Interview held in Lisbon, on June 13th 2010, by Cláudia Pereira.
Observatório da Emigração (OEm) - Começaríamos por perguntar -lhe o que é que o levou na sua via pessoal e profissional a interessar-se pela emigração portuguesa na Venezuela.
António de Abreu Xavier (AAX) – A história começa com a minha família porque o meu pai emigrou da Madeira para a Venezuela em 1948. Deixou a minha mãe cá em Portugal já à espera de uma menina, que o meu pai só conheceu dois anos depois. Esta história de a minha família estar separada e as conversas com o meu pai levaram-me a viver uma dupla experiência, de uma perspectiva social, toda a minha vida vivi o que era o contacto de um emigrante com a sociedade de acolhimento, de uma perspectiva individual, como filho de emigrante, da porta da casa para dentro só falava português. Mas era uma dupla educação que estávamos a receber para viver em Portugal porque era uma educação com a ideia do retorno e depois de 19 anos na Venezuela, o meu pai decidiu voltar a Portugal, mas já não se adaptou. Na sua opinião, Portugal já tinha mudado, mas penso que quem tinha mudado era ele, e, então, voltámos mais uma vez à Venezuela. Foi uma experiência de dois anos, de 1968 a 1970. A nossa educação mudou nessa altura. A ideia do retorno que era o alvo do emigrante, o seu projecto de vida fora de Portugal, deixou de existir, e os meus pais decidiram dar uma educação mais ao estilo venezuelano que português, eu tinha 10 anos na altura. Voltámos então para a Venezuela, depois de mim nasceram quatro irmãos.
OEm - Foi uma grande mudança na sua vida...
AAX – Sim, há uma grande mudança entre a minha irmã mais velha e os três irmãos mais novos que eu, houve uma grande diferença na nossa educação, na formação da personalidade. Esta mudança foi criando um ambiente familiar muito particular com dois referentes, o português e o venezuelano.
OEm - Quando diz que começaram a ser educados numa forma mais venezuelana e abandonaram a portuguesa, a que é que se refere especificamente? Lembra-se de algum aspecto em particular?
AAX – Muitas coisas, uma delas é que deixámos de falar português, como única língua para comunicar entre nós e passámos a falar mais espanhol com os nossos pais. Um outro aspecto é que nós não podíamos levar amigos a casa, quando voltámos para a Venezuela já tínhamos permissão para levar amigos a casa.
OEm - Porque os seus amigos não eram portugueses?
AAX – Eu estava sempre com os amigos na rua, envolvido por um meio social que determinou a eleição de amigos.
OEm - E depois tirou o curso?
AAX – Eu comecei a tirar o curso de história em 1976, 1977, mas as condições económicas dos meus pais não davam para pagar a deslocação e os estudos, éramos oito filhos. Alguns filhos trabalhavam e estudavam, os três mais velhos, eu que sou o quarto fiz o mesmo, deixei a casa dos meus pais em 1977 e fui para Caracas. Eles moravam na quarta cidade da Venezuela que é Barquisimeto e fui para Caracas, comecei a trabalhar de dia e a estudar de noite. Mas era muito exigente e não dava para conciliar. Depois trabalhei uma época e voltei a estudar.
OEm - Quando é que começou a estudar a emigração portuguesa?
AAX – Comecei a estudar a emigração portuguesa quando estava a tirar o curso na universidade porque uma professora de história social da América Latina, María Elena González Deluca, que é de origem argentina, começou a trabalhar sobre a importância e o papel dos emigrantes na ideia da responsabilidade civil e industrial na Venezuela. Trabalhei com ela durante quase um ano, este projecto era financiado pela Câmara de Comércio de Caracas e também através de outras instituições sempre veiculadas ao comércio e indústria. Do projecto saiu um livro desta Professora e um artigo da minha autoria, que foi publicado no Anuário do Instituto de Estudos Hispano-Americanos, o qual se baseou na ideia de trabalho entre os diferentes industriais, não só portugueses mas em geral.
OEm - Ou seja, um tema de história que podiam aplicar à contemporaneidade na Venezuela, articulando o passado e o presente. E depois desse projecto?
AAX – Trabalhei sempre a imigração com outros investigadores. Por exemplo, com a Dra. Yolanda Segnini trabalhei sobre a árvore genealógica da família Segnini que era de onde ela vinha, da Córsega, porque na Venezuela há uma grande influência destes imigrantes no oriente do país. Quando os imigrantes da Córsega chegaram à Venezuela formaram uma comunidade de empreendedores muito importante e depois espalharam-se pelo resto do país. Também trabalhei com o José Ángel Rodríguez que estudou a influência dos imigrantes nas ideias da mentalidade venezuelana, é um Professor muito conhecido, tem sido prémio nacional de história na Venezuela e tem ganho prémios internacionais com as suas pesquisas. Trabalhei também com ele sobre William H. Phelps que é um norte-americano que mudou de vida quando foi à Venezuela para fazer um estudo sobre ornitologia. O William Phelps foi um grande importador, trouxe muitas inovações ao país, depois retomou as suas investigações em ornitologia, a segunda colecção de aves mais importante no mundo está na Venezuela e é dele. Portanto, estive sempre a investigar imigrantes.
OEm - Entretanto, colaborou também em arquivos na recolha de documentos portugueses...
AAX – Sim, um dos problemas da Venezuela é que a imigração não tem sido um tema muito trabalhado nos arquivos e documentação. Digamos que há um desinteresse na documentação relacionada com imigração, a maioria dos documentos não está classificada. Portanto, quando trabalhei no Arquivo Geral da Nação, para além do projecto em que estava, comecei a classificar os materiais por minha iniciativa e lá ficou essa classificação à disposição, não está no catálogo do arquivo, tem de se pedir porque foi feito à parte. Esta base de dados abarca fontes históricas existentes no AGN para a imigração europeia em geral. O mesmo acontece com o Arquivo Histórico - Diplomático do Ministério das Relações Exteriores que tem de ser trabalhado, na minha opinião é uma responsabilidade das nossas embaixadas de Portugal fazer os inventários de documentação sobre Portugal em "países terceiros", como é o caso da Venezuela neste Arquivo. Há uma parte que está já classificada, têm lá uma equipa de investigadores da Universidade Central, onde estão colegas meus, mas não dá para eles fazerem a classificação porque têm já muito trabalho e gasta-se muito tempo a classificar estes materiais. No caso do AGN, poder-se-ia implementar um programa de pesquisa arquivística e histórica realizada por estudantes mediante algum financiamento.
OEm - Tem também colaborado na criação do Museu da Emigração Portuguesa na Venezuela...
AAX – Esse é um projecto que tem várias arestas. A comunidade israelita na Venezuela falava já há muito na criação de um museu dos imigrantes e acabaram por fazer um museu sobre a história dos judeus na Venezuela no Centro Israelita de Caracas. Os italianos, por seu lado, também já tinham falado nisso, os espanhóis, mais especificamente, os galegos, já tinham um salão no Centro da Irmandade Galega em Caracas. De forma semelhante, o Centro Português de Caracas tem-se distinguido, tem lutado imenso por recuperar vários documentos e peças de valor patrimonial, como é o caso do legado que deixou a União Ciclista de Portugal, que teve uma das equipas de ciclismo mais importantes na história do desporto na Venezuela. O Centro tem também recuperado com o auxílio do diário Correio da Venezuela e, especialmente o director do jornal, Aleixo Vieira, os bens da equipa do Club Desportivo Marítimo da Venezuela, uma equipa de futebol que já desapareceu mas que tem o recorde de mais campeonatos ganhos na Liga de Futebol Profissional da Venezuela. Assim, a criação do Museu surge porque já temos materiais. Então o que fizemos foi lançar um desafio, entusiasmar a comunidade portuguesa com uma exposição de tipo museográfico, que foi feita no Centro Português de Caracas. A partir daí surgiu a proposta de criar o Museu, de uma forma já mais sólida. Essa proposta foi feita por mim num evento que foi promovido pelo jornal Correio da Venezuela, o mesmo Centro Português de Caracas, a Embaixada de Portugal, o banco Banif, o Diário de Notícias da Madeira, e um conjunto de empresários da comunidade portuguesa na Venezuela. Mas tudo isto ainda está em projecto. O que fiz em 2009 foi apresentar este projecto num colóquio da universidade La Sorbonne, em Paris, com o auxílio da Agência Executiva para a Cultura e Educação Audio-Visual da Comunidade Europeia. Apresentei este projecto no âmbito do programa Erasmus Mundus, o qual é promovido por um consórcio de três universidades, a Sorbonne de Paris, a de Évora que tem a ver com o património cultural e histórico, e a de Pádua, Itália. Para mim, a apresentação do projecto neste colóquio foi motivo de grande satisfação porque foi muito participado, debateu-se bastante a importância dos Museus das Migrações em países de acolhimento como a Venezuela. Na verdade, a Venezuela é um dos poucos países da América Latina que não tem Museu da Imigração.
OEm - Voltando à primeira pergunta, uma curiosidade, é interessante ver que os seus pais nasceram em Portugal, foram para a Venezuela e depois tentaram retornar, mas acabaram por voltar novamente para a Venezuela e o António Xavier, que nasceu já na Venezuela com toda essa herança portuguesa, decidiu agora morar em Portugal. É curioso este duplo ciclo na sua vida.
AAX – Sim, esse comentário faz muito sentido porque quando vim para a Madeira, dos oito aos dez anos, adorei Portugal e não queria voltar. A primeira tentativa que fiz para vir para a Europa foi em 1989, tinha 30 e tal anos, tentei ficar em Portugal através de um estágio muito curto, mas tive a oportunidade de aprender o francês em Bordéus, França, e fui para lá, onde fiquei três anos. Depois fui para Berlim, Alemanha, e semanas mais tarde para Hamburgo onde estudei alemão na universidade.
OEm - Depois voltou para a Venezuela e só depois veio para Portugal, onde está como investigador na Universidade de Évora?
AAX – Sim, sou investigador do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora porque concorri a uma bolsa de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.) e fiquei em segundo lugar entre 135 candidatos.
OEm - Actualmente a sua investigação é sobre o quê?
AAX – A pesquisa que propus à FCT não tem a ver com aspectos socioculturais da emigração, mas com aspectos político-económicos das relações entre Portugal e a Venezuela. Quando falamos de emigração, falamos sempre do aspecto histórico-sociológico, mas no caso do comércio entre Portugal e a Venezuela são poucas as pessoas que sabem que já no século XVII se consumiam produtos portugueses na Venezuela. Fala-se sempre da Espanha e da sua influência no comércio, mas não de Portugal. No século XIX muitos portugueses foram para as colónias britânicas, nomeadamente no caso dos madeirenses que foram para Demerara na Guiana e para Trinidade e Tobago, os quais tiveram uma actividade muito dinâmica entre estas duas regiões e a costa oriental da Venezuela. Os portugueses que foram trabalhar mais tarde para as refinarias do petróleo de Curaçao, quando acabaram os seus contratos de trabalho, muitos não retornaram a Portugal, foram antes para a costa venezuelana. Na costa venezuelana os portugueses foram para Coro, Puerto-Cabello e dali foram para Caracas, mas já chamados pelo governo venezuelano porque este já tinha referências da capacidade de trabalho dos portugueses que estavam em Curaçao. Fala-se muito pouco do aspecto do comércio.
OEm - Pode sintetizar um pouco as características da emigração portuguesa para a Venezuela, como quando ocorreram os maiores fluxos emigratórios e se a emigração portuguesa teve algum aspecto que a diferenciasse das outras ou não?
AAX – Segundo a minha investigação, as etapas de emigração portuguesa para a Venezuela podem ser classificadas em quatro períodos. O primeiro período é muito extenso, vai desde o século XIX à chegada dos portugueses que estiveram no Curaçao. Ao contrário do que tinha acontecido com os canários, os espanhóis, os italianos...
OEm - Pode explicar quem são os canários?
AAX – Os canários são os espanhóis das ilhas Canárias. No caso dos canários, dos italianos, dos dinamarqueses, dos alemães, todos eles vieram para a Venezuela em grupos enormes, famílias completas, durante o século XIX. Os alemães em 1845 já tinham uma colónia específica, geograficamente bem localizada, mais ao menos estruturada. Os canários chegaram em barcos carregados de jovens que foram para lá trabalhar. Todavia, no caso dos portugueses eles chegaram de forma isolada neste período, o que tem a ver com a influência dos judeus portugueses que estavam no Curaçao, os portugueses que estavam em Trinidade e Tobago e em Demerara. Esta é uma grande diferença entre os grupos de emigrantes.
OEm - Uma parte substancial dos portugueses que chegaram na primeira etapa da emigração eram judeus?
AAX – Sim, os que vieram de Curaçao. A origem específica dos portugueses de Curaçao é algo que ainda não está bem estudado. Fala-se da emigração dos portugueses para as refinarias de petróleo, mas há um corte temporal entre os judeus portugueses que lá estavam nessa ilha desde séculos anteriores e que depois fixaram residência na Venezuela e os que chegaram depois, já no século XX.
OEm - Os judeus portugueses que já estavam em Curaçao trabalhavam nalguma área em particular?
AAX – Eles já eram uma comunidade portuguesa que tinha perdido muitas das características portuguesas e viviam mais para as actividades e as crenças judaicas. Era uma comunidade que já tinha governadores, presidentes de bancos, só trabalhavam nas refinarias de forma indirecta através dos serviços. Aliás, foi Samuel Maduro, um destes judeus portugueses, quem mais ajudou os portugueses que lá foram trabalhar na época dos contratos com a refinaria. No caso da Venezuela há uma segunda etapa de emigração, que é para mim a mais importante, pelo facto de ser através de uma forma oficial que se fala da chegada da emigração portuguesa. Os canários espanhóis quando falam da emigração deles para a Venezuela referem-se a uma emigração centenária e apresentavam datas precisas, os portugueses não têm datas precisas. Temos de ir aos arquivos ver quando o governo venezuelano falou disso de uma forma oficial, eu posso dar uma tentativa de data, por exemplo, quando chegou o barco dos obreiros portugueses que estavam no Curaçao, mas há emigrantes que chegaram antes, como indiquei no meu livro.
OEm - Qual é a sua tentativa de data?
AAX – Estou a falar do ano 1938, 1939, quando o Instituto Técnico para a Imigração e Colonização oferece os primeiros números.
OEm - Pode dizer-nos o título do seu livro?
AAX – Con Portugal en la maleta.
OEm - O título é bastante elucidativo, é uma expressão que se usa na Venezuela?
AAX – Usa-se muito "levar algo na maleta", mas não "Portugal" especificamente. É uma frase que expressa as ideias de algumas pessoas, ou quando alguém tem algo de muito querido, muito estimado, e que leva consigo para toda a parte. Todavia, o livro é um sucinto resume de minha tese doutoral sobre a permanência e mudanças de valores na comunidade portuguesa em Venezuela. A tese de doutoramento não está publicada na íntegra porque há um compromisso com a Universidade Central da Venezuela. Nesta universidade as teses que recebem do júri a menção honrosa e publicação ficam sobre a sua tutela à espera que a universidade a publique. É algo honroso, mas ao mesmo tempo impede que a possamos publicar de imediato, se desejamos uma publicação académica de toda a tese.
OEm - Portanto, a segunda etapa de emigração para a Venezuela é no final dos anos 1930 com a ida dos portugueses que trabalhavam nas refinarias de Curaçao...
AAX – O mais importante nesta altura é que só alguns destes foram com as famílias, aqueles que foram contratados pelo governo da Venezuela quando os contratos deles acabaram em Curaçao. Alguns já tinham a sua família em Curaçao e levaram-nas. A terceira etapa da emigração é a chegada maciça de emigrantes em cerca de 1944, com o final da II Grande Guerra Mundial, até cerca dos anos 1970. Tem uma característica que é particular dos portugueses, muitos deles chegaram e foram trabalhar directamente no comércio a retalho. Isto porque alguns dos que já lá estavam, tinham estabelecido uma base logística de apoio àqueles que chegaram depois, os que foram chamados. Em termos de documentação oficial surge o que em Portugal se chamou as "cartas de chamadas".
OEm - Cartas de chamadas de trabalho?
AAX – Não, são duas coisas diferentes. Uma coisa era ter contrato de trabalho, para colmatar as exigências mais fortes do mercado venezuelano, e outra era ter carta de chamada, um familiar que escrevia a mandar buscar outro em Portugal porque tinha condições socioeconómicas para o receber. Foi também um período muito importante nas relações diplomáticas entre Portugal e a Venezuela, consulados que fecharam, momentos de grande tensão entre os dois países devido às condições e exigências que tinham. Do lado de Portugal porque queriam que os emigrantes fossem e opunham-se à exigência de os portugueses terem de mostrar capacidades em termos de educação escolar e profissional para embarcarem, isto é, o regime da época, da ditadura, deveria enviar emigrantes preparados. Os emigrantes da ditadura de Salazar tinham de ir com a quarta classe, mas está comprovado que muitos não tinham, só sabiam assinar o nome e mais nada. Acrescia o facto de que a Venezuela estava a exigir umas condições de vida cidadã, de formação civil, que muitos emigrantes portugueses não tinham. Por exemplo, a origem camponesa da maioria dos emigrantes portugueses era uma das maiores queixas do governo venezuelano. Outra queixa era que não eram pessoas tecnicamente preparadas. Há também uma outra exigência que causou muita polémica nos anos 50, o facto de o governo venezuelano pedir exames médicos de doenças específicas.
OEm - O governo pediu esses exames só aos portugueses ou também aos outros imigrantes?
AAX – Só aos portugueses, particularmente os madeirenses. Aliás, há estudos que foram feitos sobre problemas intestinais, entre outros, foi também uma época em que Portugal estava a ter problemas de higiene. Foi nesta época, quando a crise económica teve imensas repercussões sociais, como crise de alimentos, o que se reflectiu mesmo na relação consular. Também nesta época muitas certidões médicas foram aceites, mesmo se não cumpriam os requisitos, porque eram de pessoas que eram chamadas por homens que já estavam na Venezuela e chamavam as famílias, as mulheres e os filhos. É uma fase muito triste, mas que passa depressa, esquece-se também rapidamente por uma simples razão: o governo venezuelano rectificou o erro porque em pouco tempo os portugueses que estavam na Venezuela deram um impulso muito grande à economia. Os portugueses, que foram chamados a trabalhar com o governo, participaram também na formação de empresas e no movimento financeiro nacional quando lhes pediram para ser accionistas na criação de bancos ou de trabalhar com a Associação Pro Venezuela, foi uma época em que a fama do português como bom trabalhador e bom investidor ficou solidificada. Portanto, a fase anterior ficou esquecida. Aliás, a fama do português era tanta que em 1958/59 os meios de comunicação social lá na Venezuela tinham anúncios a chamar os portugueses para emigrar para vários países. No meu livro falo de um caso que foi o mais evidente, o anúncio de uma empresa de emigração a recrutar para emigrar para o Canadá no jornal "Ecos de Portugal", o jornal mais importante naquela altura. Aí, as portas abriram-se para todos os portugueses. Na altura havia pessoas de câmaras comerciais, agentes financeiros, bancos, que diziam que bastava a pessoa dizer que era portuguesa para já ter o crédito aberto.
OEm - Quando surge então a quarta etapa da emigração portuguesa?
AAX – No final dos anos 1970 a emigração diminui, até que com a crise económica venezuelana que começou em 1982 se foi agravando o balanço entre chegadas e partidas até se tornar negativo.
OEm - Há um grande retorno dos emigrante?
AAX – Não é um grande retorno mas é contínuo, não tem o mesmo volume de outros emigrantes europeus que lá estavam e também saíram. É uma fase em que o emigrante português está a chegar à conclusão do seu projecto de vida, desde 1983 até agora. É um retorno que muitas vezes não é definitivo porque é difícil e complicado para quem criou a família na Venezuela deixar os filhos e os netos lá. Um dos aspectos mais característicos da emigração portuguesa são os laços familiares fortes e que não se rompem.
OEm - Os portugueses quando foram para a Venezuela fixaram-se nalgumas localidades específicas ou não?
AAX – Os portugueses têm uma característica que os singulariza, contrariamente aos alemães que chegaram directamente a duas regiões, a parte centro-norte do país e depois por Puerto-Cabello à entrada dos Llanos, a região onde há mais planícies. Isto porque os alemães chegaram como emigrantes e foram então depositados, não gosto da palavra mas é o termo, em locais e áreas específicas para os acolher. Com os portugueses não aconteceu isto, beneficiaram muito pouco dos serviços logísticos que o governo venezuelano tinha para os imigrantes em geral e foram remetidos para diferentes colónias agrícolas localizadas por todo o país, como foi o caso dos que chegaram de Curaçao.
OEm - O governo venezuelano tinha já um serviço logístico para receber emigrantes?
AAX – Sim, foi um serviço um tanto improvisado. Contrariamente à crença e à insistência para chamar população estrangeira para dinamizar o país, a estrutura logística para receber a emigração só foi criada nos anos 1940. A primeira lei da emigração na Venezuela é de 1830. No caso dos portugueses o que eles fizeram foi aproveitar as redes familiares que já tinham, o que facilitou então os primeiros contactos oficiais e a chegada dos primeiros contratados pelo estado venezuelano, que tinham direito a viver em colónias agrícolas, a ser proprietários de terras, ou seja, tinham uma série de vantagens que os emigrantes espontâneos não tinham, aqueles que não foram chamados para contratos pelo governo venezuelano. Estes primeiros emigrantes portugueses conseguiram estabelecer-se em localidades muito afastadas da capital, Caracas. Portanto, estiveram dispersos, muitos foram a Turén que naquela altura era cerca de um dia de viagem, outros foram até aos limites da fronteira da Venezuela com a Colômbia, numa zona chamada Rubio a cinco minutos a pé da fronteira com a Colômbia, estiveram também em Maracay, en Ciudad Bolívar, no rio Orinoco, estiveram dispersos. Portanto, eles chegavam a Caracas e iam depois para localidades no interior. Além de que o português teve uma missão de educação económica do país que soube aproveitar muito bem, oportunidade que surgiu da dinamização da economia pelo dinheiro do petróleo. Era uma sociedade que se estava a formar, uma classe média importante que estava a precisar de serviços que tinham de ser criados, onde então os portugueses investiram.
OEm - Actualmente não há então uma concentração de portugueses em Caracas?
AAX – Sim, há, mas nos anos 1940 não havia. A comunidade portuguesa nunca foi alheia à dinâmica demográfica do país, posso dizer com toda a certeza que a comunidade portuguesa tem desenvolvido o país, a par da evolução socioeconómica e política do país. Quando a Venezuela por causa do petróleo começou a viver um êxodo interno, as populações do interior, das aldeias, começaram a ver que na cidade estavam a investir mais dinheiro do que eles e foram aos centros urbanos à procura de emprego, tal como os portugueses e outros imigrantes. Isto aconteceu em várias fases: no surgimento do petróleo nos anos 20; na construção das refinarias do petróleo no território venezuelano porque antes estavam em Curaçao; na instalação e construção de colónias de técnicos, nomeadamente norte-americanos, à procura do petróleo com todos os serviços preparados, os quais eram inovadores para os venezuelanos como, por exemplo, os supermercados que mudaram os hábitos de consumo, para além de que nos supermercados de portugueses viam-se cartazes com instruções de serviço. Isto foi um sucesso. Os portugueses têm sido muito inteligentes no sentido de saber interpretar as necessidades e a mentalidade do povo que o acolheu, por isso é que a comunidade portuguesa na Venezuela está tão implantada no país, eles sentem-se tão venezuelanos como portugueses. Aliás se alguém fizer um inquérito entre luso-descendentes, estou a falar da segunda e da terceira geração, eles respondem que se sentem tão venezuelanos como portugueses. Uma prova clara e evidente disto é que cada vez mais nos jornais aparecem jovens luso-venezuelanos a participar em comissões, a realizar eventos, a organizar instituições, a trabalhar em fundações que têm a ver com o interesse nacional. É assim que está criada a Comissão Luso-Venezuelana de Amizade no parlamento venezuelano. É assim que já temos tido ministros de economia que são luso-descendentes.
OEm - Em termos de educação escolar, os filhos dos emigrantes portugueses até que ano é que costumam estudar? Não sei se fez parte da sua pesquisa...
AAX – Sim, está na minha tese de doutoramento mas falo pouco no livro. A primeira geração de portugueses, que nasceu em Portugal, teve uma grande preocupação de dar educação aos filhos, uma característica muito importante dos portugueses na Venezuela é que dá uma educação partilhada. Ou seja, a educação é complementada entre a instituição que dá a instrução no país e a que é dada em casa. Então, noções de cidadania, de pertença a um grupo nacional, de civilidade, de consciência como grupo comunitário, nesse sentido é a escola venezuelana que transmite. Mas as características socioculturais da comunidade já é responsabilidade dos pais, é um compromisso educar os filhos nesse sentido, como a noção de trabalho, de responsabilidade com os outros, a noção de ter filhos, aliás, ter filhos primogénitos ainda é algo que se fala na comunidade, mas é uma visão que tem pouco lugar numa comunidade dinâmica onde a mulher tem conquistado posições de liderança. Aliás, basta ver as grandes redes de supermercados assim como algumas indústrias importantes que existem lá na Venezuela que constituem uma das maiores fontes de emprego, redes de empresas que têm uma grande responsabilidade social porque têm fundações criadas e dão grandes verbas para o desporto, não só para clubes das empresas mas para escolas abertas a todo o público. Estamos a falar também de iniciativas culturais, como é o caso do Instituto Português de Cultura, de fundações que divulgam a língua portuguesa, como é o caso dos professores que estão lá a dar aulas de português, quase de forma gratuita. Portanto, há uma dupla estrutura nesse sentido, uma grande preocupação desta geração para que os filhos, em geral, tenham educação.
OEm - E os portugueses que emigraram para a Venezuela vinham de sítios específicos de Portugal? Da Madeira...
AAX – Os que foram para Curaçao vinham da Madeira, nos chamados barcos negros.
OEm - Porque lhes chamavam barcos negros?
AAX – Porque foi uma alusão aos barcos do tempo da escravatura, eram barcos pretos porque eram barcos petroleiros que pertenciam ao consórcio britânico e holandês - Royal Dutch Shell. Nesses barcos vinham madeirenses na maioria, mas a emigração do centro-norte de Portugal foi muito importante para a Venezuela, estamos a falar da terceira etapa da emigração portuguesa para lá, da chegada maciça. Vinham do Minho, mais concretamente, Espinho, Vila Nova de Gaia, Porto, entre outros sítios do centro-norte. Das outras regiões eram poucos, como do sul de Portugal, por exemplo. Estes emigrantes diferenciaram-se dos restantes porque o português continental tinha noções de indústria, de fábrica, de manufactura, enquanto o português das ilhas tinham mais noções de agricultura e de comércio. Notam-se, por exemplo, os portugueses continentais na criação de fábricas de tintas para a construção civil ou fábricas de mobília. O Daniel Morais, uma grande personalidade da comunidade, director do jornal Ecos de Portugal e proprietário de uma fábrica de mobília, por exemplo, era de Portugal continental, mas os donos, os accionistas, das grandes redes de supermercados são madeirenses.
OEm - Isso terá a ver com as profissões que eles tinham em Portugal antes de emigrar?
AAX – Sim, e a influência nesse sentido é grande. No caso das sardinhas enlatadas há uma influência portuguesa que precisa de ser investigada, no caso das bolachas Maria encontra-se nos jornais venezuelanos publicidade à fábrica delas na Venezuela, o que também merece mais pesquisa. Estes são apenas exemplos.
OEm - Na emigração portuguesa para a Venezuela havia uma idade mais comum para a saída de Portugal?
AAX – Varia segundo os períodos da emigração que falei, mas a maioria era homens jovens, para cima de 20 anos, embora a média de idades depois tenha baixado. Ao princípio eram homens casados, o que se devia ao facto de existir em Portugal um regulamento sobre o estado civil das pessoas que saíam daqui, se era casado e com filhos tinha prioridade para emigrar.
OEm - Essa política era com o intuito de esses portugueses enviarem remessas para Portugal, dificultando a ida da mulher?
AAX – Sim, o Cassola Ribeiro tem um livro em que fala dos sinais exteriores de riqueza. É um livro ilustrativo de tudo o processo de selecção.
OEm - Há algo mais que queira acrescentar?
AAX – Gostaria que nas instituições da comunidade portuguesa na Venezuela houvesse maior estímulo na promoção do estudo da história e língua, tenho feito trabalho nesse sentido, de motivar os jovens, aliás, eu fui júri de uma tese de antropologia de uma luso-venezuelana, Luísa Franca, sobre o papel social dos supermercados de madeirenses lá na Venezuela, a qual está à disposição na Biblioteca da Universidade Central da Venezuela. Há um jovem, Ricardo Tavares, que trabalha na Universidade Católica da Venezuela e tem uma página web, Contacto linguístico, há jovens que estão na Universidade Central da Venezuela que já são jornalistas e trabalham também nesse sentido, mas falta-lhes apoio. Eu penso que dentro da política do agregado cultural das instituições diplomáticas tem de haver algum estímulo nesse sentido, senão for no plano económico, deveria haver um espaço público para ajudar a mudar a imagem dos portugueses na Venezuela.
OEm - Para desmistificar a imagem dos portugueses?
AAX – Sim, vou citar um sociólogo muito importante da Venezuela, o Samuel Hurtado, cujo trabalho está publicado na compilação Las inmigraciones a Venezuela en el siglo XX publicada pela Fundação Herrera Luque, onde desenvolve a ideia que os portugueses criaram emprego para os venezuelanos, portanto, falta este lado da educação cultural. Falta divulgar mais a cultura portuguesa e como está enraizada na formação de Venezuela. Até agora tem sido um trabalho titânico feito por animadores culturais, pelos centros sociais, pelo Instituto Português da Cultura e os seus directores. Hoje em dia quem está a fazer este trabalho é o João da Costa Lopes e um conjunto de pessoas preocupadas com a divulgação da cultura portuguesa. É um grupo proactivo que tem imenso trabalho, têm um blog na Internet, uma revista electrónica que se chama Boletim Informativo de Artes e Letras, que faz alusão ao célebre jornal português de literatura. Portanto, a cultura portuguesa na Venezuela não é só folclore, também tem uma parte de artes, de literatura, de história, de jornalismo, de política, as quais precisam de apoios para tal.
Cite as Pereira, Cláudia (2010), "Os portugueses na Venezuela sentem-se igualmente venezuelanos. Entrevista a António Xavier", Observatório da Emigração, 13 de Junho de 2010. http://observatorioemigracao.pt/np4EN/4704.html