectiva nos dar uma visão limitada da forma como as pessoas actuam sobre a materialidade que não é, em grande medida, produzida por elas nas sociedades contemporâneas, e que eu achava pessimistas aquelas teorias de que a relação das pessoas com as coisas que compravam e com as coisas que consumiam era uma relação comandada pela esfera da produção e que as pessoas eram levadas a fazer o que os produtores queriam que elas fizessem; 2) o facto de que a sociologia, naquela altura, me oferecia poucos instrumentos metodológicos, ao nível das abordagens, para trabalhar objectos tão tipicamente qualitativos como aquele que eu queria trabalhar. Depois fui fazer mestrado em Comunicação e Cultura, porque era um mestrado que, apesar de estar ligado ao departamento de sociologia do ISCTE, era mais abrangente, tinha gente de vários departamentos - ainda tem, penso eu. Voltei a trabalhar esta questão mas, mais uma vez, do ponto de vista teórico, não centrada na relação das pessoas com as coisas e muito centrada na vida social das coisas, nas trajectórias que as coisas percorriam. A tese foi arguida por uma antropóloga aqui da FCSH, que depois me perguntou se eu consideraria fazer doutoramento em antropologia e eu achei que fazia sentido. Vim fazer o doutoramento em antropologia numa área ligada às migrações de elite no contexto colonial e pós-colonial, e por isso eu estudei as migrações de Portugal para Moçambique e o retorno pós-revolução, focando-me na viagem dos objectos que, com essas pessoas, migraram para estes diferentes contextos. Isto é, as trajectórias migratórias, transnacionais, dos objectos que, vindos de Goa, passaram por Moçambique e hoje estão em Lisboa ou que, saindo de Lisboa ou de outras zonas do país, foram para Moçambique e voltaram para cá. O estudo foi muito focado no modo como a cultura material e o desenvolvimento dos seus padrões de consumo e das suas práticas de consumo ao nível doméstico e quotidiano, aquele consumo mais naturalizado, poderia contribuir para a discussão num campo sobre o qual até se sabe bastante aqui em Portugal, o das migrações no contexto colonial. E foi um bocadinho assim que eu cheguei às questões das migrações de portugueses. Isto não é uma migração de portugueses típica, como a que trabalham no vosso Observatório, porque  apesar de algumas pessoas terem nascido em Portugal e de eu ter conseguido trabalhar com elas, e de terem estado em Moçambique e de terem voltado a Portugal e eu ter conseguido trabalhar com elas cá, as de Goa não nasceram e a generalidade dos meus sujeitos nasceu em África (uns em Moçambique e outros na África do Sul e outros no Zimbabué) e só depois veio para cá. Depois de fazer a tese de doutoramento, estava a dar aulas como professora adjunta na Escola de Comunicação, com uma posição relativamente estável. E quando o CRIA foi criado, surgiu a  hipótese de se abrirem concursos para, ao abrigo do compromisso com a ciência, trabalhar nas suas áreas de investigação. Abriu um na área das migrações e eu concorri. Vim para aqui e uma das condições era apresentar um projecto na área das migrações. O que me fez estudar portugueses migrantes foi ter percebido que as migrações portuguesas são heterogéneas e plurais. Apesar destas pessoas que retornam a Portugal não se auto-representarem como migrantes, elas são migrantes também. Elas migraram daqui num momento das suas vidas, ou os seus pais migraram e, neste caso, retornaram. Mas há aqui uma complexidade no processo migratório português que eu achei que valia a pena explorar. Há muita gente entre o processo de colonização e de descolonização que teve a experiência do que é uma migração; uma migração num contexto muito específico, mas uma migração. Se aliarmos toda a migração que se deu na mesma altura no final do antigo regime, há muitas famílias portuguesas tocadas pelo fenómeno da migração. Quando eu vim para aqui há cinco anos, as migrações portuguesas tinham quase desaparecido do mapa da discussão da investigação, andávamos todos muito preocupados com o transnacionalismo e com o multiculturalismo e com a inter-etnicidade e com toda as comunidades migrantes existentes em Portugal. São objectos de estudo que, com a actualidade que tinham e continuam a ter, merecem toda a atenção, mas não havia muita gente a trabalhar migrações portuguesas. Então eu pensei: eu quero continuar a trabalhar migrantes portugueses. E quero trabalhar uma dimensão da migração portuguesa que me permita problematizar esta questão da migração económica, ou seja, a do migrante que migra porque não há mais nenhuma alternativa. Ou então, que tem o futuro condenado, o dele e o das gerações vindouras. Então, eu pensei em trabalhar um grupo de migrantes que está pouco estudado porque está muito bem integrado, que são os migrantes portugueses que vivem na costa Leste do Canadá, sobretudo na área da grande Toronto. Muitos são migrantes que migraram de uma forma controlada, programada pelo estado canadiano, a maior parte deles com origem açoriana que depois criaram uma infra-estrutura, uma rede de apoio que permitiu que muitos outros migrantes fizessem a mesma trajectória de migração.

 

OEm - Isso, na década...?

MR - Na década de 1950 começou a emigração, durante a década de 1960 foi muito intensa, a seguir acalmou um pouco, e depois reanimou, mas já com origem continental no pós-25 de Abril (houve portugueses a alegar perseguição política e a fazer pedidos de exílio, também por perseguição religiosa, e outros). Esteve relativamente estável durante a década de 1980 e 1990 e estava outra vez a aumentar na última vez que estive no terreno, precisamente porque estamos a viver uma crise económica. Neste estudo, o que é que é importante para mim? Para além de, mais uma vez, tentar complexificar este conceito do migrante português e como é que a migração é vivida, pretendo concentrar-me nas trajectórias migratórias de classe média. Nós temos, realmente, uma população que vai integrar a classe trabalhadora pouco escolarizada que trabalha nos serviços e que trabalha na indústria ali na cintura industrial de Toronto, muita gente que vai trabalhar para a construção civil e muita mão-de-obra desqualificada que até se qualificou relativamente já lá e que compõe a grande maioria da população emigrante, mas os meus sujeitos de investigação, as famílias que integram o meu pequeno universo de estudo - fiz uma abordagem intensiva - são famílias da classe média. E são famílias de classe média que vivem numa tensão permanente com a sua condição de emigrantes portugueses - porque a comunidade é expressiva o suficiente para se fazer notar dentro daquele contexto geográfico e cultural - e a sua condição de canadianos da classe média.

 

OEm - E porquê essa tensão?

MR - Em tensão porque a representação dominante sobre a comunidade portuguesa no Canadá é relativamente complicada. Dentro dos indicadores de desenvolvimento das comunidades étnicas no Canadá, os portugueses apresentam valores muito baixos e muito preocupantes, por exemplo, ao nível da violência doméstica, da gravidez adolescente, do abandono precoce da escola - é muito elevado o abandono antes da escolaridade obrigatória ser completada - e um fechamento que eu acho que é muito motivado pela política de multiculturalismo que o Canadá desenvolve, da qual é difícil escapar. O Canadá tem um modelo de multiculturalismo muito desenvolvido com, por exemplo, uma política muito bem estruturada de apoio às produções culturais étnicas, mas nas quais se tem de seguir um guião que dá muito pouca liberdade na forma como se pode trabalhar ou abordar essa questão da etnicidade. Ou seja, a sensação que se tem é que é fácil e é prudente, até, com a relação com as instituições canadianas, manter uma representação relativamente estável e cristalizada da relação com a origem. E isso é bom no sentido em que a comunidade funciona como comunidade, mas é mau para aqueles que conseguem fazer estas trajectórias ascendentes e que depois não se revêem nesta narrativa que consideram limitada e simplista do que é a Portugalidade, e do que é ser-se migrante português, mas também não se querem virar contra ela. Ou seja, há muitas tensões dentro da comunidade. E há, sobretudo, uma tensão velada, que se sente até do ponto de vista cultural, entre migrantes de origem continental e migrantes de origem açoriana, porque os primeiros têm em média, apesar de tudo, índices de capital cultural e económico mais elevados que os outros. E, então, essa tensão cria, nas famílias que eu estudei, uma ambivalência grande, que é, por um lado, identificarem-se como portugueses mas, por outro lado, identificarem-se como canadianos em dimensões que negam, ou aparentemente entram em contradição com aquelas que fazem parte dessa narrativa da Portugalidade que eles consideram limitada. Estas tensões são vividas como, ao nível dos consumos? É muito interessante ver que estas famílias têm uma relação relativamente pacifica com Portugal. Portanto, Portugal não é o sítio que não lhes deu oportunidade; é onde eles não querem viver, mas que visitam amiúde e valorizam em termos patrimoniais. E como é que objectificam isto? Por exemplo, comprando tapetes de Arraiolos originais, os melhores serviços de porcelana da Vista Alegre, as toalhas bordadas à mão, de Viana do Castelo. Ou seja, encontra-se lá o que é, para eles, o melhor da cultura portuguesa, precisamente para tentar trabalhar esta conflitualidade que sentem, esta tensão que sentem no Portugal representado pela sardinha e pelo galo de Barcelos e pelas músicas brejeiras e com a qual eles se sentem desconfortáveis...

 

OEm - Pretendem afirmar o seu estatuto de português, mas distanciando-se...

MR - Exacto. E fazem-no com alguma dificuldade dentro da comunidade portuguesa. São estas tensões de etnicidade, classe, relações com a origem... Porque realmente, se pensarmos com algum cuidado, estes migrantes experimentam o transnacionalismo; os outros não experimentam verdadeiramente, só através do consumo e, mesmo assim, mal.

 

OEm - Não visitam Portugal...

MR - Não só não visitam Portugal, como quando visitam Portugal não o reconhecem... Há muitas pessoas no bairro português de Toronto - é um bairro na Baixa que está a sofrer uma pressão muito grande para a gentrificação porque está muito bem situado - que nunca vieram a Portugal ou vêm pela primeira vez no ano em que se reformam.

 

OEm - Saíram e nunca mais voltaram...

MR - Deixaram o Portugal do antes 25 de Abril, e agora é que estão a pensar em retornar.

 

OEm - Já agora, para relembrar, isso é o seu projecto enquanto investigadora ciência, não é?

MR - É.

 

OEm - Pode relembrar o título?

MR - Portugal Village, que é nome do bairro português de Toronto.

 

OEm - E escolheu essa classe para ter a noção do consumo?

MR - Não escolhi esta classe para ter a noção do consumo. Escolhi esta classe porque, a meu ver, é importante perceber que as migrações portuguesas não são migrações só da classe trabalhadora. Sendo a migração um fenómeno tão estrutural, é importante nós complexificarmos as abordagens às migrações. Mesmo que trabalhemos grupos que são claramente minoritários e não representativos da generalidade das migrações portuguesas. E perceber que as tensões que se sentem, a complexidade que existe e que marca, necessariamente, porque é disruptiva para todas as experiências migratórias na relação com o acolhimento, na gestão da relação com a origem, o desenho do projecto, de integração e nas escolhas que se fazem, é sentida - com gradações e com especificidades, obviamente - pela generalidade de grupos que migram. Ou seja, a experiência da migração é potencialmente disruptiva e traumática e afecta necessariamente a biografia de toda a gente que migra, sejam os que migram por razões económicas e que vêm das franjas mais desprotegidas da sociedade, sejam os que migram numa situação relativamente estável mas onde há um factor, que tem de ser suficientemente forte, que os leva também a optar pela migração. O que eu gostava era de ver se nestas minorias eu encontro linhas passíveis de nos ajudar a descobrir alguns aspectos transversais das migrações portuguesas no geral. Porque às vezes estes pequenos pontos tocam aspectos que apelam à crítica e à releitura e à reestruturação das linhas mais estruturantes. Esta dimensão pareceu-me importante e eu aprendi a dar atenção durante a tese de doutoramento e gostaria de aprofundar aqui. Porque é que a cultural material é importante? Não só porque do ponto de vista teórico faz sentido que as pessoas materializem as suas experiências, porque as pessoas são também a relação que têm com a materialidade, mas porque, concentrando o olhar nas coisas, se tocam dimensões de análise que não emergem no discurso. Então, tem-me parecido até agora uma pista de entrada muito interessante.

 

OEm - E porquê o Canadá?

MR - O Canadá surgiu porque havia várias pessoas do CRIA a trabalharem nesse mesmo terreno.. Então, resolvi que o melhor era concentrar ali a minha atenção. Houve aqui uma coincidência que eu também considero que é muito produtiva do ponto de vista de investigação, com o projecto da Professora Filomena Silvano sobre o programa de televisão "Ethnic Minority Media".

 

OEm - Este projecto ainda continua?

MR - Está em fase de escrita. Eu espero tê-lo concluído para começar a publicar no verão, em Junho, que é quando o meu programa ciência termina.

 

OEm - Quer salientar mais algum aspecto do projecto?

MR - Salientar que os portugueses que estudo vivem em bairros canadianos de classe média, não vivem no bairro português. Também há outros portugueses, mas é onde vivem famílias de muitas origens, como em muitos outros lugares da América do Norte. Portanto, onde não há uma maioria clara de uma etnia determinada. São famílias que vivem a sua relação com a origem de uma forma muito interessante porque, não querendo romper com ela, também não querem reproduzir a dos outros, que é a que está mais presente na representação e no imaginário dos canadianos, que é "os portugueses são as pessoas daquele bairro". E, então, encontram nestes consumos que pensam e que categorizam como consumos da classe média alta, uma forma de tradução do seu posicionamento num contexto que não é o contexto português. E não deixam de ser consumos etnicizados de alguma forma, porque do ponto de vista simbólico a Vista Alegre para os canadianos não é nada. É para o português, não é para um canadiano. Mas também se questiona "será que é significativo para um português da classe trabalhadora? Será que ele reconhece aqui uma marca da Portugalidade, ou não?" Porque o reportório é, realmente, um reportório relativamente duro de cumprir dentro daquelas redes sociais mais etnicizadas.

 

OEm - Em que sentido?

MR - Por exemplo, do ponto de vista dos consumos alimentares, é uma obrigatoriedade a manutenção de práticas alimentares relacionadas com Portugal. É quase impossível, nos primeiros contactos com qualquer família que se vá entrevistar pela primeira vez, ou com quem se vai ter um contacto informal que não passe pela entrevista, que não ofereçam bacalhau, ou cozido. Quando se pergunta às pessoas se elas gostam muito de bacalhau ou de cozido, e se aquilo faz parte da ementa quotidiana delas, elas dizem que sim porque faz parte do reportório, não necessariamente porque achem que é a sua comida preferida. Ou seja, elas acham que é importante manter e reproduzir aquela prática alimentar. E é importante para si, mas é importante sobretudo para os outros, para que os outros percebam que elas continuam a privilegiar estes consumos. Obviamente que nas classes populares oferece-se bacalhau cozido com batatas, nas outras oferece-se um bacalhau espiritual ou bacalhau no forno mais sofisticado. É esperado que se reconheça uma vinculação à origem a partir deste tipo de coisas, por mais que as pessoas também percebam que não conseguem neutralizar um discurso que é um discurso relativamente de costas voltadas para Portugal, porque nenhuma daquelas pessoas pensa em voltar a Portugal e todas aquelas pessoas têm claro para si que a vida no seu país é uma vida mais complexa, mais difícil e com mais obstáculos do que a vida que elas têm no Canadá. Não estou a ver nenhuma perspectiva de retorno... Há uma representação relativamente idealizada nas segundas gerações, sobretudo destas classes médias que vêm cá e vão para o Algarve ou vão para Tróia e estão ali... e aquilo é tudo muito chique e a água é muito quentinha e a comida é muito boa e idealmente pensam "porque é que a gente há-de estar aqui com neve até ao joelho e não há-de estar a viver ali?" Mas nas gerações produtivas, naquelas que são gerações dominantes neste momento, não há qualquer vontade de regressar. Nem sequer ao nível da reforma, porque a protecção social que o estado canadiano oferece aos reformados é incomparavelmente melhor do que aquela que o estado português, sobretudo agora, pode oferecer.

 

OEm - E não há vaivém, ou seja, pessoas que passam temporadas lá e em Portugal?

MR - Há, mas numa franja muito pequena de tempo, que é aquela em que os filhos saíram para a universidade e ainda não casaram e não há netos, porque a partir do momento em que há netos, isso acaba-se. Aí, a questão da Portugalidade emerge outra vez, ou seja, a relação com a 1ª infância é muito vivida pelo género feminino como é vivida cá, com muita intensidade. As crianças são centrais nas vidas das famílias e o que as senhoras me dizem, sobretudo elas, é "eu não aguento estar longe dos meus netos e vou lá em Agosto mas depois venho-me embora, cheia de saudades dos meus netos". Agora, há pessoas que não têm filhos casados e estão cá mais tempo, há viúvos e solteiros que estão cá mais tempo... Mas a regra é essa.

 

OEm - Entretanto, tem um novo projecto, não é?

MR - Sim. O projecto chama-se "Travessias do Atlântico: materialidade, movimentos contemporâneos e políticas de pertença", é financiado pela FCT por três anos e arrancou em Maio, é o primeiro que vou coordenar e envolve o CRIA e quatro centros de investigação em quatro universidades no Brasil. É um projecto centrado nos impactos da crise nas migrações transatlânticas entre Portugal e o Brasil (nos dois sentidos), contemporâneas. Vai ter dois bolseiros lá e tem quatro investigadores séniores, de cada uma destas unidades de investigação, envolvidos no projecto. E cá tem três investigadores séniores e vai ter dois bolseiros de investigação. Está agora o edital aberto para os bolseiros. Este projecto tende a problematizar uma dimensão nas migrações que me parece que também tem de ser problematizada, que é a da noção de contexto de origem e a de contexto de recepção. Durante muito tempo, a migração era um fenómeno que implicava portugueses; depois deixou de ser um fenómeno que implicava portugueses e passou a ser um fenómeno que não implicava portugueses porque recebíamos imigrantes. Agora, de repente, começámos a emigrar outra vez e passámos a ser um povo migrante e não um povo receptor. E eu quero olhar para estes fluxos em simultâneo para problematizar este contexto de recepção e este contexto de acolhimento. Porque nós temos posicionamentos diferentes face aos imigrantes na sociedade portuguesa e aos emigrantes. Nós temos uma representação positiva dos emigrantes. São bem vistos porque são gente esforçada e trabalhadora que contribui com divisas e que luta, se integra muito bem, que é muito pacífica... Depois temos uma representação dos imigrantes que, apesar de nos vermos como não racistas e não xenófobos, faz com que vejamos o brasileiro do café como "o brasileiro" e não o João do café. E a Irina da lavandaria não é a Irina, é "a russa" ou "a ucraniana" ou "a de Leste". Mais uma vez vamos usar as coisas a viajar pelo Atlântico para analisar estas migrações transatlânticas. E, mais uma vez também, vamos usar esta oportunidade que a crise económica está a criar, do ponto de vista analítico, que é problematizar o conceito ou a representação dominante do migrante como aquela pessoa destituída de capitais, com muitas dificuldades de integração e que migra porque já não tem mais nenhuma saída dentro do seu contexto de origem, porque a maior parte das pessoas que migram, migrarão não porque aqui se encontram destituídas de oportunidade, mas porque as oportunidades aqui não lhes permitem manter os seus padrões de consumo. Lá está a cultura material que elas pensam que, eventualmente, poderão replicar ou reproduzir num contexto mais positivo como é o Brasil. E é neste quadro que nós vamos desenvolver o projecto. Estamos agora na fase de análise de dados de saída, estamos a tentar perceber a força dos fluxos migratórios para o Brasil, porque dos brasileiros para cá nós sabemos - são muito intensos, apesar de agora estarem a abrandar; estamos a olhar com muito interesse para o retorno de brasileiros ao Brasil, também como reflexo desta crise; e para os discursos sobre Portugal e a Portugalidade e a experiência de vida migrante em Portugal nos migrantes brasileiros que estão a retornar ao Brasil. A ideia, mais uma vez, é complexificar as abordagens às migrações contemporâneas. Precisávamos de alguém a olhar para África neste momento. E para a Austrália, também. Fizemos há uns anos um estudo patrocinado pelo ACIDI sobre jovens migrantes em Portugal. Já havia crise, mas não com a intensidade com que a estamos a viver agora. Estudámos miúdos de origem caboverdiana e angolana, todos nascidos em Portugal, e diziam uma coisa muito interessante - numa altura em que não estávamos na situação de crise de hoje - , que era: "sabe o que é que vai acontecer? Nós vamo-nos safar melhor que os tugas, sabe porquê? Nós vamos para Angola porque temos passaporte angolano e passamos à frente deles todos". Miúdos pequeninos! Os miúdos que vêm de uma situação claramente desfavorecida, a quem nem a nacionalidade portuguesa é reconhecida. Os caboverdianos diziam "se isto aqui não der, eu tenho uma tia em Manchester", ou "tenho uma tia em Roterdão, os tugas não têm". Realmente, isto é um capital de estruturação de possíveis saídas, de possíveis oportunidades de vida, caso o contexto se desintegre, e é isso que está a acontecer neste momento.

 

OEm - As abordagens de que falou têm sempre o mesmo fio condutor, o do consumo para resolver negociação de tensões...

MR - A cultura material como expressão, mas também como produção de si. Ou seja, a perspectiva a partir da qual nós trabalhamos é a de que as coisas servem para nós "falarmos", falam por nós, expressam coisas, falam da nossa nacionalidade, falam do nosso género, falam dos nossos gostos...; mas também produzem a pessoa que nós somos. Nós objectificamos a nossa relação com a materialidade. Não é o consumo em si, é a relação com a materialidade, é olhar para as malas e perceber o que vai lá dentro e perceber de que é que as pessoas abdicam quando se movimentam. Perceber o que é que nunca sai dos caixotes quando já se está a viver há não sei quantos anos num outro sítio? O que é que se pede, aos que andam de um lado para o outro, para trazerem? Do que é que se tem saudades? Se se olhar para essas coisas aparentemente banais, percebem-se muitas das dimensões que são estruturantes da relação com as pessoas com o sítio onde estão, e com a origem.

 

Cite as Pereira, Cláudia (2012), "Entre a condição de emigrante e a condição de canadianos de classe média: entrevista a Marta Rosales", Observatório da Emigração, 8 de novembro de 2012. http://observatorioemigracao.pt/np4EN/4684.html

 

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