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É preciso desmistificar as migrações e as mobilidades
Dora Sampaio
Dora Sampaio é licenciada em geografia pela Universidade de Lisboa, onde se especializou em migrações internacionais no mestrado. Doutorou-se em geografia humana na Universidade de Sussex, e realizou um pós-doutoramento no Instituto Max Planck. O seu trabalho tem contribuído para desvendar a crescente diversidade por detrás do rótulo “populações migrantes envelhecidas”, mas também a pluralidade das suas práticas transnacionais, sentimentos de pertença, formas de encarar a vida e de se sentir em casa em contexto migratório. Atualmente, é professora de mobilidades transnacionais na Universidade de Utrecht. É autora do livro Migration, Diversity and Inequality in Later Life: Ageing at a Crossroads (Palgrave Macmillan, 2022), uma etnografia de migrantes que envelhecem nas ilhas dos Açores.

 

Entrevista realizada via zoom, a 23 de fevereiro de 2023, por Liliana Azevedo.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – Dora, fizeste a licenciatura e o mestrado na Universidade de Lisboa e o doutoramento na Universidade de Sussex, no Reino Unido. Em que momento do teu percurso surge o tema das migrações?
Dora Sampaio (à frente DS) –
O tema das migrações era algo que já me interessava durante a licenciatura. Nessa altura desenvolvi um interesse pela geografia social e cultural, mas acho que o meu interesse pelas migrações se consolidou quando terminei a licenciatura e comecei a trabalhar na equipa liderada pela professora Lucinda Fonseca, o Grupo MIGRARE do Centro de Estudos Geográficos (CEG), que trabalha projetos na área das migrações. A minha tese de licenciatura, na verdade, já foi sobre mobilidades de residência secundária, ou seja, tinha um elemento de mobilidades, também transnacionais, porque muitas das pessoas que compram residência secundária (e também primária), no Algarve, que era o meu foco na altura, são pessoas que chegam de outros países.

 

OEm – Tu própria, em termos pessoais, tens algum histórico ligado às migrações?

DS –
Curiosamente, não. Tenho a família mais “não migratória” possível. A minha família mora toda numa vila pequenina no Sul de Portugal, e nunca ninguém na minha família desenvolveu um percurso migratório. Exceto a minha irmã, que viveu por um ano nos Açores. Emplacement é mesmo o que caracteriza a minha família e eu fui a única que de alguma forma fiquei curiosa por conhecer coisas fora do sítio onde cresci.

 

OEm – A tua dissertação de mestrado (2011) já versava sobre o tema do envelhecimento e migrações internacionais, mais concretamente sobre o impacto de pensionistas estrangeiros na revitalização de territórios de baixa densidade. No doutoramento (2018) estudaste três categorias de migrantes mais velhos/as presentes num mesmo território, os Açores, uma abordagem inovadora que te permitiu cruzar migração laboral, migração estilo de vida e migração de regresso. Como se deu a escolha das categorias e dos lugares que analisaste numa e noutra pesquisa?

DS –
O mestrado, na altura, já tinha muito a ver com as minhas vivências. Nós, enquanto investigadores/as, normalmente, o que fazemos baseia-se muito também nas nossas experiências pessoais e naquilo que conhecemos e que temos curiosidade em conhecer, que nos inspira, e o mestrado foi muito nesse sentido. Sempre tive interesse em áreas de baixa densidade e áreas mais rurais. Ultimamente, tenho vindo a interessar-me mais sobre cidades, mas tanto o Algarve [rural] como os Açores são áreas de baixa densidade e um dos elementos que mais me cativou é que são áreas, diria, menos atrativas do que morar numa cidade, mas na verdade há muita gente que escolhe intencionalmente viver em áreas de menor densidade, e acho que foi esse o meu ponto de partida. As ligações entre o mestrado e o doutoramento estão claramente lá. Já me interessavam as questões de envelhecimento e já tinha interesse em grupos de migrantes mais velhos/as, em período pré e pós reforma, que decidem mudar-se para outros locais. Na altura, quando avancei com o doutoramento na Universidade de Sussex, a ideia era alargar um bocadinho a análise e trazer a perspetiva comparativa. A perspetiva comparativa é muito apelativa, e vem com uma série de vantagens e também com limitações. O cérebro humano trabalha em termos de comparação, a verdade é essa: um dos primeiros aspetos cognitivos que nós desenvolvemos enquanto seres humanos é que nós comparamos tudo, e esse é um dos elementos que realmente gera bastante informação, observar e compreender similaridades e diferenças. Mas comparar também tem claramente limitações: como é que comparamos, por exemplo, laranjas e maçãs? Há toda uma teoria relacionada com como comparar e de que forma é que é produtivo comparar. E, portanto, o projeto foi ambicioso nesse sentido, não só focando-se num grupo específico, mas comparando experiências de pessoas que tinham vindo para os Açores com motivações distintas. Algumas em trabalho e posteriormente reforma, outras para se reformar, e outras ainda que vinham para os Açores à procura de um estilo de vida mais calmo. A questão aqui é que estes grupos não foram colocados em caixas separadas ou estanques. Trata-se de comparar num espaço, mas também há um elemento temporal muito forte na comparação. Ou seja, a análise comparativa acontece no momento presente, mas na verdade, tudo o que está a acontecer é baseado em coisas que aconteceram no passado – lá está, a abordagem do curso de vida é importante por causa disso – e passado e presente têm implicações no futuro. E, depois, ao mesmo tempo, o espaço: os Açores, o Algarve ou outro espaço qualquer que nós analisemos, o espaço tem um curso de vida também, não é? E o espaço continua sempre a mudar à medida que nós avançamos no tempo. Ou seja, nós estamos a mudar, mas o espaço também muda. Nós nunca regressamos ao mesmo lugar, porque o lugar também mudou e nós mudamos.

 

OEm – O livro que publicaste há poucos meses (Migration, Diversity and Inequality in Later Life) resulta da tua pesquisa de doutoramento. Na última década, realizaste, porém, outras pesquisas que se situam na articulação do envelhecimento e migrações internacionais e investigaste diversas categorias de pessoas migrantes, e também não migrantes, em diversos contextos geográficos (Algarve, Açores, Brasil e Estados Unidos). O que é que essa comparação te proporcionou em termos epistemológicos e quais as principais semelhanças e diferenças que gostarias de destacar?

DS –
A abordagem comparativa traz sempre muitas vantagens. Também no caso da minha investigação mais recente, Estados Unidos e Brasil, o objetivo era ir um bocadinho para além-fronteiras e perceber dinâmicas transnacionais. Neste caso, adotando um ângulo intergeracional, debruçando-me sobre as experiências de duas gerações em dois locais distintos. O projeto inicialmente incluiu também a Inglaterra, embora me tenha focado mais no elemento Estados Unidos e Brasil, que era o mais forte. É também interessante verificar as diferenças entre locais e entre fluxos de migração. Nesse caso em específico, o que permitiu entender e que é muito interessante é que são dois fluxos muito diferenciados: para a Inglaterra, o fluxo de migração brasileira é mais qualificado, mais jovem, mais classe média; para os Estados Unidos é mais classe trabalhadora, grupos etários mais de meia idade – estamos a falar de 30, 40 anos, ou seja, pessoas que estão nos Estados Unidos há mais tempo. Por outro lado, a questão da localização geográfica: a migração para a Inglaterra tem origem mais nas metrópoles, São Paulo sobretudo, enquanto para os Estados Unidos tem origem mais em estados do interior, nomeadamente Governador Valadares [em Minas Gerais], onde eu fiz parte do trabalho de campo no Brasil. Mas, mais uma vez, permite-nos refletir um bocadinho, em questões do próprio regime migratório, de vistos, redes sociais também. No caso deste projeto, acho que a dimensão comparativa talvez tenha sido menor e o foco intergeracional maior. Vou só dizer mais isto, que penso que é importante: em ambos os casos a ideia é tentar também desmistificar a ideia de que migrações e mobilidades são uma coisa quase anormal, porque não são; por isso nos Açores inclui no projeto e falei com pessoas que eram não migrantes. Todos nós experienciamos mobilidade(s) a algum nível e em algum momento das nossas vidas e, quando falamos de migrações, normalizar isso é também um aspeto importante.

 

OEm – Há bocado, estavas a falar da questão do espaço e de que os próprios espaços também têm o seu curso de vida. Nós sabemos que existe uma relação dinâmica entre migração e produção dos lugares. O que é que tu observaste, nomeadamente, no caso dos Açores?

DS –
Eu acho que é uma coisa que nós observamos em vários locais, os Açores sendo um deles. Um aspeto importante é que nós, enquanto investigadores/as, sobretudo qualitativos/as, fazemos análises num local, mas as dinâmicas que acontecem nesse local têm sempre uma dimensão mais global. O que observamos nos Açores, ou no Brasil, por mais local que seja, tem uma dimensão e relevância internacional, e acho que o nosso papel enquanto investigadores/as também é gerar essa conversa mais alargada, porque, se calhar, é um dos elementos que às vezes se perde numa investigação mais etnográfica ou mais localizada. O que observamos ao nível micro também se liga com dimensões e fenómenos que estão a acontecer em vários outros locais. A verdade é que o espaço em si está em permanente mutação e essa mutação acontece com pessoas, porque a ligação entre pessoas e lugares existe e está lá, mas o curso de vida dos lugares também existe: espaços novos que se criam, edifícios que se demolem, espaços verdes que se criam. As infraestruturas da cidade mudam e, com elas, claro, as pessoas que ocupam esses espaços. Esse elemento é interessante para perceber que não é só sobre a forma como nos relacionamos com o espaço, mas também como o espaço se relaciona connosco. Nós podemos estar imóveis e experienciar migrações, experienciar transnacionalismo, experienciar a mudança dos lugares sem sair do nosso lugar. Portanto, estamos todos/as envolvidos nesse processo.

 

OEm – Estavas inicialmente a falar do emplacement da tua família e isto leva-me a perguntar-te sobre uma ideia que associamos ao regresso, que é a ideia de place attachement, não é? As pessoas sentem saudades daquele lugar. Mas o que a investigação feita com migrantes mais velhos/as indica é que, nomeadamente, também pode haver um sentimento de place attachment em pessoas que não são daquele lugar. E agora estavas a falar precisamente dos espaços, não sei se é uma questão sobre a qual poderias elaborar um bocadinho mais? O que é que observaste relativamente à relação das pessoas com os lugares, mesmo não sendo elas originalmente daquele lugar?

DS –
Eu acho que isso é muito interessante o que estás a dizer, Liliana, porque é exatamente isso: nós todos/as temos ligações com lugares e essa ligação não tem necessariamente a ver com o lugar onde nascemos, onde crescemos, ou com o passaporte que temos. A ligação ao espaço é uma ligação muito subjetiva, e se calhar aí liga também um bocadinho com a questão das geografias emocionais nas quais também tenho interesse. Podemo-nos sentir ligados/as ao espaço por uma variedade de formas. Vou ilustrar com um exemplo: nos Açores, uma das coisas que me fascinava era a forma como muitas das pessoas que se tinham mudado para lá, pessoas que tinham regressado aos Açores, que tinham nascido nos Açores e vivido muitos anos fora, e pessoas que se tinham mudado para os Açores depois de umas férias ou simplesmente viram no mapa, viram umas fotografias e acharam “okay, eu quero mudar de vida e quero ir para os Açores”, até pessoas que tinham feito trajetos de barco ou veleiro e que tinham parado nos Açores umas horas para recarregar baterias e abastecer o barco, sentiram um apelo muito grande das ilhas. Acho que isso revela exatamente esse sentimento de apego ao lugar que não é específico a ter nascido ou vivido durante um longo período num espaço. Tem muito a ver com sensibilidades e ligações afetivas ao espaço, a materialidade do espaço, mas também com os sons; tem a ver com coisas que ligam, por exemplo, a memórias de infância, e isso foi uma das coisas que eu achei mais interessante, pessoas que me diziam “eu gostava de ter nascido nos Açores. Eu tenho pena de não ser açoriano/a. Eu não sei se algum dia vou ser açoriano/a, mas gostava muito de ser açoriano/a”. Esse elemento tem a ver exatamente com essas memórias: uma certa memória da ruralidade, ou uma certa memória das ilhas, daquilo que morar numa ilha significa, ou uma memória do mar, de estar rodeado/a pelo mar, esta sensação de ver o mar quase de todos os pontos. Isso é único, e isso é uma coisa que transcende muito – e se calhar isso é importante também dizer – onde é que nós nascemos, ou o aspeto material do documento de identificação que temos, não é? Tem a ver com quem nós somos enquanto pessoas e aquilo que nos faz sentir em casa.

 

OEm – Estavas a falar da relação entre o micro e o macro. Nas tuas pesquisas tens adotado uma abordagem etnográfica. Que vantagens vês no uso de métodos qualitativos no estudo das populações migrantes envelhecidas em relação a outros métodos?

DS –
Eu sou apologista de métodos qualitativos e etnográficos com qualquer grupo de estudo, porque acho que a etnografia, o trabalho qualitativo, passar tempo com pessoas, sit with data, ajuda-nos a perceber dinâmicas. Nós sabemos que há uma temporalidade inerente a tudo aquilo que analisamos, e passar tempo, dedicar tempo – o que é um luxo, sobretudo no espaço académico em que vivemos hoje em dia – permite-nos perceber coisas que encontros mais rápidos não permitem. Isto não é desdizer, obviamente, métodos mais quantitativos que permitem obter outro tipo de informação e, por isso, também temos abordagens mixed methods, que são muito importantes. Mas esse elemento etnográfico é aquilo que permite, na minha experiência, uma ligação mais forte com o local e com as pessoas com quem estamos a trabalhar. Perceber realmente dinâmicas exige mais do que um encontro. E, além de falar, é preciso também observar. E isso, eu acho que é muito importante: observar. Somos humanos e há muitas contradições naquilo que pensamos, naquilo que dizemos, naquilo que fazemos e a observação etnográfica permite-nos perceber esses elementos. Com o envelhecimento é um aspeto ainda mais interessante, porque acho que é um grupo que realmente privilegia bastante “passar tempo”. É interessante e é bom para os dois lados também. Há grupos com os quais, com certeza, seria mais difícil esta abordagem, mas, realmente, com grupos que estão na reforma, é possível.

 

OEm – Há bocado estavas a falar das diferenças entre grupos. Sei que as desigualdades são um dos teus eixos de análise. Que fatores estruturam as desigualdades em contexto migratório numa fase avançada da vida, nomeadamente no caso dos Açores?

DS –
É um aspeto que sempre guiou de certa forma a minha análise, e é por isso que eu também acho que uma abordagem do curso de vida é tão importante para perceber como é que desigualdades presentes se formam. Nós estamos no ponto em que estamos realmente por causa de uma história. É a nossa história, é a história dos espaços que ocupamos, é a história das nossas famílias, é a história dos países ou dos lugares que vivemos. Trabalhar com grupos de migrantes em idade pré e pós reforma tem a vantagem de permitir perceber como é que as desigualdades se acumulam ao longo da vida. Para entendermos o momento presente, temos que perceber que eventos aconteceram ao longo das nossas vidas. Nos Açores isso foi muito evidente. Todos os grupos com quem eu falei tinham obviamente como objetivo alcançar uma vida melhor. Esta ideia da good life, não é? Essa procura existencial de que conseguimos alcançar alguma coisa melhor. Mas o significado de uma vida melhor para mim, para ti e para qualquer pessoa, é extremamente subjetivo e provavelmente diferente. O que é viver uma vida boa? Os recursos que temos para viver essa vida são muito distintos, e foi exatamente isso que eu observei, havia uma diferença em termos de classe social relativamente aos recursos económicos que diferentes grupos tinham acumulado ao longo da vida para lhes permitir viver essa vida que desejavam. E isso tinha consequências também ao nível dos espaços que ocupavam. A que espaços é que vão quando querem passar o tempo livre? Qual o tipo de práticas de consumo? E mesmo num espaço relativamente mais pequeno, as pessoas podem nem sequer se cruzar. Claro que há outros elementos para além da classe social. A questão do género também e como é que isso afeta as perspetivas que se tem na vida. A família e qual o papel que a mulher ainda desempenha na família. Há o elemento racial, e todos eles se cruzam. Para além disso, o ponto em que a pessoa se encontra na sua vida também pode gerar desigualdades, porque quando falamos sobre envelhecimento estamos a falar de pessoas que podem estar em várias fases da vida, até numa fase da vida mais madura, não é? Outra questão que se levanta é a das incapacidades, ou diferentes níveis de capacidade. E isso também vai, claramente, influenciar as possibilidades de viver a vida que se deseja.

 

OEm – Envelhecimento e migrações são duas das mais importantes tendências sociodemográficas na atualidade. No plano internacional, esse nexo tornou-se um campo de investigação muito pujante na última década. No entanto, apesar da importância de ambos os fenómenos no nosso país, a sua articulação tem suscitado pouco interesse académico a nível nacional, e são fenómenos que continuam essencialmente a ser estudados em separado. No teu entender, o que é necessário para desencadear esse interesse? E em que medida uma produção científica nacional neste domínio se pode revelar extremamente relevante?

DS – Essa é uma das perguntas que mais me fascina e que me deixa intrigada. É que, realmente, Portugal é um dos países da União Europeia, e do mundo, que está a envelhecer mais rapidamente. Nós sabemos bem porquê, não é? Claro, a esperança de vida aumentou imenso, e sabemos que as condições em Portugal não são muito facilitadoras de uma taxa de fecundidade elevada. Sendo estas as condições demográficas em Portugal, e sendo Portugal também um país que tem recebido, sobretudo em anos mais recentes, e antes também, muitas pessoas de muitos os cantos do mundo, há todo um espaço produtivo para pensar sobre estas questões. Eu vejo pessoas realmente a fazer investigação nestas intersecções – sendo tu uma dessas pessoas. Há muito para se estudar, mas não parece haver tanto interesse. Eu acho que tem a ver, também do que observo do ponto de vista internacional, há uma certa, não lhe vou chamar “obsessão”, mas há um foco muito mais atento às gerações mais jovens. Há muito mais interesse nos jovens do que nas gerações mais velhas. Talvez seja uma tendência natural das nossas sociedades, a de querer olhar para o futuro, mas também precisamos de olhar para as pessoas que construíram o que temos hoje. Dito isto, a minha abordagem é uma abordagem intergeracional, ou multigeracional, porque uma análise só de um grupo etário também tem as suas limitações. Portanto, penso que, se calhar, podemos estabelecer, aqui, uma ligação entre gerações: avós, pais, filhos/as, netos/as. Como é que podemos gerar ligações entre estes grupos e trazer as migrações para a conversa? Talvez também haja menos interesse porque é um grupo relativamente específico, migrantes idosos/as? Mas também aqui podemos trazer para a análise que são migrantes e não migrantes. É esta questão de quem é e quem não é migrante, não é? Somos sempre migrantes ou deixamos de ser migrantes, esta também é a questão, sobretudo com migrantes mais velhos/as. É importante pensar criticamente sobre as categorias que usamos, não é verdade? Temos que usar conceitos, mas na verdade, se calhar aqui a questão é mesmo perguntar à pessoa com quem estamos a falar, se se sente um/a migrante ou realmente se não é uma realidade com a qual se identifica.

 

OEm – Tens procurado desvendar um conjunto de pressupostos e mostrar a complexidade em torno das mobilidades, mas também da eventual imobilidade das pessoas mais velhas. Muitas vezes estamos focados/as num só lado da moeda e esquecemo-nos do outro. Como se relacionam os dois lados da moeda?

DS –
Eu penso que esse é um ponto importante. Mobilidade e imobilidade constituem-se uma à outra, são co-constituitive. Mobilidades e imobilidades estão sempre ligadas de alguma forma. No trabalho que fiz mais recentemente, com famílias transnacionais no Brasil, isso é muito evidente. A imobilidade de algumas pessoas, neste caso a imobilidade daqueles/as que estão indocumentados/as nos Estados Unidos, é o que gera a mobilidade dos pais, que os/as vão visitar aos Estados Unidos, porque se saírem dos Estados Unidos será difícil voltar a entrar, ou vão ter de ir por processos irregulares, que são perigosos e custam bastante dinheiro também. E, depois, estas (i)mobilidades também não estão estanques no tempo, não é? Neste caso que eu estou a dar como exemplo, uma pessoa pode estar indocumentada hoje, mas depois há um processo de documentação e essa pessoa pode passar a ter mobilidade transnacional. E isto relaciona-se também com o curso de vida. Uma pessoa pode ter mobilidade a vários níveis – mobilidade transnacional, mas também mobilidade física – hoje, mas amanhã não se sabe. Ao longo do tempo, essas possibilidades também podem mudar, por isso aqui, talvez o que eu diria é que trazer uma perspetiva temporal é muito importante.

 

OEm – Gostava também de te perguntar qual o enfoque dos próximos projetos de investigação. Qual o eixo ou linha de investigação que estás a pensar prosseguir?

DS –
Eu tenho muito interesse nestas questões dos nexos (migrações-envelhecimento e migrações-(i)mobilidades), e agora estou a avançar das migrações para as mobilidades e a pensar um bocadinho mais de forma geral, em particular mobilidades e imobilidades na cidade. Uma das coisas que acho importante neste momento, e que espero conseguir vir a desenvolver, é, por exemplo, estudar as experiências de pessoas na cidade, nomeadamente em Lisboa, em que elas não experienciam necessariamente mobilidades, mas os espaços à sua volta mudam. A sua vida muda, porque as pessoas, os sons, os espaços mudaram. O que é que acontece às pessoas que têm ocupado o espaço urbano durante várias décadas, como é que elas observam, experienciam, se adaptam, desafiam os espaços à sua volta? E aqui não é numa perspetiva reacionária, porque há também essa outra perspetiva que é “ah, mas é mau os espaços estarem a mudar?” Não, não é. Os espaços mudam, tudo muda, as pessoas mudam, os lugares mudam, as rotinas mudam. Mas é interessante perceber como é que pessoas que têm habitado nestes espaços por longos períodos experienciam as mudanças à sua volta e como afeta o seu apego ao lugar. E estou interessada também nos casos em que pessoas mais velhas, sobretudo no Centro de Lisboa, estão mais vulneráveis a processos de desalojamento. O que é que acontece quando estas pessoas têm que sair de lugares onde estiveram toda a sua vida? Ou que foram a sua casa durante toda uma vida. Gostaria de contribuir dessa forma, de produzir mais conhecimento e gerar mais conversa em torno destas questões, porque isso é outra coisa que também observo lendo as notícias, que realmente não há muito enfoque nas pessoas mais idosas. O que é que acontece? Parece um processo muito silencioso (ou silenciado?). É um aspeto que tenho bastante curiosidade em perceber melhor: como é que podemos fazer desta mudança um processo mais sustentável e inclusivo para toda a gente, em que toda a gente tenha direito à cidade, direito à sua casa e às suas memórias?

 

OEm – Sem dúvida, há um ângulo morto, por assim dizer, relativamente a estas questões. O envelhecimento, nem sempre é tido em consideração na análise. Ou seja, a interseccionalidade ainda não é uma perspetiva mainstream em todos os campos, nomeadamente quando se analisam processos de mudança geográfica e social a acontecerem na cidade.

DS –
Sem dúvida. Estás a levantar um aspeto importante. Falamos muito de mobilidade espacial, mas há também a mobilidade social, não é? E estas duas dimensões de mobilidade – social e espacial – têm de ser pensadas em conjunto, quando procuramos compreender o que é que se está ali a passar.

 

OEm – O teu percurso é bastante internacional. Fizeste o doutoramento no Reino Unido e o pós-doutoramento na Alemanha. Agora estás na Holanda. Gostava de saber se te consideras uma pessoa migrante? E se sentes que a tua experiência de mobilidade marcou a forma como fazes a investigação?

DS –
A resposta rápida é: sim, sem dúvida. Eu acho que o bichinho da migração muitas vezes fica lá quando se começa a migrar, portanto, acho que sim. Os meus interesses estão muito ligados também às minhas experiências pessoais. Acho que nós, enquanto investigadores/as, muitas vezes debruçamo-nos sobre temas com os quais temos afinidade e, no meu caso, isso é verdade. Quanto à outra questão, se me sinto migrante, sim, sinto-me migrante. Essa experiência, eu acho que ajuda ao estudar estes temas. Não é uma necessidade, claro, mas, de alguma forma, gera uma maior empatia com o tema, a experiência de permanentemente te redescobrires em novos locais, não é? Tens de te re-situar, e o processo de re-situação demora tempo e consome muita energia, mas também se ganha muita coisa nesse processo: o processo de pertencer a novas comunidades e gerar novas comunidades. E dessas ligações a múltiplos locais, abrem-se muitas portas também.

 

OEm – És membro da rede IMISCOE, e tens participado com regularidade nas suas conferências anuais. Qual é a importância deste tipo de fóruns para quem faz investigação em migrações, e nomeadamente para quem faz investigação em migrações em Portugal?   

DS – 
Eu acho que é muito importante. E para falar de Portugal em específico, acho que Portugal tem tanta investigação interessante a ser feita, observo muito dinamismo, e estas plataformas internacionais, mais abertas, são ótimas para divulgar, para aprender e para partilhar práticas. A minha participação na rede também deriva disso e porque se desenvolve ali um sentimento de comunidade. Em que partilhamos, aprendemos, geramos novo conhecimento, e há muitas pessoas a fazer investigação que têm muita coisa em comum e nestes fóruns podem-se gerar redes muito interessantes. Claro que há também coisas a melhorar na rede IMISCOE, e noutras redes também, em termos de inclusividade, trazer mais pessoas com percursos e interesses diferentes, trazer mais instituições de diferentes geografias. Esse espaço de debate e discussão é importante manter. Vejo que isso está a acontecer. Por exemplo, nós criticamente pensarmos a categoria migrante, é importante pensar sobre o que é que nós dizemos, não é? Integração é um conceito ele próprio que está a ser bastante questionado. Integração, emplacement, em que direção é que queremos levar os debates? O que é que significa integrar, integrar no quê? Acho que estas redes são muito importantes, exatamente para criar este espírito crítico e continuar a pensar criticamente sobre os conceitos que nós usamos, porque é work in progress, não é?

 

OEm – Sim, sem dúvida. A minha pergunta estava relacionada com o facto de Portugal ter uma posição periférica na Europa, como sabemos. Tenho por vezes a sensação que estamos distantes do que se passa no Centro da Europa e de que podemos produzir conhecimento científico sem estar entrosados/as nos debates atuais. A rede IMISCOE é uma das estruturas mais propícias para acompanhar esses debates. No entanto, podemos dizer que a participação de Portugal é relativamente reduzida. A minha pergunta pretendia questionar de que forma se pode alcançar uma produção académica nacional crítica no campo das migrações, estando nós aqui à beira mar plantados e sem ter os recursos de muitas universidades europeias?   

DS – 
Sim, eu consigo observar isso perfeitamente. Acho que tens toda a razão nesse aspeto, claramente é necessário mais investimento na ciência, e nomeadamente ciências sociais, em Portugal. Por exemplo, nós tivemos acho que uma ou duas propostas ERC que foram concedidas a investigadores/as portugueses/as na última ronda, mas poderiam ser mais. Isso revela que nós temos investigadores/as muito bons/boas em Portugal, mas a questão agora é haver investimento na ciência e nas universidades. Eu penso que a participação na rede IMISCOE reflete precisamente onde é que há mais recursos, que é em certas universidades e institutos nos países do core da Europa, onde há mais recursos alocados à educação. Portanto, é necessário um investimento claro porque há investigadores/as muito qualificados/as que poderiam ficar em Portugal se se gerassem condições apelativas. Investimento e valorização é a única forma de evitar o braindrain em curso. Se calhar eu sou parte desse braindrain também. E tentar criar ligações fortes entre instituições. Gerar mais parcerias com universidades estrangeiras é, sem dúvida, um passo importante para Portugal ganhar centralidade no contexto europeu. Sinto que há espaço para isso, sinto que há espaço para mais parcerias. Em termos de projetos e alunos/as também, não é? Intercâmbio de alunos/as.

 

OEm – Da minha parte, é tudo. Agradeço muito o teu tempo e queria saber se queres acrescentar mais alguma coisa eventualmente?  

DS –
Obrigada pelo espaço de conversa e pelas perguntas. Acho que há só uma coisa que gostava de acrescentar, e que se calhar tu, enquanto investigadora, também já pensaste sobre o assunto, talvez todos nós o pensemos, que é: sabemos que a universidade é por vezes um bocadinho uma ivory tower, por isso, o que fazemos neste espaço, além de dar aulas, que é evidentemente uma forma de partilhar conhecimento, criar diálogos, gerar pensamento crítico, como é que tornamos os resultados da nossa investigação mais relevantes para a sociedade? Hoje fala-se muito de coprodução de conhecimento, mas o que é que isso significa na prática? Como é que fazemos isso acontecer na prática? Esse é um dos aspetos que eu sinto que quero contribuir mais e há de certeza, no espaço académico, mais espaço para criarmos formas de partilha, formas de co-creation, e tornar também os resultados dos nossos projetos de investigação mais abertos para que todos/as possam beneficiar. Recentemente, ainda no grupo “Ageing in a time of mobility”, no Instituto Max Planck, estive envolvida num projeto de visualização de resultados de investigação em colaboração com o ilustrador Álvaro Martínez, e foi uma experiência fantástica porque realmente permitiu trabalhar com pessoas com competências muito distintas, partilhar e dialogar, e assegurar que a investigação fica acessível a muitas mais pessoas. Esse é um aspeto no qual também tenho interesse. Vamos ver no futuro.

 

OEm – Obrigada.

 

Como citar Azevedo, Liliana (2023), “É preciso desmistificar as migrações e as mobilidades: entrevista com Dora Sampaio”, Observatório da Emigração, CIES, Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, 23 de fevereiro de 2023. http://observatorioemigracao.pt/np4/9119.html

 

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