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O futebol na imagem do Portugal moderno entre os luso-descendentes
Nina Tiesler
Nina Tiesler é socióloga, doutorada em ciências comparadas da religião pela Universidade de Hanôver, Alemanha (2004), e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Está a coordenar o projecto DIASBOLA, financiado pela FCT. Os seus atuais interesses de investigação passam pelo Islão translocal, desporto e diáspora, futebol e a sociedade, diáspora portuguesa.

 

Entrevista realizada em Lisboa, 13 de Maio de 2009, por Cláudia Pereira. 

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) - Começaríamos por perguntar como surgiu a ideia do estudo "Diasbola, futebol e migração"...?

Nina Tiesler (à frente NT) - A ideia para realizar um projecto sobre futebol e migração no âmbito da academia portuguesa surgiu dentro de um grupo de investigadores, na maioria estrangeiros, que já estava a trabalhar em conjunto noutro projecto sobre o futebol globalizado. Reparámos que no caso português há ainda uma grande lacuna na pesquisa sobre o futebol, enquanto a emigração portuguesa é sempre um tema pertinente aqui na comunidade académica, se calhar porque a comunidade académica pós-25 de Abril em Portugal foi formada por pessoas que voltaram do estrangeiro, que tinham uma experiência de migração... Juntar este tema geral da emigração portuguesa com um elemento particular da construção de uma cultura portuguesa, nomeadamente a identificação futebolística, de repente pareceu-nos óbvio.

 

OEm Todos já vinham da área da emigração portuguesa, de certa forma...

NT - Éramos 3 ou 4 pessoas com experiência etnográfica em terrenos específicos, a maioria dos investigadores da Diasbola fez uma tese de doutoramento num destes terrenos particulares, com experiência etnográfica. Por exemplo, o Miguel Moniz trabalhava nos Estados Unidos, o Victor Pereira em França, o Nuno Domingos em Moçambique - mas também com muita experiência em Londres porque foi lá que ele fez o seu doutoramento, no SOAS - a Nélia Bergano como bolseira do projecto, além de ter nascido e vivido na Alemanha, tal como eu. Não foi uma coincidência haver muitos luso-descendentes na equipa de investigação do projecto, à excepção do Nuno Domingos que tem uma experiência migratória porque fez o doutoramento em Londres, mas conviveu lá com muitos portugueses, especialmente na ocasião de jogos de futebol. Os outros são luso-descendentes, até foram socializados no contexto da pesquisa deles, nos Estados Unidos, na Alemanha, em França, fizeram os doutoramentos e os percursos académicos lá, então não é só uma experiência etnográfica que vinha de um projecto de pesquisa mas realmente do percurso de vida deles. Também foi fulcral falarem ambas as línguas - a do contexto de acolhimento e o português -, senão não tínhamos acesso à experiência quotidiana dos portugueses. Portanto, já tínhamos trabalhado noutros aspectos sobre migração e/ou portugueses nestes terrenos. Mas um elemento tão visível e importante no quotidiano destes grupos portugueses era o futebol. Recorremos à bibliografia sobre a emigração portuguesa e não encontrámos nenhuma obra a dar um enfoque ao futebol nestas realidades, acho que foi só uma nota de rodapé...

Nuno Domingos 1 - O Victor Pereira encontrou uma pequena referência, mas muito pequena.

NT –  Na publicação do Daniel de Melo como co-organizador do livro Construção da Nação e Associativismo na Emigração Portuguesa há uma nota de rodapé. Todavia, na antropologia, como na história ou na sociologia emergiu a necessidade de dar uma certa importância às imagens que estão a contribuir para a construção de espaços simbólicos ou físicos e basta entrar numa tasca portuguesa para encontrar "a bola". A gastronomia é um vínculo muito importante nos espaços lusófonos fora de Portugal, como o é a tasca, o bar, a pastelaria,  e como o são as associações. E todos têm uma televisão, principalmente a mostrar jogos da Super Liga ou equipas portuguesas nas competições internacionais. E a decoração das salas está dominada por ícones do futebol, como por exemplo os cartazes de equipas do futebol português, ou símbolos do Benfica, do Porto, do Sporting.

 

OEm - Depois da ideia e de se reunirem, como é que o projecto prosseguiu?

NT – Estranhámos porque é que ainda não foi analisado o papel do futebol na vida emigrante, no quotidiano, nos vários eventos, então candidatámo-nos a um projecto na FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), e recebemos uma avaliação internacional muito alta, perceberam que este triângulo diáspora-identificação nacional-ligações com a terra (home) era um terreno ainda a explorar, e que tinha significado.

 

OEm - E foi então assim que surgiu a pesquisa em vários países onde a emigração portuguesa é significativa...

NT – Escolhemos os terrenos também um pouco através dos conhecimentos dos membros previstos para a equipa, mas também tínhamos razões objectivas para a escolha. Por exemplo, Paris ou França não devia faltar porque tem a percentagem mais alta de portugueses na Europa, a zona de Stockwell (em Londres) porque há quase 50 mil portugueses ou pessoas que falam português dentro de um bairro concentrado, o que também é para destacar. Na Alemanha escolhemos de uma forma pouco atípica, escolhemos uma cidade que não tem uma presença tão massiva, organizada e institucionalizada de portugueses, mas onde conseguimos muito bem observar a mobilidade social e como essa mobilidade social da comunidade pode diluir o sentido de comunidade portuguesa, o que é muito interessante, e sabíamos isso através da nossa experiência anterior. Depois queríamos um contexto não-europeu porque o futebol tem um outro papel nas sociedades europeias do que, por exemplo, nos Estados Unidos porque lá o futebol não é tão importante como o basquetebol ou o basebol. O futebol nos Estados Unidos é um terreno dominado pelos imigrantes, italianos, irlandeses, portugueses e também não é o desporto-rei masculino, é no feminino. Sendo assim, é interessante ver a comparação com terrenos europeus. Queríamos Moçambique devido à história colonial e o Nuno Domingos analisou que lá as dinâmicas são bastante específicas e que diferem de contextos europeus por causa dos laços específicos da comunidade. No Brasil, um país onde o futebol é também o desporto-rei e também tem luso-descendentes, temos de diferenciar da categoria dos luso-descendentes na Europa. Em geral, foi importante ver as gerações mais velhas em comparação com as mais jovens porque nos estudos das migrações não é uma surpresa que a ligação à terra-natal dos pais e, por exemplo, as habilidades da língua, etc., mudarem de geração para geração - o que é muito saudável. Estávamos curiosos para ver qual é o papel do futebol entre os luso-descendentes em comparação com os pais deles, tanto como elo entre as gerações, e também sempre em comparação com outros elementos que foram analisados na literatura académica com muito rigor, por exemplo, a cozinha portuguesa na emigração, a música, o folclore, os ranchos, o património, o calendário de festejos e o comportamento eleitoral, o interesse nos temas que vêm de Portugal e o consumo dos média. Só podemos qualificar o papel do futebol em comparação a outros elementos que fornecem ou constroem uma ligação a Portugal ou à região de origem.

 

OEm - Do que li no vosso sítio electrónico, Diasbola, penso que o tema específico do projecto é analisar, por um lado, o papel que o futebol tem para os emigrantes portugueses e, por outro lado, analisar os próprios portugueses que participam em equipas de futebol...

NT – É sempre o papel do futebol, o lado do consumo através dos média e o jogo activo como actividade de lazer. Abordámos o papel dos jornais, da televisão, da rádio (que já não está tão em destaque hoje em dia como a televisão mas foi importante para os primeiros emigrantes), a Internet, as novas tecnologias que são hoje o principal meio para aceder informações vindos de Portugal. Curiosamente, ou não, a motivação principal dos nossos entrevistados para recorrer aos média foi ter acesso a informações sobre o futebol português. Chegámos à conclusão que, além do consumo, claro, o futebol jogado também tem um papel fulcral na interacção com outros grupos na sociedade de acolhimento. Assim, não tivemos que fazer uma nova invenção da roda, o papel do futebol na sociedade portuguesa já é grande, é visível a importância social, cultural, tanto no consumo e identificação, como nas associações recreativas, activas em termos de futebol amador. O Nuno talvez queira comentar.

Nuno Domingos - Eu acho que o mais importante num projecto como este é poder atribuir ao futebol uma centralidade que normalmente não é levada em conta nos estudos académicos, não apenas entre emigrantes, mas também em Portugal. Aliás, é típico quando se fala de futebol surgirem sorrisos como se fosse algo menor, a questão não é ser uma questão de opinião, é uma questão concreta, e hoje, como já há bastante tempo, é um fenómeno absolutamente central na sociedade portuguesa, a partir do qual se podem estudar vários aspectos. Pareceu-nos neste caso que também é um fenómeno importante entre emigrantes portugueses e uma das práticas de consumo, porque no acabam por reproduzir experiências que já vinham do local de origem e isso interessava-nos. Por exemplo, é impressionante o número de associações entre emigrantes cuja base é desportiva, realmente é impressionante. Ao contrário de outro tipo de práticas que estão muito ligadas a Portugal, seja o folclore ou tradições gastronómicas, o futebol é uma linguagem mais universal, ao mesmo tempo que é uma forma de as pessoas que vêm do mesmo país se juntarem também facilmente, é uma forma de comunicar com os outros, algo que não acontece com o folclore, por exemplo, ou mesmo em práticas mais fechadas torna-se mais difícil. O futebol tem uma linguagem mais universal, passa na televisão, vê-se com muita facilidade, os jogadores são conhecidos, toda a gente sabe quem é o Ronaldo, o Mourinho, etc., faz parte do género de cultura popular globalizada, portanto também acaba por ser uma forma de integração interessante e bastante moderna. O futebol comparado com outras práticas dos portugueses é muito mais moderno, nesse sentido é muito mais quotidiano. Se olharmos para o dia-a-dia destes portugueses, o número de associações que tem a televisão ligada na SportTV ou em canais que passam jogos quase permanentemente, o número de jornais desportivos portugueses que se vêem nesses sítios - aliás, às vezes são os únicos jornais que se vêem - é impressionante o peso que têm no quotidiano, nas conversas das pessoas, é um dos laços que acaba por ser mais importante e tem sido muito pouco tratado. Por exemplo, no livro co-organizado pelo Daniel de Melo, que é um trabalho meritório em vários aspectos, o futebol é algo secundário, quando na realidade tem uma importância relativa muito maior do que aparentemente um estudo sobre o associativismo pode ter, nesse sentido este projecto veio tratar de algo que já lá estava e à espera de ser tratado...

 

OEm - Ou seja, o papel do futebol nos emigrantes portugueses é tão visível que por isso mesmo ninguém se lembrou de o investigar...

NT – Era tão visível que, se calhar, para outros investigadores era banal. É tão natural que num espaço português, como uma tasca, o futebol esteja omnipresente, que não vale a pena falar disso. Mas também é o problema da comunidade académica, senão fosse a da Inglaterra que dá bastante valor aos estudos sobre desportos como o futebol...

 

OEm - Há já uma certa tradição em Inglaterra nos estudos sobre o futebol, é isso?

NT - Eles também estão a lutar...

Nuno Domingos - A academia é também muito mais sedimentada, apanharam os cultural studies e a partir daí ... A academia portuguesa começa, nos moldes em que a conhecemos, hoje só a partir do 25 de Abril, é evidente que num conjunto de temas mais importantes como a economia. Nós só muito mais tarde começámos a chegar a outras questões, quer dizer, estudos em Portugal sobre o futebol no âmbito são bastante recentes...

NT – São muito recentes e acho que ainda existe este preconceito que vem destas antigas dicotomias na sociologia sobre o que vale a pena estudar, a diferença entre o lúdico e o frívolo, algo que envolve o corpo mais do que a mente, e ainda há este preconceito que o futebol é um fenómeno de classe baixa, o que é historicamente e sociologicamente errado. O futebol nasceu como um desporto das elites, à partida ninguém que tivesse de trabalhar tinha tempo para jogar à bola, isto apenas se passou com a profissionalização e a comercialização do desporto que assim se tornou mais democrático e aberto para todas a câmaras sociais. O futebol nasceu como um instrumento pedagógico para disciplinar os filhos dos altos militares...

Nuno Domingos - No caso da emigração portuguesa também tem a ver com o tipo de emigração que existe, ou seja, a emigração não é proporcional às classes sociais em Portugal, é uma emigração de motivação económica. Há clubes amadores em que jogam portugueses, mas são uma minoria, digamos que como prática comparada com o tempo que se gasta a ver televisão ou a ler jornais desportivos esta dimensão de consumo é muito maior.

NT - Por exemplo, em França os portugueses têm muito mais clubes de futebol amador do que qualquer outro grupo de emigrantes, e os clubes estão oficialmente registados como "Luso/Portugal/português/etc". Nem os turcos que também têm clubes de futebol têm Turquia no nome da associação futebolística. Através do futebol, os portugueses estão a expressar uma ligação a Portugal muito maior do que qualquer outro país com os seus emigrantes, mesmo a nível recreativo. Também trabalhámos com emigrantes que não reproduzem a antiga imagem do emigrante português típico, os novos emigrantes mais jovens com um percurso académico ou a trabalhar na bolsa em Londres, entre outros, eles também vão ao estádio para ver os jogos, para eles também é engraçado ir a uma tasca que normalmente não é suficientemente sofisticada para o seu consumo, mas para ver os jogos de futebol eles gostam de ir a estas tascas típicas portuguesas e juntar-se com outros portugueses.

 

OEm - O tema do futebol também é útil para perceber outras dinâmicas da emigração portuguesa...

Nuno Domingos - Sim,um tema destes também é útil não só para perceber o futebol mas também para perceber as relações inter-geracionais, há um conjunto de questões que tem a ver com a emigração e o futebol acaba por ser uma óptica interessante para as analisar.

NT - Normalmente a imagem que os pais trazem de Portugal e transmitem aos filhos, na memória construída, é como uma foto a preto e branco e congelada, por exemplo quem veio de Trás-os-Montes há 30 anos o que se lembra é de uma imagem a preto e branco que não provoca muito afecto nas novas gerações. Todavia, o Euro 2004 levou a uma grande viragem na imagem de Portugal porque transmitiu a todo o mundo a imagem de um Portugal moderno, onde tudo funciona....

 

OEm - Sentiram então o impacto do Euro 2004 nos emigrantes portugueses...

Nuno Domingos - Nota-se que é mais fácil os filhos identificarem-se com o futebol do que com o folclore, por exemplo.

NT – Nos ranchos, nos grupos folclóricos, todos podem participar mas o acesso não é assim tão democrático como, por exemplo, simplesmente fazer um convívio a ver a bola ou a jogar juntos. Os ranchos são muito determinados pelas políticas do multiculturalismo do país em particular, por exemplo na Alemanha é típico num evento cultural de convívio de culturas diferentes haver alemães que podem apresentar o que querem, normalmente algo muito moderno, e os portugueses são convidados para reproduzir esta imagem do séc. XIX e não do Portugal moderno. O futebol é a face moderna de um país bastante desenvolvido,Portugal joga muito alto no ranking da FIFA e relativamente à sua dimensão geográfica, pequena, produziu uma grande quantidade de talentos e profissionais futebolísticos muito conhecidos no estrangeiro. O futebol fornece uma língua universal e uma imagem do Portugal moderno que é importante para os luso-descendentes.

 

OEm - Portanto, o futebol veio mesmo provocar uma mudança na identificação dos emigrantes?

Nuno Domingos - Basta pensar que numa escola com crianças portuguesas na França ou na Inglaterra onde andam outras crianças é mais fácil elas comunicarem a falarem sobre o futebol do que sobre um rancho folclórico ou sobre o que se passa neste país que eles neste momento já não conhecem muito bem, podem nem já se lembrar do nome do presidente da República mas sabem quem é o Ronaldo ou o Mourinho ou o que é o Benfica. Em termos de comunicação é algo mais moderno do que tudo o resto que é associado a Portugal, o que é que se fala do país ou dos portugueses em França ou na Inglaterra na comunicação generalista? Fala-se muito pouco e o futebol em termos profissionais começa a ter uma importância bastante maior.

NT – O futebol abre também um espaço emancipador, quando o Benfica jogou com o Lille (norte de França) em 2002, penso, eles tiveram que deslocar este jogo da Liga dos Campeões para um estádio muito maior perto de Paris - e a maioria dos espectadores eram portugueses e não franceses. Acho que foi um empate, mas mesmo assim os portugueses foram os dominantes no estádio durante os 90 minutos. De uma forma geral, os portugueses conseguiram emancipar-se deste estatuto social muitas vezes subalterno que têm, por exemplo, em França, embora não seja em todo o lado assim. Estamos também num terreno onde as emoções estão em jogo, um estádio de futebol é um dos poucos espaços na sociedade moderna onde se vivem as emoções sem ter vergonha, podemos chorar, gritar, enquanto no resto da sociedade temos que controlar as emoções.

 

OEm – Quando é que o vosso projecto começou exactamente?

NT – Em Novembro de 2007.

 

OEm - Entretanto o Diasbola já tem um sítio electrónico muito apelativo e com muita informação. Não sendo comum os projectos terem sítio electrónico, como é que vos surgiu a ideia? O que têm no vosso website não é apenas sobre o futebol entre os emigrantes, mas também tem bibliografia sobre os emigrantes, entrevistas, informação sobre os países, vários artigos de jornais, relatórios...

NT – Nós partilhamos a política do open access, se nós próprios fizemos uma grande pesquisa bibliográfica, achámos que a devíamos disponibilizar para outras pessoas que trabalham sobre o mesmo tema e cujos trabalhos também nos ajudaram bastante. Quisemos também criar uma plataforma de troca de informações não só para académicos mas também para emigrantes, quisemos motivar emigrantes portugueses a participar no nosso questionário em linhapublicámos lá alguns resultados do projecto, temos country reports. Eu e o Nuno Domingos estamos agora a finalizar o livro Futebol Português, o nosso ponto de partida foi o Futebol Globalizado (Analise Social 179, disponível em linha) e depois achámos que para investigar o papel do futebol na emigração portuguesa tínhamos de analisar o futebol português. Só esta categoria de "futebol português", que é usada muito frequentemente, já é um mistério. Quando se fala na Alemanha do futebol português, o que significa isso? É uma categoria essencialista? Não, já não é, porque a emigração também dinamizou esta categoria, é o Ronaldo a jogar no Real Madrid, é o Mourinho no InterMilão, é a equipa de Chelsea que já "pertence" ao povo português... Por isso, quisemos fazer este livro do futebol português porque achámos crucial antes de analisar esta questão mais específica da emigração. Realizámos também um conjunto de eventos, workshops, temos instituições participantes na Inglaterra, dois investigadores que já participaram no projecto do Futebol Globalizado. A ligação a Inglaterra foi muito importante para nós, pelas  discussões que tivemos, a possibilidade de ter alguém que se concentra no nosso work in progress e vem de outro background académico, onde os estudos de futebol nas ciências sociais já estão mais desenvolvidos, na Universidade de Leeds e em Manchester. Além do livro, estamos também a terminar artigos para números temáticos em revistas académicas com os resultados.

 

OEm - Vão parar por aqui?

NT – Oficialmente terminamos o projecto em Outubro e já desenvolvemos um novo que é uma boa ponte, é um projecto também sobre futebol e migração, desta vez especificamente sobre a migração de atletas. Vamos ver se conseguimos. A equipa é nova mas também com o Nuno Domingos e o Victor Pereira, o projecto é sobre a migração de jogadoras do futebol feminino, nunca foi feito um estudo sobre este tema porque é historicamente recente. O caso português nem tem ainda um estudo sobre a emigração de jogadores de futebol masculinos... Sei de uma tese de doutoramento em curso de um investigador em Coimbra que está a trabalhar sobre a imigração de jogadores para Portugal, mas a emigração de jogadores masculinos portugueses ainda não está analisada, vão ser o Victor Pereira e o Nuno Domingos a fazer isto junto com colegas da Dinamarca e do Brasil, vamos tentar analisar também o novo fenómeno da migração feminina do futebol internacional. Curiosamente, é a mesma migração que causa uma profissionalização do futebol feminino. Continuamos a trabalhar com emigrantes portugueses, neste caso jogadores homens e mulheres.

 

OEm - E nos vossos estudos de caso dos diversos países houve algo de comum relativamente à emigração portuguesa em todos eles e alguma diferença visível, para além dos aspectos que já referiram?

Nuno Domingos - Talvez o caso mais diferente seja Moçambique porque tem uma história particular, pelo facto de a chamada "comunidade portuguesa" ser um grupo muito particular, cujas características são bastante diferentes dos portugueses que estão nos outros países. O caso moçambicano nesse aspecto afasta-se dos outros países envolvidos no projecto, sobretudo porque ao nível das identificações com o futebol não há uma diferença evidente entre as identificações dos próprios moçambicanos que continuam a apoiar clubes portugueses. Portanto, o terreno é bastante diferente em termos de análise.

NT – O Brasil também, temos cidades como o Rio de Janeiro onde a identificação clubista é pelo Clube Vasco da Gama, que foi inaugurado por emigrantes portugueses, mas a nível das selecções nacionais eles são sempre pelo Brasil. O futebol não é o único desporto importante para os portugueses no Brasil, há também o hóquei em patins que é muito importante, por exemplo, em Recife. Eu acho que para além de Moçambique, os Estados Unidos e Canadá mostram fenómenos diferentes. Durante o projecto integrámos mais investigadores, ou que nos ajudaram, agora temos o João Sardinha que contribuiu sobre o caso do Canadá, vamos ter talvez um country report sobre Goa e contactámos outros peritos da emigração portuguesa. Por exemplo, contactámos os investigadores do antigo projecto do Fado ao Tangopara saber como era representado o futebol; existia? Era visível? Foi muito interessante porque estavam a trabalhar por exemplo com emigrantes na Argentina que tinham saído de Portugal antes da altura em que cada casa particular em Portugal já tinha televisão. Então, antes de saírem de Portugal não tinham o hábito de consumir futebol televisivo e assim também não tinham esta prática de o fazer já enquanto emigrantes mas, claro, eles encontram-se para jogar às cartas e ver o futebol ou para ver o futebol e jogar às cartas nas associações... O que eu gostaria de destacar é que nos Estados Unidos e no Canadá podemos ver a dinâmica social e cultural do futebol numa velocidade acelerada, por assim dizer. O que vemos numa pequena escala em França em termos de futebol activo, os clubes amadores a jogarem à bola, a mesma dinâmica é muito mais forte no futebol nos Estados Unidos e no Canadá. Como eu já disse, o futebol é um veículo dos emigrantes nas políticas de identidade e da emancipação lá, em que a grande diferença é que nos Estados Unidos ou no Canadá a pertença a uma minoria étnica é um veículo positivo nas políticas de identidade, ou seja, identificar-se como português significa que podemos lutar por um determinado número de direitos com base no critério de ser uma minoria étnica. Ser-se minoria étnica na Europa é um pouco mais triste do que nos Estados Unidos, a história europeia de como se tratam as minorias é uma tragédia em comparação com o contexto americano e canadiano. Lá, o futebol é também um veículo de lutas de terreno político, as políticas de identidade de ser português perto de Massachussets, nesta área geográfica, só começaram devido à possibilidade de comprar televisão com satélite por um certo preço que incluía a SportTV, eles nunca chegaram a lutar por algum direito na base de serem uma minoria étnica antes disso, só quando queriam a SportTV. Podemos dizer que o papel especifico do futebol na diáspora portuguesa depende muito do contexto histórico particular,alemão, francês, moçambicano, etc. Há muitos aspectos em jogo, a história migratória, as políticas de imigração, o estatuto social dos emigrantes em causa, a mobilidade social deles -é o contexto específico que molda o potencial que o futebol, sempre importante, pode ter lá. Ao mesmo tempo, o futebol pode moldar a situação migratória, por exemplo, em termos da força integrativa das equipas amadoras. Na Alemanha as equipas portuguesas que se chamam Casa do Benfica, entre outros nomes, têm portugueses, mas também turcos, italianos, alemães, etc. Por exemplo, na Andorra aprendemos com uma pesquisa não académica, mas muito interessante, um documentário feito pelo Jaime Cravo, da Sport TV, que foi mesmo à procura do papel do futebol em Andorra, e lá quase toda a Segunda Liga e até clubes da Primeira são dominadas por equipas (ou jogadores) de futebol portuguesas.

 

OEm - Em termos gerais, como foram as reacções ao vosso website e ao vosso projecto?

NT –  No Luxemburgo é o mesmo, o nosso website foi ideal porque recebemos muito feedback... feedback é muito interessante, recebemos do Luxemburgo, Alemanha, etc., algumas pessoas a dizerem que finalmente estão a reconhecer a importância do futebol ao nível de treinadores, equipas amadoras, etc. Um treinador do Luxemburgo que tem um blogue escreveu-nos sobre o futebol lá e mencionou o número elevado de jogadores portugueses que já subiram na Primeira Divisão. Por outro lado, tivemos o feedback do líder de uma associação de França que gastou 30 anos da sua vida a fazer sobreviver esta associação e que se sentiu ofendido que algo tão banal como o futebol possa ter tanto significado em verbas para estudos académicos, ou seja, ele deu sempre imenso apoio às danças folclóricas e ao ensino do português e sentiu o trabalho da sua vida ameaçado, sentiu-se magoado, foi uma reacção muito trágica, mas não fomos nós que inventámos o peso que um elemento social tem. Um título no jornal, o qual nos citou a partir de uma entrevista, foi "O futebol já pesa mais que a língua portuguesa", e o resultado não foi nada dramático ou surpreendente para nós, mas pareceu um escândalo entre alguns colegas académicos. Tivemos reacções como: "o país de Fernando Pessoa, a língua é a minha pátria, como é que o futebol pode ter um peso maior, onde tens as provas, tens dados quantitativos?". Todavia, este dado não é uma surpresa num estudo de migração: que a língua nas gerações dos descendentes já não tenha tanta força ou rigor na terceira ou quarta geração, mas o conhecimento futebolístico, desde que temos as novas tecnologias que fornecem acesso 24 horas por dia online, temos todas as informações que quisermos para competir numa conversa com amigos da faculdade em França ou numa discoteca, onde for. Outra reacçãoque achei curiosa foi o imenso feedback dos mass media...

 

OEm - Esse foi outro dos contributos do vosso projecto, que sendo feito na academia conseguiu passar também para o público em geral. Estão a preparar artigos e um livro que será mais direccionado para a academia, mas construíram um website e saíram várias entrevistas vossas nos jornais diários, fazendo a ponte entre os dois públicos...

NT – Penso que tal se deve, em primeiro lugar, ao facto de a emigração portuguesa geralmente só ser notícia nos jornais no mês de Agosto, quando há uma grande "invasão" de emigrantes, e na ocasião de jogos de futebol de alta competição (e, claro, durante os mega eventos). Quando é que há espaço para o director de uma associação portuguesa de Nova Jérsia falar no horário nobrena televisão portuguesa? É na ocasião do Mundial ou do Euro, aí ele é entrevistado e é relatada a festa dos portugueses nas ruas de Nova Jérsia. Durante o Euro 2008 na Suíça, os emigrantes portugueses tiveram voz frente às câmaras de televisão portuguesas. Acho que este processo é sempre um pouco infeliz porque está a determinar a relação pouco emancipada entre o país, Portugal, e os seus emigrantes. Nesta pequena janela quando o dirigente de uma associação portuguesa pode falar em horário nobre na televisão portuguesa, e apenas nestas alturas, significa que não dá espaço para criticar políticas, para criticar a falta de dinheiro para as escolas de língua portuguesa e outras necessidades. A única coisa que ele pode fazer é mostrar a sua lealdade a Portugal e dizer que são os melhores portugueses, porque apesar de estarem há 30 anos naquele país continuam ligados a Portugal. Isto está a reforçar uma performance de nacionalismo português que não é real no quotidiano.

 

OEm - Porque diz que não é real no quotidiano?

NT – Acho que aprendemos com este estudo e com o do futebol português que a identificação com o futebol nacional não é o mesmo que nacionalismo português. A identificação com a selecção de futebol portuguesa pode fornecer um orgulho em ser português, mas tal deve ser diferenciado de uma ideologia de nacionalismo, isto não acontece só em Portugal. É um elemento no desporto e nos mega eventos que é muito particular, para um certo tempo-espaço que é uma interrupção do quotidiano, um mega evento do futebol tem mais o carácter de um festival internacional, é mais um internacionalismo que um nacionalismo. Dizer que o futebol é um evento nacional também é errado sociologica e historicamente, o futebol nasceu nos bairros, a identificação principal futebolista é com o clube e não com a selecção, os jogos entre os clubes e as competições como a Liga dos Campeões levam alguns adeptos a uma identificação, até a sentir dores e lágrimas na concorrência entre os clubes e os adeptos. Quando a selecção joga é uma festa, tem outro significado. A festa é para a selecção e "todos nós", orgulhamo-nos com a performance futebolística, não com o país ou o governo, não é o status quo português a ser festejado. Acho que a segunda razão do feedback do projecto ter sido muito positivo nos mass media tem a ver com o facto de a emigração ser sempre um tema importante na sociedade portuguesa e o futebol é algo que liga os emigrantes e os portugueses que vivem em Portugal, liga os pais e os filhos, tanto em Portugal como no estrangeiro. Por outro lado, there's no business like soccer business, nos média portugueses o futebol está tão presente e, claro, um estudo académico sobre o futebol ganha logo atenção, tanto positiva como negativa. Então, já referi a reacção entre emigrantes que vivem fora do país, como aqueles que fazem associativismo; a reacção entre os intelectuais de Portugal, com muita suspeita... A verdade é que não estávamos a glorificar nada, estávamos a ver os problemas que existem nestes terrenos sociais, mas como o futebol tem um papel muito positivo, na verdade conviver com os portugueses nestes países a ver futebol revelou-se um bom convívio. A reacção deles (os emigrantes), quando perceberam que estávamos a fazer um estudo sobre o futebol foi um pouco como "mas é preciso fazer um estudo sobre o futebol para perceber que é importante"? Pois foi, acho eu, tomando em conta algumas das reacções nas academias. Se calhar até pode estimular outros académicos, peritos na emigração portuguesa, que já notaram a visibilidade e importância do futebol, a incluir este elemento nos seus estudos comparativos de expressões sociais e culturais e elos na diáspora portuguesa.

 

OEm - Todos os investigadores já tinham realizado trabalho de campo nos países sobre os quais o projecto incidiu...

NT – Sim, sobre o futebol ou sobre a emigração lá, e o projecto revelou-se muito fértil devido à sua interdisciplinaridade, tivemos sociólogos, antropólogos, historiadores, mas o método principal é, sem dúvida, a etnografia, são dados qualitativos. Sabíamos que há o preconceito de que os dados quantitativos valem mais do que os dados qualitativos, achámos útil fazer uma combinação de ambas as fontes, porque são necessários os dados quantitativos para enquadrar a pesquisa e responder a questões como: quantos emigrantes há nos países em questão? Quais os principais grupos de minorias étnicas nos países? Quais os jornais que consomem mais? Quais os jornais desportivos? Qual a razão porque acedem na Internet para procurar informação sobre Portugal? E normalmente é pelos os resultados da Super Liga e não o que ontem Cavaco Silva disse sobre um assunto.

 

OEm - E agora o Mundial 2010 vai fazer parte do vosso projecto?

NT – Já fez o anterior, o Mundial na Alemanha. Apesar de ter sido antes de o projecto começar, já estávamos todos interessados e começámos logo o trabalho etnográfico. O Nuno Domingos estava em Moçambique; um investigador estava em Angola; eu estive com as Panteras Negras, com a equipa de Angola, na Alemanha; fui aos estádios ver os jogos de Portugal; em Londres estava lá outro investigador... Foi um bom ponto de partida. Durante o Euro de 2008 aplicámos um questionário em Geneva entre imigrantes portugueses na Suíça. Estes mega eventos revelam-se um pouco como a festa dos emigrantes que vêm de todos os países, é uma festa em que os portugueses que vêm de vários países e os portugueses que vêm de Portugal (estes, uma minoria) se encontram nos estádios, o que é muito especial. Este Mundial já vem um pouco "tarde" para a nossa investigação, vai ser o primeiro mega evento que vamos poder ver calmamente na televisão sem estarmos a fazer entrevistas e anotações nos nossos diários de campo... Vale também a pena ver as actualizações do nosso website, temos mais de 25 páginas de artigos dos média, o website vai continuar para além do projecto. As associações e típicos espaços portugueses onde fomos para conviver com os portugueses, além dos jogos de futebol são mais direccionados para uma geração mais velha e pouco atraente para os jovens. Mas ao nosso questionário online são os mais jovens que aderem e tivemos, por exemplo, alunos da universidade de Chicago que participaram, é muito interessante ver todas estas dinâmicas. Usufruímos também bastante do vosso espaço online, ajuda bastante cada estudo académico da emigração, evitando que cada investigador tenha de recolher os dados que já lá estão disponíveis.

 

1) Nuno Domingos é investigador do projecto "Diasbola".

 

Como citar  Pereira, Cláudia (2010), "O futebol na imagem do Portugal moderno entre os luso-descendentes. Entrevista a Nina Tiesler com colaboração de Nuno Domingos", Observatório da Emigração, 13 de Maio de 2009. http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4708.html

 

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