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Migrações e segregação
Jorge Malheiros
Jorge Malheiros é geógrafo, investigador no Centro de Estudos Geográficos do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT, UL), onde também é professor associado, lecionando disciplinas no domínio da teoria e metodologias da geografia, da geografia social, das migrações e da geopolítica. Para além doutras funções em termos institucionais, Jorge Malheiros é correspondente português da OCDE. Nesta entrevista, o investigador fala-nos da sua trajetória pessoal e académica, dando especial relevo ao trabalho desenvolvido na área das migrações internacionais e da segregação social e espacial. Aborda ainda a sua colaboração no projeto REMIGR sobre a emigração portuguesa.

 

Entrevista realizada em Lisboa, a 24 outubro de 2016, por Inês Espírito Santo.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – O que é que na tua trajectória pessoal e académica te levou ao estudo das migrações?

Jorge Malheiros (à frente JM) – Talvez o nunca ter emigrado, ser a antítese das migrações. Vivi sempre em Lisboacom excepção de um período mais longo da minha infância durante o qual, por causa da guerra colonial, vivi com os meus avós em Tomar, no final dos anos 60. Depois disso toda a minha vida foi passada aqui em Lisboa, excepto durante curtos períodos. Quando fiz a minha tese de doutoramento, aos 30 anos, morei entre Lisboa e Roterdão, entre cá e lá. Antes disso, no início dos anos 90, tinha feito o mesmo entre Lisboa e Londres durante um ano letivo. Acho que o facto de nunca me ter verdadeiramente fixado no estrangeiro, sendo de um país onde a emigração é tão frequente, fez com que me interessasse pelo tema das migrações. Primeiro, por não ter uma experiência tão directa do processo; segundo, por ter a percepção da emigração como algo muito presente na realidade portuguesa; afinal, é a imagem do tio que todos nós temos na América ou no Brasil. Vi também o meu pai e a minha mãe a emigrar, numa fase mais avançada na vida, quando tinha 20 anos. Era uma emigração mais qualifıcada, mas ainda assim passaram mais de 20 anos no Luxemburgo. Mais cedo, nos anos 70, mais concretamente em 75 e 76, também tive a consciência da chegada súbita de muitas pessoas com as quais contactámos. A meio do ano lectivo chegaram à nossa escola uns quantos miúdos que vinham de África. Foi a primeira experiência directa e concreta da migração; viver os impactos da migração trouxe um lado prático, aperceberes-te das saídas e das entradas num país, das pessoas que circulam e mudam muito. E embora a minha vida seja a antítese desta mudança, vivi num caldo onde muita gente entrava e saía. Depois há o lado académico, não sou um “migrantólogo” como dizem alguns colegas na América Latina, mas sou geógrafo e assumo-me como tal. Passei uns anos a tentar compreender porque tinha decidido estudar geografia. Há uns tempos, refletindo sobre as coisas, porque com a idade conseguimos sempre perceber e verbalizar melhor as motivações, compreendi que a razão pela qual escolhi geografia terá ocorrido pelos 17-18 anos, altura em que vamos formando a nossa consciência social. Nessa altura constatei que nos diferentes países havia uma distribução muito díspar das “coisas” e isso preocupava-me. Havia regiões com muitos recursos, com alta formação, com muito capital e outras com uma qualidade de vida baixa, sem recursos, e percebia mal esta desigualdade. Como as unidades de análise que me interessavam eram as regiões e os países, e possuia desde pequeno um gosto pelos mapas e por viajar, a geografia foi-me despertando o interesse. Na verdade, entendia que o “casamentos” dos meus interesses acontecia nos cursos de geografia, pelo que a determinada altura me pareceu relativmente óbvio inscrever-me em geografia; podia ter sido economia, mas a primeira escolha foi geografia, até por influência de alguns professores do secundária e da própria universidade. Entretanto, foi começando a fazer sentido para mim que as coisas estão distribuídas de formas diferentes mas há uma serie de vasos comunicantes, os bens circulam, o capital circula, as pessoas circulam… a velocidades diferentes, é certo… Interessado pela geografia social, a questão da circulação de pessoas foi ganhando mais peso à medida que fui avançando na licenciatura. As pessoas circulam precisamente porque vão à procura dos lugares onde acham que vão encontrar recursos melhores. Pode ser trabalho, pode ser terra que vão ocupar, pode ser uma experiência académica, vão à procura de um sítio onde acham que vão ter uma vida melhor, com mais qualidade. Compreender a mobilidade como um factor fundamental na criação de oportunidades para as pessoas tornou-se essencial, quer do ponto de vista académico, quer do ponto de vista humano. Perceber a mobilidade e aquilo que ela pode trazer ou não de qualidade de vida às pessoas foi o que me fez chegar às migrações enquanto objecto de estudo. Depois, a própria esfera pessoal terá alguma influência. Porventura, as minhas relações afectivas com pessoas vindas da imigração, na altura da licenciatura, também terão levado ao crescimento do meu entusiasmo por povos diferentes. Acho que, na vida, as coisas têm de se fazer de forma apaixonada e essa ligação a pessoas diferentes também ajudou a que a questão das migrações entrasse no meu plano de trabalho.

 

OEm – Onde fizeste o teu percurso académico? E sobre que temas te debruçaste?

JM – Fiz tudo na Universidade de Lisboa e tudo em Geografia. Aí também fui a antitese das migrações e fui bastante endogâmico; creio que hoje tentaria fazer de forma diferente. Só na altura do doutoramento é que houve as tais saídas para o estrangeiro: por exemplo, ter um co-orientador inglês abriu horizontes e levou a que a parte inicial da formação tivesse lugar em Sussex, na Inglaterra. Portanto, durantes uns meses, para desenvolver a parte conceptual e teórica, estive algum tempo em Inglaterra. Na parte empírica do estudo, comparei situações de imigração em Lisboa e em Roterdão, onde passei algum tempo. Interessei-me pelos cabo-verdianos e pelos indianos que, de resto, já tinha estudado na tese de mestrado, trabalho em que contei com o incentivo do Rui Pena Pires que, para além de informação, debateu assuntos vários e fez belas sugestões bibliográficas. Onde é que entra a geografia nisto? Entra nas perspectivas e nas preocupações. A ideia do doutoramento passava por juntar a mobilidade global, um certo vai-e-vem migratório, aos impactos na cidade e na sua organização. Por trás da tese está a ideia de que estes grupos migrantes, apesar de desenvolverem práticas transnacionais bastante intensas, não só não perdem em termos de integração, para usar um termo de que a União Europeia gosta, como são mesmo capazes de dar contributos porventura melhores para o processo de transformação da cidade onde estão (ao nível das actividades comerciais, do diálogo e da compreensão dos outros, das novas ofertas culturais). E conseguem isto mantendo uma ligação forte com os territórios de origem, podendo também lá gerar dinâmicas de desenvolvimento e mudança. Levam novas ideias, estabelecem pontes de contacto, abrem novos negócios, angariam fundos para melhorar o sistema de saneamento básico, contribuem para o apoio escolar, etc. Ao olhar deste modo para o trasnacionalismo migrante demonstra-se que a manutenção de ligações importantes à origem não significa má integração; significa sim, com frequência, hibridez cultural, dupla pertença, o que se pode traduzir num contributo importante para as cidades de destino e de origem. Muitas vezes, os migrantes funcionam como uma forma de internacionalização secundária. Neste casos, ao colaborarem mais ou menos intensamente com as autarquias e outros actores sociais, acabam por ser um veículo que ajuda a internacionalizar as cidades.

OEm – Acabas o teu doutoramento no ano 2001. Nessa altura a junção entre territorialidade e migrações ainda era bastante original em Portugal?

JM – Talvez, apesar de termos vários geógrafos pioneiros no estudo moderno das migrações em Portugal, como o João Evangelista ou o Jorge Arroteia, para citar apenas dois. De qualquer forma, essa era a ideia-base da tese de doutoramento, quer a uma escala macro (o trasnacionalismo), quer a uma escala local, da cidade. Ao dizer que há um impacto dos imigrantes na cidade, procuro perceber onde estão e como se organizam espacialmente em termos residenciais, mas também do ponto de vista das atividades económicas e das práticas sociais quotidianas. No fundo, tudo isto se relaciona com a temática da segregação espacial, que corresponde, em larga medida, ao modo como a dimensão social tem expressão no território. Trata-se de perceber como é que a exclusão enquanto processo social dá origem à segregação territorial. Como é que estes grupos sociais e étnicos se distribuem? Nada é um acaso. Sabemos disso desde a Idade Média e é por isso que existiam judiarias ou mourarias em Lisboa e noutras cidades medievais ou, ainda antes, na Antiguidade Clássica, quando verificamos que as elites estavam espacialmente próximas dos centros geográficos do poder. Pelas análises daqueles que no século XIX estudaram o desenvolvimento das cidades no quadro do capitalismo emergente, na Inglaterra, como Engels, ou em França, como Halbwachs, a ideia de uma cidade que se vai separando em termos de manchas socialmente distintas torna-se progressivamente mais clara. A apropriação da propriedade urbana e a geração de mais-valias fundiárias associadas à criação de determinados espaços onde a burguesia ou os trabalhadores migrantes internos se vão instalando, torna a imagem de uma cidade socialmente segregada muito clara desde a revolução industrial. A esta dimensão junta-se a componente étnica de que estávamos a falar. Como é que os grupos étnicos se distribuem na cidade? Qual a sua capacidade de acesso às diferentes áreas desta? Isso traduz-se numa situação de desvantagem? Que tipo de habitação? São melhor ou pior servidas de transportes? Nota que muitas destas preocupações estão muito relacionadas com os processos estudados pela Escola de Chicago dos anos 20 e 30 do século passado, quando analisava, numa perspetiva excessivamente darwinista, talvez, a formação de guetos e as suas características ou os processos de desvalorização de determinadas áreas do centro da cidade por via do empobrecimento, da fixação de migrantes e da diminuição das oportunidades. Foi sobre isso que me comecei a interessar entre a tese de mestrado e a de doutoramento. Queria perceber o modelo espacial de organização das cidades – sobretudo portuguesas e da Europa do Sul. Se havia uma forma de organização, onde se localizavam e como se distribuiam os diversos grupos de imigrantes? Que diferenças existem nos padrões espaciais destes e dos autóctones? Afinal, o que se concentra muito num sítio acaba por se afastar muito de outro. Quando vemos a distribuiçao dentro da Área Metropolitana de Lisboa, verificamos que os grupos de imigrantes europeus aparecem mais concentrados em Belém, Algés, Estoril e Cascais do que, por exemplo, os grupos africanos, mais presentes numa primeira coroa periférica que inclui freguesias da Amadora, de Sintra e de Loures. Este afastamento entre os grupos aponta para a existência de processos de auto-separação ou de auto-segregação que são protagonizados por grupos com mais recursos (os europeus, por exemplo) e que são bem exemplificados pelos condomínios fechados. Põe-se um muro à volta, somos nós que os construímos e lá dentro supostamente temos melhor qualidade de vida, separados dos outros. Aparentemente fugindo aos problemas da cidade e ao que os indesejáveis nos podem causar. Essa cidade mais separada, essa cidade dos condomínios, que está muito ligada aos processos de privatização, acaba por ser um pouco a antitese da cidade que desejamos: aberta a todos, que permite a mistura no espaço público de jovens e idosos, de locais e estrangeiros, de homens e mulheres. Em contrapartida, há processos de segregação quase impostos, que resultam da incapacidade dos indivíduos socialmente mais desfavorecidos e de muitos imigrantes laborais não comunitários (dos PALOP, do Bangladesh e mesmo do Brasil ou da Ucrânia, por exemplo) acederem a certas áreas da cidade porque não possuem os recursos económicos para tal, nem a capacidade de influência social e política para garantirem uma efetiva generalização do direito à cidade. É este interesse pela segregação que tem uma dimensão étnica que se cruza com a dimensão social que me fez trabalhar muito este lado da integração dos imigrantes e da dimensão espacial da exclusão.

 

OEm – O teu trabalho sobre a emigração inicia-se depois do teu doutoramento ou aparece mais tarde?

JM – É mais tarde. O primeiro momento em que a emigração me interessa até é um pouco episódico. Como disse, a dimensão transnacional é essencial no meu doutoramento e, neste âmbito, fui progressivamente dando mais atenção à política, ao voto e à participação política à distância, a partir do exterior. Na altura da tese, explorei essas vertentes a partir de autores como o Alejandro Portes, entre outros. Como tenho feito algum trabalho com colegas da América Latina com quem tenho aprendido muito, ao debater com uma investigadora mexicana, a Leticia Calderon, sobre transnacionalismo político, fiquei ainda mais alerta para a relevância das questões sociais e da participação política. Graças a uma proposta da Letícia, tive a oportunidade de trabalhar pela primeira vez sobre emigraçao e imigraçao ao mesmo tempo. Do lado da emigração, tentei perceber o que é que muda nos padrões de voto a partir de uma leitura da geografia eleitoral dos portugueses no exterior, desde que o direito de voto para a Assembleia da República foi instituido, no contexto da democracia. Quais as motivações que levaram Portugal a incorporar, desde este momento e no âmbito político, a Nação para além das fronteiras do Estado? Além disso, logo nos anos 80 do século XX, criou-se uma representação política de carácter consultivo que é o Conselho das Comunidades. Na verdade, progressivamente, ao analisar o transnacionalismo de indianos e cabo-verdianos, fui adquirindo consciência de que, dentro da Europa, e também fora dela, há uma diáspora lusa que desenvolve práticas transnacionais. De alguma forma, não fazia sentido olhar para grupos que tinham no seu “arquipélago migratório” Lisboa e outras cidades de Portugal sem olhar de um ponto vista diferente para o “arquipélago migratório” e o quadro relacional dos próprios portugueses. Afinal, os portugueses têm uma diáspora muitíssimo numerosa e evidenciam alguns dos processos essenciais do transacionalismo migrante, como o vai e vem migratório, a manutenção de uma identidade centrada em Portugal, a eventual transmissão geracional do “ser português”, a manutenção de trocas comeciais com Portugal. Todo este vai e vem virtual e real, mesmo na fase baixa da emigração, manteve-se, inclusive sustentado por estruturas do estado português que dão apoio aos emigrantes portugueses no exterior, como a Secretaria de Estado das Comunidades. Foi pois, neste quadro, que cheguei à emigração, primeiro a partir da dimensão política que resultou em dois ou três artigos publicados próximo do ano 2000 e, depois, num segundo olhar, aí há uns 10 anos atrás, em que procurei reflectir acerca das estruturas criadas pelo Estado Português para apoiar as ligações dos emigrantes ao país de origem. Como é que o Estado pretendia ligar-se aos emigrantes e como é que num contexto de competição internacional por talentos, Portugal colocou esse desiderato em prática? Tratava-se de compreender que apoio do estado é dado aos emigrantes portugueses e, também, como estes se auto-organizam nessa rede notável de associações espalhadas pelo mundo. Certo, é que a determinada altura me dei conta de haver uma imbricação curiosa entre a emigração portuguesa e outras migrações, sobretudo as migrações de outros países lusófonos. Por exemplo, até 1975, os cabo-verdianos que tinham emigrado eram portugueses e, nas suas rotas para o Luxemburgo, para França ou a Holanda, misturavam-se bastante com a emigração portuguesa. Detecta-se uma certa mistura entre povos migrantes lusófonos, um cruzamento nesta lógica do mundo das migrações lusófonas que permite partir para a noção do sistema de migração lusófono, trabalhado mais recentemente pelo José Carlos Marques e pelo Pedro Góis. Eu diria que a emigração portuguesa vai estando presente neste sistema, primeiro através da ideia do transnacionalismo luso e das suas consequências e, segundo, por via da sua ligação a outras migrações como a cabo-verdiana, mas também a guineense ou a sãotomense. Há um espaço Atlântico de migrações que, evidentemente, envolve o Brasil, onde há movimentos de cá para lá e vice-versa, que geograficamente dá um grande suporte a esta ideia de sistema migratório lusófono. Para lá destes exercícios que relacionam emigração portuguesa e imigrações, a ideia de trabalhar a emigração contemporânea de modo específico surge no final da década passada. Em 2010, no quadro do Anuário das Relações Exteriores, publicado pela Universidade Autónoma de Lisboa em colaboração com o Público, foi-me pedido um texto sobre a emigração portuguesa contemporânea. Havia a percepção que a emigração se estava a intensificar desde 2004 e 2005, como o Observatório da Emigração identifica, e muito bem. A informação começava a surgir de novo porque a problemática estava em cima da mesa, várias pessoas começaram a pensar nisso e o INE começou a fazer aparecer mais dados. Escrevi para esse Anuário o texto “Portugal 2010: o regresso ao país de emigração” que, de algum modo, marca o início de um interesse mais focalizado nas questões específicas da emigração portuguesa, sem que os meus interesses académicos pela imigração e pela integração dos imigrantes tenham desaparecido. Afinal, Portugal tem sido nas últimas três décadas, simultaneamente, país de imigração e emigração, ainda que as intensidades de uma e outra tenham variado no tempo. Curiosamente, ao nível do discurso político e social, mas também um pouco do próprio discurso académico, o final dos anos 90 e todo o primeiro decénio deste século foram marcados por uma fixação quase exclusiva nos assuntos da imigração, ao ponto de praticamente invisibilizar a questão da emigração, sendo quase assumido politicamente que esta não existia. Lembro-me, por exemplo, de várias recusas de financiamento de um projecto sobre emigração portuguesa muito querido à nossa malograda e notável colega Maria Ioannis Baganha, que mais tarde acabaria por desembocar no projecto REMIGR, serem justificadas com uma suposta fraca “relevância social”. Achava-se que a emigração não era relevante no início deste século, que só era característica de países subdesenvolvidos e, portanto, não valia a pena estudá-la. Quando começámos a ver que a emigração se mantinha e que, por exemplo, o perfil dos portugueses em Londres era mais qualificado e mais jovem do que o perfil em França, o estudo desses fluxos passou a ser importante. Claro que a enorme intensificação dos fluxos ocorrida na presente década e o regresso de um saldo migratório negativo colocaram a emigração de novo na agenda social e política e a situação é hoje bem diferente.

OEm – A tua colaboração com a OCDE não te conduziu também ao interesse sobre a emigração?

JM – A colaboraçao com a OCDE vem de 2001, da altura da tese de doutoramento. Há duas componentes que são óptimas no contexto da colaboração com a OCDE: a primeira é que permite ver do ponto de vista técnico o tratamento da informação, os problemas associados às diferenças nos critérios e modos de recolha dos vários países e, sobretudo, o esforço de harmonização que é efectuado. A OCDE, como sabemos, e não só na área das migrações, adopta essencialmente uma abordagem quantitativa, construindo bases estatísticas e trabalhando-as. Foi por isso que tive uma aprendizagem fortíssima do ponto de vista da análise estatística, da problemática das fontes, das formas de harmonizar e comparar dados e das limitações à sua conjugação. Em 2007, passei quatro meses na OCDE e acho que isso ajudou muito na dimensão técnica do meu trabalho, o que, no fundo, me ajuda também a compreender melhor o trabalho do próprio Observatório: diferenças nos critérios e modos de registo dos migrantes nos países de destino, necessidades constantes de actualização, desenvolvimento de técnicas para harmonizar dados e torná-los mais comparáveis. Chamemos a este aspecto a dimensão técnica e de tratamento de informação estatística sobre migrações internacionais, que é uma base essencial para a análise e a reflexão. A segunda componente de aprendizagem baseia-se nas apresentações e na discussão que ocorre nas reuniões, bem como num conjunto de instrumentos que são os relatórios nacionais que nos permitem perceber de alguma maneira o estado das migrações e, frequentemente, das percepções sobre as migrações nos vários países da OCDE, bem como as suas políticas migratórias. Trata-se de tendências gerais, actualizadas anualmente. Esta componente é ainda mais interessante do que a parte técnica porque temos acesso ao que se passa no conjunto de países da OCDE. Isso dá-nos imensos inputs para a reflexão. A questão da emigração tem menos relevo, porque a grande preocupação da OCDE é a imigração, sendo a maior parte do tempo das reuniões dedicado a esta última temática porque grande parte dos países da OCDE são países de destino. Se olhar para os relatórios que produzi durante anos, são constituídos por um capítulo de balanço e de contabilização do saldo migratório onde também está incluída a emigração, mas quando entro na componente anual preocupo-me essencialmente com a imigração. Nos capítulos seguintes apenas há um que trata da emigração. No final há um capítulo de políticas que inclui de facto alguma informação sobre a emigração, mas também sabemos que a política portuguesa das migrações internacionais tem sobretudo a ver com a imigração. Em suma, a minha colaboração com a OCDE tem-me proporcionado um conjunto de informações e de elementos de reflexão de tipo diverso que me ajudam a pensar de modo mais informado, completo e profundo a problemáticas das migrações internacionais à escala global, mas também no próprio caso português, sendo que a questão da imigração tende a sobrepor-se à da emigração.

OEm – Entretanto surge o projeto REMIGR, sobre o qual já conhecemos os trâmites de desenvolvimento através da entrevista que realizámos com o João Peixoto. Mas gostava de conhecer como se processou e em que consistiu a tua participação no projeto?

JM – Só me associo ao projeto em 2011 ou 2012, aquando da sua última submissão à FCT, ou seja, numa fase de austericídio e crise plena, quando a emigração é mais evidente. Naquela altura, o João Peixoto retoma a questão da emigração com os investigadores de Coimbra, agora num contexto social onde o tema já era mais apetecível. Havia um desconhecimento extensivo e intensivo da realidade da emigração contemporânea, o que justificou a criação de uma rica equipa interdisciplinar que integrou uma série de investigadores que formaram um grupo muito bom, tanto do ponto de vista institucional como das próprias pessoas. Foi um projeto muito conseguido e o mérito primeiro é do João Peixoto que soube liderar muito bem esta equipa durante cerca de quatro anos e criar uma relação muito boa entre todas as pessoas. Claro que o mais visível e cientificamente relevante foram os resultados a que chegámos, publicados em artigos e, também, num livro que saíu em 2016.

OEm – Há portanto uma interdisciplinaridade no projeto com os diferentes centros e investigadores que se associaram?

JM – As migrações, mas também a maioria dos temas sociais, podem ser, todos eles, abordados pelas várias disciplinas das ciências sociais. Pensando naquele texto tão elegante do Sedas Nunes, um clássico nos anos 70, diferentes centros de interesses acabam por produzir perspectivas diversas sobre o mesmo tema. Para compreender as migrações, cada um trabalha através da perspetiva da sua própria área disciplinar. Contudo, para uma compreensão mais profunda da temática é necessario, pelo menos, ter uma noção do que se faz nas outras ciências. Por exemplo, mesmo que adoptemos uma abordagem mais geográfica, mais centrada na mobilidade entre países, na organização espacial ou na materialização no espaço de processos de exclusão, isso não dispensa procurar na sociologia o que se diz sobre a exclusão social dos migrantes ou sobre os processos de integração. Só conseguimos compreender um fenómeno se o apreciarmos também através do olhar dos outros. Num projeto completo é preciso ter os olhares todos. Isto é um dos méritos do projeto REMIGR que, para além de ter juntado uma equipa muito boa, conseguiu cruzar olhares. Para um tema como as migrações é fundamental. No caso concreto do Centro de Estudos Geográficos do IGOT fizemos, por exemplo, um apanhado da informaçao geral e das estatísticas dos vários países, tendo colaborado de modo muito estreito com a Isabel Tiago de Oliveira, demógrafa no ISCTE. Numa outra fase, mais específica, acabámos por ficar com maior responsabilidade na análise das migrações para Sul, em particular Moçambique. Este país não estava previsto numa fase inicial do projecto, tendo-se aproveitado as circunstâncias para o incluir. No âmbito de um outro projeto internacional houve uma estadia na África do Sul, no qual eu e a minha colega e jovem investigadora Bárbara Ferreira, especialista em relações internacionais, participámos. Como Moçambique estava próximo, decidimos fazer uma avaliação da emigração portuguesa para este país in loco, tendo a Bárbara efetuado essa tarefa. Assumido que o assunto era relevante, conjugámos os nossos esforços com a colaboração de um estudante moçambicano do Doutoramento em Migrações, o Eugénio Santana, antropólogo de formação de base, que estava também a trabalhar a emigração portuguesa para Moçambique, numa perspectiva que destaca aspectos como as relações entre grupos e as questões identitárias. Decidimos, assim, acrescentar mais um país ao projecto, uma vez que a emigração portuguesa para Moçambique estava a crescer e já adquiria alguma importância, e se tratava de um espaço de destino quase inexplorado. Aproveitámos a oportunidade, o Eugénio e a Bárbara trabalharam e fizeram algumas entrevistas e aplicaram inquéritos, sobretudo em Maputo, tendo esta informação sido essencial para a produção do capítulo do livro dedicado a este destino migratório que é, efetivamente, o resultado da conjugação de formas de analisar e interpretar ancoradas em várias disciplinas diferentes. No fundo, é mais um exemplo da interdisciplinaridade a que aludes.

OEm – Como é que geriram as informações estatísticas que são escassas nesses dois países? Sabendo que há um pouco mais de informação dos censos que chega de Moçambique do que de Angola.

JM – Os recenseamentos não são bons nos dois casos. A diferença é que Angola não tinha nenhum, embora tenha feito um agora em 2014, pelo que começaram a aparecer resultados já na fase final do projeto, mas não os pudemos explorar. Antes desse, o último recenseamento de Angola era de 1970, ainda durante o periodo colonial. Além disso, havia uns “dados soltos” que fomos usando. No caso de Moçambıque, tivemos acesso a alguns dados de recenseamento que pudemos utilizar e que nos deram algumas pistas sobre a emigração portuguesa para este país. Mas também não são muitos, são um pouco mais actualizados do que os de Angola, mas não são muito abundantes. Também tinhamos colaboração quer com uma socióloga e professora na Universidade de Luanda, a Ermelinda Liberato, quer com uma geógrafa da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, a Inês Raimundo, que nos ajudaram a perceber os contornos da problemática da falta de informação e das suas motivações. O que acontece nestes países, mesmo havendo alguma informação, é que é difícil ter acesso a ela. Primeiro porque se espera que se pague para aceder à informação, de forma mais implícita ou mais explícita, e, segundo, em estados com uma lógica autoritária a ideia da cedêncıa da informação não está completamente adquirida. Em boa verdade, é preciso também dizer que em estados democráticos mais consolidados há decisões políticas que são tomadas com base na não utilização ou no escamoteamento da informação. Mas se a gestão com base na não difusão pública da informação acontece em todo o lado, nos estados com uma componente mais autoritária ainda há mais resistência a torná-la pública. Nota que, nestes casos, a informação era pouca e relativamente desactualizada. Conseguiu-se fazer alguma caracterização da emigração portuguesa em Angola e Moçambique, mas foi sobretudo através de uma recolha extensiva com base em inquéritos por questionário, aplicados de forma combinada on line e directamente, com o envolvimento essencial das duas coordenadoras locais.

OEm – Quais os resultados que foram importantes para ti nesta experiência de pesquisa em países do Sul?

JM – Interessarmo-nos sobre este tipo de emigração leva-nos a reflectir sobre as coisas que fazemos, sobre a relevância das ciências sociais, da investigação. Um dos pontos que me interessou pessoalmente nesta pesquisa e que ainda me interessa é o significado das migrações Norte-Sul que, evidentemente, não correspondem ao processo paradigmático. Em que medida, do ponto de vista do modo como olhamos para as migrações, este tipo migratório Norte-Sul ajuda a repensar os conceitos habituais que temos? Migra-se das áreas onde há menos recursos para as áreas onde há mais recursos, das regiões menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas. Neste caso, as coisas acontecem ao contrário e, depois, percebemos que nesses sítios também há recursos. A lógica de migração para Sul torna ainda mais evidente a questão da segmentação profissional. É uma emigração essencialmente qualificada. Não faz sentido, uma emigração pouco qualificada ir para Sul competir com uma oferta de mão-de-obra abundante e mais barata. Ser trolha em Lisboa é melhor do que ser trolha em Luanda ou em Maputo. Ser quadro superior de uma empresa já é diferente. No que diz respeito às oportunidades de negócio, qual é a lógica de apostar num negócio no Sul? Também há esse lado, do pequeno e médio investidor; não é só ir trabalhar para grandes empresas. Trata-se, portanto, de tentar perceber estas questões migratórias que envolvem deslocações de regiões mais desenvolvidas para destinos menos desenvolvidos e que nos fazem reflectir sobre as desigualdades em termos de oportunidade de trabalho e de abertura de negócios, as transferências de remessas… Neste exemplo das remessas inverte-se o processo, elas vêm do Sul para o Norte… sendo que por vezes acontecem casos interessantes em que não existem muitas remessas. Moçambique tem essa característica, já Angola não. O estudo da migração para Sul conduz-nos também a repensar o quadro habitual das teorias das migrações. Esse é o interesse que vai para lá do caso concreto da emigração portuguesa. O Brasil também seria outro caso que nos pode ajudar nesta reflexão. Seria também interessante comparar com outros casos de migrações Norte-Sul, por exemplo os espanhóis e os italianos. Há a componente da aventura que se nota sobretudo nos jovens: afinal, como é que, num mundo global, a emigração de jovens para Sul faz parte de uma lógica de aventura e de desejo de conhecimento de um outro espaço? Às vezes não há um interesse explicito de arranjar logo trabalho. Há um jogo entre conhecer o sítio, estar no sítio e, ao mesmo tempo, porventura, ter uma experiência profissional. Pode acontecer a seguir a uma experiência de voluntariado ou depois da formação superior. Há esse lado em que aventura e migração se juntam. Todos estes aspectos devem ser tidos em conta na reflexão acerca do modo como a migração para Sul nos ajuda a repensar o quadro analítico habitual das migrações internacionais.

OEm – Pensas partir dos resultados obtidos no projeto REMIGR e das conclusões do livro Regresso ao Futuro para continuar a trabalhar nessa linha de estudo?

JM – Apetece-me sobretudo explorar mais os dados de Angola e Moçambique, porque o que está refletido no livro é a caracterização da emigração portuguesa e, no contexto das conclusões, como é que a emigração para esses dois países se aproxima ou se diferencia da emigração portuguesa para outros sítios. São mais qualificados ou não? Ganham mais ou não? Têm mais ou menos ligações a Portugal? O que fizemos foi uma comparação no quadro da emigração portuguesa contemporânea. Relativamente a projetos futuros, aquilo que eu gostaria de fazer é passar desta visão centrada na emigração portuguesa para uma visão comparativa, digamos transnacional, que cruze olhares de vários especialistas e tente, em termos empíricos, aprofundar as semelhanças e diferenças em relação a outras migrações para Sul. A partir daí, seria fundamental ver de que modo isso nos poderia ajudar a complementar ou mesmo a modificar as perspetivas dominantes na análise das migrações, em termos conceptuais e teóricos, praticamente todas baseadas num “olhar do Norte”, que se percebe como destino migratório. Afinal, o que é que as análises centradas num “ir para o Sul” representam em termos de avanços para a análise do fenómeno migratório? Isso era o que eu gostava de fazer agora no âmbito de um projeto internacional que teria de envolver, forçosamente, a contribuição de especialistas em migrações dos países do Sul, nomeadamente da África e da América Latina.

 

Como citar  Espírito-Santo, Inês (2016), “Migrações e segregação: entrevista com Jorge Malheiros”, Observatório da Emigração, 24 de outubro de 2016. http://observatorioemigracao.pt/np4/5845.html

 

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