Entrevista realizada em Lisboa, 26 de Abril de 2010, por Filipa Pinho.
Observatório da Emigração (à frente OEm) - Qual o percurso académico e profissional que a levou a estudar a emigração portuguesa para Angola e Moçambique?
Cláudia Castelo (à frente CC) – O meu percurso académico começou com a licenciatura em História. Segui com o mestrado em História dos séculos XIX e XX - mas com incidência no século XX. Depois fiz uma pós-graduação em ciências documentais - para fugir àquele fado das bolsas que não permitiam grande estabilidade em termos profissionais e as ciências documentais, de facto, abriram-me uma via profissional - e entrei como arquivista para a Câmara Municipal de Lisboa. Mas mesmo antes de ter essa saída profissional, comecei a fazer o doutoramento em ciências sociais, no Instituto de Ciências Sociais, sobre esta temática do colonialismo de povoamento e da migração de naturais de Portugal - da metrópole e das ilhas - para Angola e para Moçambique, ao longo do século XX até à descolonização. Porque é que eu escolhi esse tema? Já não sei reconstituir muito bem, mas eu associo ao facto de, quando estudei a recepção do luso-tropicalismo em Portugal na minha tese de mestrado, me ter confrontado com um discurso muito generalizado, na sociedade portuguesa, sobre a especial capacidade da relação dos portugueses com os trópicos. Todo esse discurso era anterior às teorizações do Gilberto Freyre, conseguiu perdurar depois de terem sido publicadas as principais obras dele e, sobretudo, depois de ele cunhar mesmo o conceito de luso-tropicalismo em 1951. E houve um livro do Gerald Bender que também foi muito importante para eu ter escolhido este tema, com o nome "Angola sob o Domínio Português. Mito e Realidade", em que o argumento é que há todo um discurso em torno da especificidade do colonialismo português e da relação de Portugal com os trópicos, que depois não corresponde à realidade. Eu também reparava que começavam a surgir aquilo que hoje já mais ou menos se convencionou chamar "os romances de retornados", ou uma "literatura de retornados", que focava muito a experiência de vida no período do colonialismo tardio, anos 1950-60, e que mostrava que, com a descolonização, eles tinham perdido um determinado nível de vida, uma determinada situação económica e social, mas também o que eles enfatizavam muito: uma relação especial com África. E eu quis ir à procura de quem eram esses portugueses. Porque havia o estudo de Rui Pena Pires sobre os retornados que, de certa forma, também permitiu desmistificar bastante o que foi esse movimento de retorno e integração dos retornados. Como Rui Pena Pires mostra no seu estudo, apesar de inicialmente ter havido alguma tensão na sociedade portuguesa, os retornados também rapidamente se tornaram invisíveis, na medida em que se integraram muito bem e eram pessoas com alguma capacidade de adaptação. E depois dessa integração na sociedade portuguesa - bem sucedida se compararmos com o caso francês dos retornados da Argélia - e de ter sido feito um luto - que eu acho que fizeram - pela perda daquilo que tinha sido o seu paraíso, emergiram muitos depoimentos de retornados que falam da sua experiência de vida em África, na forma de ficção. Pronto, foi mais ou menos neste contexto que eu procurei estudar, não o retorno e a integração na sociedade portuguesa, mas quem tinha ido, sobretudo para Angola e para Moçambique, porque eram - ou pretendia-se que fossem - colónias de povoamento branco.
OEm - A pergunta a seguir prende-se precisamente com isso. Quem eram os portugueses que iam para as colónias?
CC – Aquilo que me apercebi é que a migração para Angola e Moçambique teve um boom relativamente tardio, acontece sobretudo já depois da 2ª Guerra Mundial e com especial incidência nos anos 1950 e 1960, embora o início das guerras coloniais - primeiro em Angola em 1961, na Guiné em 1963 e em Moçambique em 1964 - faça com que posteriormente comece a haver um abrandamento desse fluxo migratório; e isso é mais notório, se não estou em erro, para Moçambique. Por isso, os contingentes não são muito elevados, se compararmos o movimento migratório destas colónias com o movimento migratório com o Brasil e, depois, com a França ou outros países europeus. Eu digo migração [sem "e"] porque, na época, como estávamos a falar de um mesmo espaço imperial, não era considerado um movimento para fora do território nacional - embora geograficamente fosse disperso. E é por uma certa consistência e rigor histórico tendo em conta o contexto da época, não tem, por isso, nenhuma carga ideológica associada. De entre a emigração portuguesa são, de facto, destinos menos apetecíveis, embora nos anos 1950 e nos anos 1960 haja um pico nos movimentos. Eu não me consigo lembrar dos números que estavam envolvidos, eu tenho alguns quadros que os têm para os vários destinos e que permitem, depois, fazer essa comparação. Uma coisa que é curiosa é que qualquer português que quisesse emigrar para Angola ou para Moçambique deixou de precisar de passaporte para esses destinos a partir de 1907. Isso faz com que a ida de portugueses para Angola ou para Moçambique com o intuito de se fixarem de forma permanente, não conste das estatísticas. Isto é muito aborrecido, do ponto de vista de quem quer estudar estes movimentos migratórios, porque não há números já determinados para podermos chegar à estatística e retirar que em 1908 foram não sei quantas pessoas, em 1909 outras tantas... Aquilo que se faz é tentar ver, no movimento de passageiros - primeiro só através de barco, depois através de transporte aéreo - a diferença entre quantas pessoas foram e quantas pessoas voltaram, para termos um número aproximado daqueles que, supostamente, iam para fixar residência. Mas isto também é muito frágil, porque umas pessoas iriam de férias, outras iriam em negócios e mais do que uma vez ao ano; portanto, são números aproximados. Por isso, aquilo que eu apresento é o número de pessoas que entraram em Angola e o número de pessoas que saíram de Angola, ou de Moçambique - há também dados nas estatísticas para o conjunto das colónias, ou para o conjunto do Ultramar, mas são dados aproximados - e depois, o saldo será o que vamos seguir como, hipoteticamente, o número das pessoas que se fixaram. E nós temos, por exemplo em 1943, 1.147 pessoas que, supostamente, se terão fixado no conjunto do Ultramar. O ano em que este número é mais significativo é em 1960: 14.896 pessoas. Por isso, estamos a falar de números muito inferiores aos números que temos para o Brasil ou para os países da Europa. Em termos escolares, quem eram estas pessoas? Aquilo que nos apercebemos é que, em média, as pessoas que emigravam para Angola e Moçambique eram mais escolarizadas que a média dos portugueses. Era um conjunto de pessoas muito diversificado em termos escolares, pois estavam representados analfabetos, pessoas que só sabiam ler, pessoas que já tinham o ensino secundário ou liceal e também pessoas com o ensino superior. Mas apesar desta representação heterogénea, em média eram mais qualificados que a média dos portugueses. E eram mais qualificados que os emigrantes no conjunto para os outros destinos. Em termos de ocupações profissionais na origem, eram sobretudo pessoas ligadas ao sector terciário, embora quando este movimento atinge o seu pico - entre os anos 1950 e 1960 - estejam mais representadas pessoas do sector primário. Depois, no destino, as pessoas iam sobretudo dedicar-se ao comércio, à administração pública, aos serviços. Embora o Estado Novo tenha constituído, tanto em Angola como em Moçambique, colonatos e núcleos de povoamento rural, as pessoas mobilizadas para esses núcleos eram uma ínfima parte, uma minoria; as pessoas concentram-se sobretudo nas cidades. Em Angola concentram-se sobretudo em Luanda, Nova Lisboa, Lobito, Benguela, Sá da Bandeira... E em Moçambique isso é ainda mais notório porque a concentração é sobretudo em duas cidades: Lourenço Marques e Beira.
OEm - E isso, ao longo de todo o período que referiu [1950-1960]?
CC –Ao longo de todo o período. E há a tendência para se acentuar este povoamento eminentemente urbano. Na semana passada, numa conferência ali no ISCTE, esteve cá um historiador francês, René Pélissier, que em 1973 conseguiu autorização para ir visitar os postos militares portugueses na fronteira Leste de Angola e, de facto, naquelas zonas não havia praticamente colono nenhum, eram zonas muito pouco povoadas de portugueses idos daqui. O que houve muito nos anos 1960, consequência da Guerra Colonial, foi um desenvolvimento das cidades e das infra-estruturas de todo o género, sobretudo das comunicações, das estradas e dos portos, para potenciar esse desenvolvimento urbano. Por isso, aquela ideia do português no interior, no sertão, com uma fazenda de proporções pequenas ou médias, associada a um pequeno comércio de permuta com as populações autóctones daquela região, é claro que existia em Angola e em Moçambique, mas envolvia um número muito menor de portugueses. E eu também dou números por aqui [edição da tese] que mostram bem essa concentração urbana. Por todo o território de Moçambique a actividade comercial estava muito nas mãos de comerciantes indianos. E uma coisa que eu não disse, ainda há uma diferença relativamente a Angola: vão mais pessoas trabalhar na Administração Pública e esta estava concentrada na capital da colónia, no caso em Lourenço Marques, e as pessoas são ligeiramente mais qualificadas do que aquelas que vão para Angola. É uma diferença que não é muito notória, embora quando falamos com pessoas que vieram de Angola ou de Moçambique, elas costumam enfatizar que para Moçambique seria uma emigração ainda mais qualificada, ainda que os números não mostrem que a diferença fosse assim tão acentuada.
OEm - Já falou nas qualificações, nas profissões, na inserção à chegada... Foi possível saber as origens geográficas dos emigrantes?
CC – Aquilo que eu reparei é que a maioria dos colonos para Angola, como para Moçambique, era de Lisboa. As outras origens ou naturalidades que aparecem mais representadas são Porto e região Norte, salvo erro. Foram também pessoas da Madeira e dos Açores e, tendo em conta as populações na origem, se calhar essas migrações foram muito numerosas mas, em termos gerais, podemos ver que os maiores contingentes vinham de Lisboa. Temos aqui sempre Lisboa e o Porto, Viseu também é muito representativo, Bragança e Aveiro... Isto vai oscilando, mas aqui é para Moçambique, salvo erro, e Lisboa está sempre à frente. Depois o Porto...
OEm - Angola é diferente?
CC – Em Angola, estão mais equiparados Lisboa e Porto, mas isto depois também é por fases. Há bocado, o que eu estava a querer dizer é que em números absolutos a maioria dos migrantes era natural de Lisboa; depois Porto, Viseu, Guarda, Aveiro, Bragança, Vila Real. As regiões que menos contribuíram foram Alentejo, Setúbal, mas também algumas do Norte, como Viana do Castelo e Braga, também Faro. Mas se levarmos em conta a proporção dos migrantes na sua região de origem, constatava-se que o Norte e o Centro interior eram zonas de onde mais se partia para África, destacando-se em termos relativos o distrito de Bragança, depois a Guarda, depois Vila Real e Viseu.
OEm - O seu estudo é mesmo desde o início do século XX?
CC – Não, porque só consigo obter elementos quantitativos a partir dos anos 1940. Aquela questão de ter deixado de haver o passaporte é muito complicada, porque realmente esta emigração deixa de constar das estatísticas da emigração. E depois, só quando passa a haver informação sobre embarcados para o Ultramar nos anuários estatísticos - embarcados para Angola, embarcados para Moçambique - e desembarcados vindos de lá, é que posso começar a estabelecer esse contingente. E as estatísticas não nos ajudam nada porque são muito pouco homogéneas: para determinados anos ou para determinados períodos vem a naturalidade, mas para outros já não vem. E há uma grande discrepância ao nível das ocupações, porque ao longo deste período, que não é assim tão grande - entre 1940-73 - vão mudando as categorias e é muito difícil estabelecer comparações. É possível ter os contingentes em termos muito gerais, percebendo pelos censos quantas pessoas brancas havia de origem portuguesa, em Angola e em Moçambique, em 1900, e depois em 1920. E vê-se mais ou menos a evolução, embora tenhamos de ter em conta a evolução natural da população. E depois há outras fontes onde vamos buscar alguma informação, mas nada que nos permita estabelecer um quadro relativamente estável.
OEm - E quando diz "brancas" é porque na altura havia estatísticas racializadas, não era?
CC – Sim. Nas estatísticas aparece "branco", "negro", "misto" e em Moçambique aparece "amarelo" para as populações de origem chinesa e indianos. Em Angola praticamente só vinha mesmo na estatística "branco", "negro" e "misto". De entre os brancos, sobretudo em Moçambique, muitos não eram portugueses e isso a estatística também nos mostra. Quando vamos ver o Censo Geral da População em Moçambique, havia, até muito tarde, comunidades estrangeiras relativamente significativas de britânicos, sul-africanos, e em Angola isso já não se nota tanto. Há imensas categorias aqui que se misturam. E para perceber quem eram de facto os portugueses que estavam em Angola e em Moçambique que tinham nascido na metrópole, às vezes não é muito fácil porque se olharmos para o número de brancos não nos diz nada.
OEm - Não sei se conseguiu, pelo seu trabalho, saber as razões pelas quais as pessoas se mudavam para África... Havia projectos que explicavam porque é que as pessoas mudavam, processos mais organizados pelo governo, não era?
CC – Gostaria, se calhar, de ter desenvolvido mais essa parte relativa às motivações. Aquilo que eu consegui apurar é que as motivações são muito diversas, não podemos escolher uma. Mas parece que, e isso o Rui Pena Pires já dizia quando estudou os retornados - e os retornados também tinham ido antes de ter havido retorno, embora muitos fossem os filhos ou os netos -, os factores de atracção estavam muito mais presentes do que os factores de repulsão. Sobretudo depois do fim da 2ª Guerra Mundial, em que há uma alta das cotações dos géneros coloniais, as pessoas iam atraídas pelas possibilidades de ascensão social e de melhoria das suas condições económicas. Também terá sido importante, em alguns segmentos de pessoas que foram, toda a propaganda que o Estado Novo foi produzindo e alimentando sobre o Império Português. Há algumas referências, nomeadamente de pessoas que em Angola foram administradores, que trabalharam na máquina burocrática colonial, de que todas aquelas coisas que aprenderam na escola primária, todas aquelas actividades tais como a Semana das Colónias, as grandes exposições, todas essas acções de propaganda em prol do império, também disseram alguma coisa às pessoas. Porque aquilo que se dizia era que Portugal tinha uma missão civilizadora a cumprir em África. Essas coisas também podem ter tido o seu papel na motivação. Há toda uma literatura, nomeadamente do Henrique Galvão, de exaltação da presença de Portugal em África e, por alguns testemunhos que há, pode ter tido algum papel. Depois há outra coisa que não sei se subliminarmente poderá estar relacionada, que é: a pessoa, independentemente do seu estatuto económico ou social aqui da metrópole, indo para uma sociedade colonial ia sempre situar-se no estrato superior da sociedade. Em termos políticos, e em termos económicos, sociais e simbólicos, os colonos eram sempre os que estavam entre os privilegiados; e depois havia uma quantidade imensa de indígenas. O estatuto do indígena só acaba em 1961 mas, mesmo depois de abolido, os colonizados estariam no patamar inferior da sociedade. E não sei se isto, até de uma forma inconsciente, terá tido o seu peso. Um dos motivos pode ser o espírito de aventura ou o empreendedorismo de algumas pessoas que aqui não tinham forma de o concretizar, de alargar horizontes, e havia muito a imagem de que os horizontes eram mais largos... A comunicação social, mesmo que ainda só a imprensa e a rádio - a RTP começou só nos finais dos anos 1950 - teve um papel muito importante na tal questão da propaganda de passar uma imagem mitificada de África e de chamar muito os portugueses ao dever de ir colonizar. Mas, apesar de toda esta retórica, o Estado português não permitia, até muito tarde, que as pessoas fossem para Angola e Moçambique e fixassem lá residência de qualquer maneira, até muito tarde havia muitas restrições à ida de colonos. Só em 1962 é que a emigração para as colónias se tornou completamente livre. A pessoa decidia que ia e, desde que tivesse dinheiro para pagar a passagem, podia ir. Mas isto, só a partir de 1962.
OEm - Até lá o que é que era preciso?
CC – Até lá, quem quisesse ir, se que não cumprisse determinados requisitos - e os requisitos eram ter estudos superiores, determinados rendimentos ou propriedades/empresas no destino - não podia ir sem pedir autorização ao Ministério. Como é que as pessoas geralmente faziam? As pessoas que não constavam desse quadro muito restrito? Tinham que ter uma carta de chamada de alguém que vivesse nas colónias e a pessoa que estava no destino tinha de se responsabilizar por dar trabalho ou assegurar a subsistência de quem estava a chamar. Isto fazia-se muito em família, ou pessoas das mesmas aldeias, das mesmas terras. E então o Ministério podia autorizar. O Estado queria prevenir, ou queria impedir, que fossem para as colónias colonos pobres que não tivessem emprego no destino e que, de certa forma, passassem uma má imagem do colonizador; como alguém que fosse para as colónias e depois andasse lá a pedir, que não tivesse eira nem beira, que tivesse de ir para o asilo ou que tivesse de ser remetido outra vez para a metrópole - e isso aconteceu também. E isso depois era a expensas do governo colonial, o que também saía caro. Até muito tarde houve a insistência, da parte dos governadores coloniais, para que não se abrisse completamente a emigração para as colónias, para impedir também a chegada de pessoas que não tivessem depois forma de subsistência. Porque pessoas que não tivessem determinadas qualificações escolares, ou formação profissional, acabavam por ir concorrer com os nativos, cuja mão-de-obra era praticamente gratuita. Portanto, e voltando às motivações, estas devem ter sido muito diversas. É claro que nas pessoas que foram para os colonatos rurais, a motivação seria mesmo fugir a condições de vida muito difíceis na metrópole. Eram jornaleiros, pessoas que viviam uma vida muito dura e que tinham ali o sonho de virem a ser proprietários de uma pequeníssima parcela de terra porque o que lhes era concedido eram quatro hectares. Mas a esmagadora maioria dos colonos seria, de facto, movida pela possibilidade de ascensão social e, no destino, realmente havia essa capacidade de atracção, sobretudo com a alta cotação dos géneros coloniais e, depois do início das guerras coloniais, com o acelerado desenvolvimento económico que Angola e Moçambique tiveram. Angola, salvo erro, era o segundo exportador mundial de café e isso permitiu um desenvolvimento muito notório da economia. No final dos anos 50 e dos anos 60, todos aqueles planos de fomento dirigiram muito dinheiro ao desenvolvimento das infra-estruturas e ao desenvolvimento económico e social daqueles territórios e, então, pessoas com altas qualificações, nomeadamente pessoas licenciadas, ou mesmo pessoas com os estudos liceais, médios, jovens que acabaram os seus cursos, viram ali uma possibilidade de emprego e uma situação económica e social bastante favorável.
OEm - Há pouco falou dos colonatos. Foram organizados pelo Estado...
CC – Pelo Estado, sim.
OEm - Durante todo o período, ou mais em datas precisas?
CC – Os colonatos mais paradigmáticos são criados nos anos 1950. Em Angola, o Colonato da Cela e o Colonato do Cunene; em Moçambique, o Colonato do Limpopo. O da Cela é logo no início dos anos 1950 e depois, os outros dois são inaugurados em 1954, por aí. Mas aí é um modelo imposto pelo Estado, associado ao regadio, tanto no caso do Limpopo, como no Cunene, associado a barragens, e depois todo o sistema de regadio. É um modelo imposto pelo Estado, as pessoas são recrutadas pelo Estado e enviadas para ali, geralmente em famílias, famílias numerosas, e aquilo que é imposto é que as pessoas devem cultivar a terra pelos seus próprios braços ou recorrendo à força de trabalho da unidade familiar, sem contratação de mão-de-obra local. Era um pouco "exportar" ou recriar em África as aldeias portuguesas, o modelo metropolitano da freguesia rural. Geralmente nesses colonatos, inicialmente e por opção, não havia abastecimento de água, nem rede eléctrica. As mulheres tinham de ir à fonte buscar água, o trabalho agrícola era feito com recurso a bois, uma visão muito tradicionalista e de um romantismo rural de manter as pessoas numa pobreza... Quer dizer, numa auto-subsistência que não permitia grandes voos. E é interessante constatar que enquanto o Estado Novo não queria e tinha pavor da ideia dos brancos pobres nas cidades, foi o próprio Estado que criou estes colonatos em que o horizonte das pessoas também era assim uma pobreza, uma mediania... Nos campos as pessoas podiam ter aquela vida pobre, nas cidades havia o pavor dos brancos pobres.
OEm - Tenho mais uma ou duas questões. Uma, que não sei se conseguiu apurar, é se as pessoas iam mais sozinhas e depois faziam reunificação familiar, ou se iam logo em família...
CC – Sim, a partir dos anos 1940 é uma migração sobretudo de famílias. Uma coisa que é muito valorizada por parte do Estado é as pessoas irem em família, e também para não haver o perigo da cafrealização, dos homens irem sozinhos e acabarem por se juntar a africanas, havia também esse terror. Havia este terror e havia o discurso que exaltava à capacidade de os portugueses se miscigenarem. Isto é, por vezes, contraditório e vai evoluindo ao longo do tempo, mas quando já estamos na grande exaltação da criação das sociedades multirraciais em África, já não encontramos tanto o discurso que foi o estigma negativo dos mestiços. Mas, de qualquer maneira, ainda coexistem os dois discursos. Então, as pessoas iam sobretudo em família, muito cedo se tornou uma migração em família.
OEm - A outra questão tem a ver com o conceito de colono. Foi sempre utilizada essa designação ou houve alguma mudança para a designação de migrante? A designação consta de documentos oficiais?
CC – O conceito de colono nas estatísticas reporta-se às pessoas que iam para Angola e para Moçambique...
OEm - Ah, está mesmo presente nas estatísticas!
CC – Está. Designa as pessoas que iam com passagem paga pelo Ministério do Ultramar - ou das Colónias inicialmente, em 1951 passou a chamar-se Ultramar - para se fixarem em Angola e em Moçambique, independentemente de irem para zonas rurais ou para zonas urbanas e mesmo aqueles que não iam para nenhum colonato dirigido pelo Estado. É claro que as pessoas, a si próprias, não se viam como colonas. Pelo menos aquilo que eu constato através de conversas informais, e até vendo outro tipo de fontes, é que ninguém diz "eu fui colono em Angola ou em Moçambique". As pessoas não se revêem muito nessa terminologia, ou então associam o colono àquele que ia para os colonatos oficiais. No meu trabalho utilizo a designação colonos para todas as pessoas que se iam fixar em Angola e em Moçambique, independentemente do que iam fazer no destino. Na documentação aparece, às vezes, o conceito de povoador, mas migrante é raro. A designação "colono" era uma designação aceite e utilizada pelo Estado, acho que vem do latim e significa colonizar a terra, trabalhar a terra. E, então, como a maior parte dos colonos em Angola e em Moçambique até viveu em meios urbanos, penso que também será por isso que as pessoas não se reviam muito nesse conceito.
OEm - Por último, se quiser acrescentar alguma coisa...
CC – Não é que tenha a ver directamente com a temática da emigração, mas aqui no Instituto de Investigação Científica Tropical, que é o organismo herdeiro ou sucessor da Junta de Investigações do Ultramar - onde sou investigadora auxiliar contratada ao abrigo do Programa Compromisso com a Ciência - estou a fazer uma recolha de histórias de vida e de memória oral sobre as missões científicas às colónias. Tenho feito uma recolha com investigadores e técnicos que trabalharam na Junta das Investigações do Ultramar e que fizeram trabalho de campo científico nas colónias. Acabaram por ser migrantes temporários, eles próprios, ao longo de períodos mais ou menos longos. Estas missões eram organismos temporários criados para desenvolver investigação científica nas colónias, nas várias áreas do conhecimento. Geralmente, os investigadores estavam aqui na metrópole durante o Inverno, a Primavera e o Outono e, no Verão, durante as férias escolares daqui - porque alguns destes investigadores da Junta de Investigação do Ultramar eram também docentes universitários nas universidades portuguesas - iam às colónias fazer trabalho de campo; por vezes passavam um mês, dois, três, a fazer trabalho de campo em Angola e em Moçambique, na Guiné... Lembrei-me, embora o enfoque do projecto não seja a migração, que eles, enquanto estavam a fazer trabalho de campo em Angola e em Moçambique, às vezes durante três meses seguidos, acabavam por ser migrantes temporários. O nosso enfoque é a investigação científica que foi produzida no âmbito das missões. Paralelamente estamos a construir o arquivo de memória oral que vai estar disponível no site do Arquivo Cientifico Tropical Digital.
OEm - Mas também pode abordar essa questão, estou a perceber... É útil para nós sabermos isso, obrigada.
CC – E aborda a relação que estabeleciam depois com as populações locais, com as autoridades locais, tudo isso...
OEm - Óptimo. Obrigada!
Nota da edição: a investigadora refere, ao longo da entrevista, informação sobre a investigação que fez para a sua tese de doutoramento, já publicada.
Como citar Pinho, Filipa (2010), "Características da emigração histórica para Angola e Moçambique. Entrevista a Cláudia Castelo", Observatório da Emigração, 26 de Abril de 2010. http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4707.html