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O medo da PIDE foi exportado para os portugueses em França
Victor Pereira
Victor Pereira é doutorado em história pelo Institut d’Etudes Politiques de Paris. Licenciou-se em história pela Universidade Rouen, França, onde fez também o mestrado. Tem como interesses de investigação a história contemporânea portuguesa e as migrações internacionais, bem como as relações entre o futebol e as migrações. Atualmente é professor auxiliar de história na Université de Pau et des Pays de l'Adour, docente de história portuguesa no século XX no Institut d’Etudes Politiques, de Paris, e membro do conselho de redação da revista Lusotopie.

 

Entrevista realizada em Lisboa, a 29 de Dezembro de 2010, por Cláudia Pereira. 

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – Podemos começar pelo que o levou a estudar a emigração portuguesa em França...

Victor Pereira (à frente VP) – Eu licenciei-me em história numa universidade francesa, em Rouen, na Normandia, a 150 quilómetros de Paris. Depois segui para o mestrado. Tinha como projecto um estudo das ligações entre o porto de Rouen e o reino de Portugal antes do século XV. Gostava da história da Idade Média e queria trabalhar sobre a época antes dos Descobrimentos. Só que a documentação necessária já não existia devido a um incêndio nos arquivos e tive de mudar de tema. Comecei a investigar o exílio político português entre 1958 e 1974. Era para mim um tema distante e não conhecia pessoalmente nenhum exilado. Foi a leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago, que tinha lido alguns anos antes, que me despertou algum interesse sobre o tema. Para o mestrado, estudei a imprensa produzida pelos exilados e trabalhei nos arquivos franceses, nomeadamente da polícia francesa, do Ministério do Interior, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da CIMADE, instituição caritativa que ajudava os exilados e refugiados. A tese tem como título "Os exilados políticos portugueses em França de 1958 a 1974". Foi desta forma que cheguei ao estudo da emigração, um pouco por acaso. Em 2000 terminei o mestrado. De seguida fui para o Institut d'Etudes Politiques de Paris, também conhecido como Sciences Po, fazer o doutoramento sobre "O Estado Português e os portugueses em França de 1957 a 1974".

 

OEm – Portanto, mudou de universidade e de orientador, o tema continuou a ser o estado português, mas já não focado nos exilados portugueses...

VP – Sim, o tema já não era tanto os exilados e os emigrantes portugueses, mas como o estado português olhava e exercia poder sobre os emigrantes e os exilados portugueses, daí ter colocado "portugueses" no título da tese.

 

OEm – Pode falar um pouco das conclusões da sua tese de mestrado sobre os exilados portugueses?

VP – Na altura havia poucos estudos sobre os portugueses em França e sobre os exilados havia ainda menos. Existiam os trabalhos de Cristina Clímaco, por exemplo, e alguns livros de memórias. O que eu tentei foi questionar o conceito de "exilado", já que habitualmente são considerados exilados apenas os indivíduos que são visíveis política e intelectualmente. Tentei ver as fronteiras deste conceito e investigar quem eram os exilados e como viviam. Muitos exilados pertenciam às classes médias e altas de Portugal e quando chegaram a França tinham poucos meios, passando a viver em águas-furtadas e a trabalhar nas fábricas. Analisei também a actividade política deles. Até 1974 houve uma importante radicalização da oposição ao Estado Novo, o fim do monopólio do Partido Comunista na esquerda portuguesa e o nascimento de vários grupos de extrema-esquerda, sobretudo maoístas. Estudei estes temas usando a imprensa dos exilados, que está bem guardada nalgumas bibliotecas francesas, como a BDIC em Nanterre.

 

OEm – A sua tese de doutoramento baseou-se exclusivamente nos arquivos?

VP – Nos arquivos, franceses e portugueses, e em algumas entrevistas. Em Portugal, fiz pesquisa em 14 arquivos diferentes, como por exemplo o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os arquivos de Oliveira Salazar, de Marcelo Caetano e da ex-PIDE/DGS que se encontram na Torre do Tombo, o arquivo do Ministério das Finanças, etc. Em França, pesquisei também em alguns arquivos. Entrevistei algumas pessoas, como o antigo Secretário Nacional da Emigração, entre 1971 e 1974, Américo Sárraga Leal, e o Mário Murteira, que nos anos 1960 se dedicou ao estudo da emigração e participou em comissões Interministeriais de estudo da emigração.

 

OEm –  Preencheu assim uma lacuna que existia nos estudos sobre os portugueses em França...

VP – Já havia alguns trabalhos sobre estes temas, mas não com o uso sistemático que eu fiz dos arquivos e entrevistas. Em Portugal, a Miriam Halpern Pereira e a Maria Ioannis Baganha estudaram a política de emigração no fim do século XIX e início do século XX. Em França, o geógrafo Michel Poinard também publicou trabalhos sobre este tema. Nos Estados Unidos, Elizabeth Leeds escreveu uma tese sobre a política da emigração nos últimos anos do Estado Novo, a qual nunca foi publicada em Portugal nem nos Estados Unidos. Portanto, já havia alicerces seguros que utilizei. No entanto, com a relativa abertura dos arquivos consegui ir mais longe, compreender a complexidade desta política de emigração.

 

OEm – Relativamente à sua tese de doutoramento, que resultados gostaria de salientar?

VP – A minha tese tem cerca de 800 páginas, mas vou tentar resumir... O objectivo era analisar como o estado português viu o fluxo migratório para França entre 1957 e 1974. Naquela altura foi o fluxo emigratório principal. Em 1974 emigraram 900 mil portugueses para França, dos quais 550 mil sem passaporte de emigrante Eu quis perceber como é que isso foi possível. Ou seja, como é que um regime autoritário, que tinha uma polícia política que toda a gente dizia ser muito eficiente, deixou sair de forma clandestina tantas pessoas de Portugal. Eu quis ver se isso era uma fraqueza ou uma forma de conciliar o que era pouco conciliável - a retórica muito conservadora do Estado Novo herdada dos anos 1930 e uma política de desenvolvimento económico defendida por um número crescente da elite política e administrativa portuguesa. Reinava assim a duplicidade. Por um lado mantinham-se os discursos sobre Portugal como país essencialmente agrícola e sobre a necessidade de impedir os trabalhadores de emigrarem. As guerras coloniais fortaleciam estes discursos que se opunham à mobilidade da população. Era necessário conservar milhares de soldados e se os metropolitanos queriam emigraram, tinham que ir para África. Por outro lado, grande parte da elite defendia nos bastidores do Estado o desenvolvimento económico, a industrialização, a convergência com a Europa ocidental. Aliás, a entrada de Portugal na EFTA, no fim dos anos 1950, ilustrava o peso das correntes modernizadoras no seio do Estado Novo. Nesta perspectiva, a emigração permitia o aumento da produtividade pela substituição dos trabalhadores pouco qualificados por máquinas. Os patrões portugueses tinham que abandonar processos industriais arcaicos e viam-se obrigados a modernizar-se ou entravam em falência. A emigração também assegurava uma fonte financeira considerável: as remessas que os emigrantes enviavam. Muitos altos dirigentes viam a emigração como necessária, como um mal menor, porque, por um lado, havia necessidade da população rural sair dos campos, devido ao desemprego e às condições miseráveis em que viviam e, por outro, os excedentes de mão-de-obra travavam a modernização das estruturas económicas. Em Portugal, não houve uma aceitação da emigração como na Espanha franquista, que aplicou uma política activa de emigração. Acho que a principal diferença entre Espanha e Portugal neste domínio foram as guerras coloniais. Mesmo quando Marcelo Caetano chegou ao poder e liberalizou a política de emigração, não o fez tão abertamente como era prática em Espanha devido à necessidade de guardar os jovens para servir nas Forças Armadas em África. Na minha tese, eu tentei compreender estas contradições dentro do Estado Novo e, sobretudo, não o queria analisar como um regime monolítico em que Salazar mandava e todos obedeciam. Havia perspectivas diferentes e muito contraditórias sobre a questão da emigração no seio do governo. Nos anos 1960 há oposições muitos fortes entre, por um lado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério das Corporações, e, por outro lado, o Ministério do Interior. Nos anos 1960, até à chegada do Marcelo Caetano ao poder, Salazar preocupou-se pouco com este tema, por considerá-lo perigoso em termos políticos. Deixou seguir a luta entre os ministérios, o que levou a um certo conservadorismo e a pouca acção do estado português, que não conseguiu chegar a acordo sobre a política de emigração a seguir. Cada ministério tinha uma política e, por isso, pouco se fazia de forma eficiente. Isto muda com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, que ultrapassa algumas ambiguidades que Salazar manteve para se conservar no poder. Nos anos 1960, Salazar continuava a exaltar a vida dos campos e tentava fazer acreditar a burguesia agrária de que os defendia, de modo a impedir a emigração. Os proprietários agrários mobilizavam-se para que o Estado travasse a emigração e evitasse a subida dos salários. Consequentemente, o Estado tentava limitar a emigração legal para responder aos pedidos dos proprietários agrários. Em 1961, a emigração clandestina tornou-se um crime. Caetano, que não tem esta ligação com a burguesia agrária, defende abertamente o desenvolvimento económico, liberalizando a emigração, que deixa de ser crime a partir de 1969. Tentei também estudar os acordos de mão-de-obra assinados entre Portugal e França, um em 1963 e outro em 1971. Já nos anos 1960 surgiu o problema do ensino da língua portuguesa aos filhos de emigrantes que viviam em França. Não existiam estruturas que permitissem aos filhos de emigrantes aprender a língua dos pais e eu analisei também essa questão.

 

OEm – Pode detalhar um pouco a questão do ensino português em França?

VP – Começou a haver ensino de português em França nos anos 1960, embora incipiente, através das associações que se tinham mobilizado para criar as escolas, isto é, professoras que davam aulas de português nos dias e horas em que as crianças não iam à escola francesa.

 

OEm – As aulas eram dadas por portugueses de forma gratuita?

VP – Houve algumas senhoras, esposas de emigrantes, que ofereciam aulas de português, às vezes com algum pagamento, mas pouco. Começaram a ser dadas de forma mais alargada a partir de 1972, quando o estado português financiou aulas de português em França. Esta medida resulta em parte da acção de Américo Sáragga Leal (secretário nacional da emigração entre 1971 e 1974) que consegue ultrapassar a passividade do Ministério da Educação nacional neste domínio.

 

OEm – A partir de 1972, o estado português financiou as aulas de português em França, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros?

VP – Sim. Antes de 1972, as associações que ofereciam aulas de português tentavam ter subsídios dos consulados. Depois de 1972 foi o próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros que financiava as professoras.

 

OEm – A partir daí começou a haver aulas de forma sistemática?

VP – No início foram apenas 200 crianças. Em 1974, já eram 375 apenas em França, quando o ensino de português em França conheceu uma certa expansão. Os próprios emigrantes mobilizaram-se neste sentido desde os anos 1960. Muitos deles pensavam regressar um dia a Portugal e queriam que os filhos soubessem falar português para se "integrarem" na sociedade portuguesa, continuarem os estudos e encontrarem um trabalho. Eram estes os projectos, mas muitos acabaram por ficaram mais tempo do que tinham inicialmente pensado.

 

OEm – Referiu os acordos de mão-de-obra entre Portugal e França. Em que consistiram?

VP – A França publicou em 1945 uma regulamentação que tentava impedir a imigração clandestina. Os estrangeiros que vinham para França tinham de ter um contrato de trabalho e, para facilitar o processo, o governo francês quis assinar acordos de emigração com países exportadores de mão-de-obra, como é o caso de Itália. Logo depois da II Grande Guerra Mundial, o governo francês pediu ao português para assinar um acordo de mão-de-obra e este recusou sempre, alegando que não queria incentivar a emigração para França. A prioridade do governo era manter a sua mão-de-obra e enviar para as colónias de África, ou para o Brasil, a que fosse excedentária. As autoridades francesas pediram um acordo, várias vezes, nos anos 1950, mas a administração recusou sempre. A emigração irregular desenvolveu-se bastante desde 1957 e, no início dos anos 1960, o governo francês pediu novamente um acordo e a situação mudou. A diplomacia portuguesa não gostava da má imagem de Portugal em França provocada pela emigração clandestina. Muitos artigos na imprensa francesa davam conta da vinda de portugueses em situações dramáticas, que pareciam dispostos a tudo para fugir de Portugal e trabalhar em França. O Ministério dos Negócios Estrangeiros pretendia que a emigração, com o acordo, fosse feita de forma regular, sem as condições dramáticas noticiadas na imprensa. Porém, a Junta da Emigração recusou sempre este acordo, temendo a reacção da burguesia agrária que não queria a emigração e que a sua assinatura fosse interpretada pela população como um incentivo à emigração. Todavia, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português consegue convencer o governo a assinar um acordo de mão-de-obra, em 1963, cujo objectivo não passava por facilitar a emigração regular, mas por impedir a emigração clandestina para França. Isto é, só emigravam aqueles que tinham contratos de trabalho dados pelo governo francês e que, consequentemente, passavam pela Junta de Emigração. Os que saíam de forma clandestina não podiam estar regularizados em França e acabava-se assim com a emigração irregular. Portanto, era uma forma de ter a emigração legalizada do lado francês e de controlar a emigração clandestina do lado português.

 

OEm – Normalmente eram recrutados para que tipo de trabalhos?

VP – Geralmente era mão mão-de-obra pouco qualificada para as fábricas (por exemplo, Renault, Citroën) e, sobretudo, para as obras públicas e a construção civil. Mas o acordo raramente foi aplicado. Em França, os sectores que queriam uma mão-de-obra portuguesa abundante, conseguiram impor uma regulamentação que facilitava a regularização dos portugueses clandestinos no país. Em Portugal, a Junta da Emigração, que não queria este acordo, continuou a multiplicar as regras para impedir os trabalhadores de emigrarem legalmente, arrastando os processos. Assim, emigrar legalmente podia demorar meses, era complicado, caro e incerto. Por isso, geralmente, não havia camponeses portugueses que quisessem emigrar pela forma legal, já que a emigração ilegal era uma questão de semanas ou até de dias.

 

OEm – Isso é bastante interessante... Entretanto, isso levou-o a outra questão na sua tese.

VP – Sim, a vigilância dos portugueses em França. Vi alguns artigos na imprensa da extrema-esquerda portuguesa, que eu tinha consultado em França, sobre a presença de agentes da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) que vigiavam os portugueses, tanto os exilados como os emigrantes. Existiam muitos boatos e havia muito medo. Em Maio de 1968, algumas centenas de portugueses voltaram a Portugal quando houve as greves, porque tinham medo de estar em França, temendo uma eventual guerra civil. Eu queria saber como é que o estado português, a ditadura, tinha conseguido exportar o medo para França. A ditadura portuguesa funcionou muito com o medo que difundiu na sociedade, o que se via nos portugueses em França. Por exemplo, muitos portugueses viveram em bairros de lata, o de Champigny-sur-Marne era o principal e reuniu até 12 mil pessoas, quase uma cidade portuguesa em França, e houve vários relatos de funcionários franceses que tentaram entrar lá e disseram que muitos portugueses tinham medo, pensando que eles eram agentes da PIDE. Eu queria compreender como é que a PIDE funcionava e actuava em França, através dos "bufos" e dos próprios agentes que lá havia. Eu tentei ver isso usando o arquivo da PIDE, mas foi uma tarefa bastante lenta porque muitas vezes os inspectores da PIDE não escreviam os nomes dos "bufos" nos próprios relatórios. Por outro lado, na Torre do Tombo, os documentos com nomes de bufos não são disponíveis à consulta. Mas não é minha intenção saber quem eram os "bufos", eu só queria saber como funcionava o processo da exportação do medo e da vigilância. Ou seja, perceber como é que pessoas que nunca tinham visto a PIDE em Bragança ou Vinhais, continuavam a ter medo da PIDE em Champigny.

 

OEm – Percebeu se houve portugueses emigrados que faziam parte da PIDE?

VP – Vi que alguns tentaram entrar na PIDE, não conseguiram por vários motivos e emigraram. O que eu não sei é se, de facto, em França trabalhavam para a PIDE. Por exemplo, o que vem em muitas pastas da PIDE são as denúncias: contra pessoas que entraram de forma irregular em França, contra pessoas que são sindicalizadas, etc. Alguns enviavam cartas à PIDE em Lisboa a dizer coisas como "tal pessoa não tem passaporte, usou tal passador".

 

OEm – E quem é que enviava essas cartas?

VP – Qualquer pessoa.

 

OEm – Não tinha de pertencer à PIDE...

VP – Não, não tinha. A Irene Pimentel também trabalhou sobre isto, às vezes não eram motivações políticas, eram pessoas com inveja que enviavam cartas para denunciar quem tinha ido de forma clandestina ou quem estava na política, por exemplo, dizendo que "tal pessoa está muito próxima do sindicato". Às vezes a PIDE começava a investigar essas pessoas e quando havia cartas delas para Portugal eram abertas ou censuradas. Quando essas pessoas voltavam a Portugal de férias, por vezes, eram interrogadas na fronteira para ver se a denúncia era verdadeira ou falsa. Portanto, havia várias formas da PIDE ter informações sobre os portugueses que viviam em França.

 

OEm – Deu para ver se havia mais alguma infiltração da PIDE em França?

VP – Havia. Por exemplo, nas organizações políticas existiam pessoas que regularmente informavam a PIDE das acções que estavam a ser planeadas. A própria embaixada de Portugal recebia telefonemas, cartas e relatórios, e quando pareciam importantes, transmitia-os à PIDE. Alguns agentes da polícia política deslocavam-se frequentemente a França para ter contactos directos com os "bufos", falar com a polícia francesa, vigiar alguns indivíduos.

 

OEm – Mas não vinham prender os portugueses?

VP – Isso nunca vi. A PIDE tinha também bastantes contactos com os serviços secretos franceses que lhe davam informações. Portanto, havia uma rede de muitas fontes informativas que permitia à PIDE conhecer mais ao menos o que se passava, mas isso não significava que ela soubesse tudo.

 

OEm – O tipo de represálias que essas pessoas podiam receber passava por chegarem à fronteira e serem interrogadas?

VP – Sim. Quando a PIDE tinha conhecimento - com a abertura de correspondências, por exemplo - que pessoas em França tinham contactos com organizações políticas, ou tinham pessoas conhecidas politizadas, publicava uma ordem de captura. Quando essa pessoa voltava a Portugal era presa e interrogada. As pessoas que tinham acção política no estrangeiro eram muitas vezes presas quando chegavam a Portugal porque vinham fazer propaganda política, difundindo jornais e panfletos, por exemplo. Mas nem todos foram presos, muitos também vieram a Portugal e saíram sem que a PIDE soubesse que tinham actividade política.

 

OEm – Portanto, o medo que os portugueses sentiam da PIDE em França, esse tal medo que foi exportado, tinha alguma justificação...

VP – Sim, tinha, mas o que a PIDE conseguiu fazer, o que se pode ver nos estudos da Irene Pimentel e nos arquivos, é que a PIDE era muitas vezes apresentada como uma instituição que sabia tudo e que podia saber tudo facilmente, tendo, para tal, uma rede de polícias e de "bufos" muito importante e extensa. Só que isto não era propriamente verdade. Aliás, a própria oposição cultivou esta ideia, dizendo que a PIDE colocou "bufos" em todo o lado e, por isso, toda a gente achava que havia imensos. Mesmo nas aldeias mais remotas as pessoas pensavam que o vizinho podia ser "bufo". A PIDE foi muito eficiente em Portugal e no estrangeiro difundindo esta ideia, de que sabia de tudo e que estava em todo o lado, por via dos informadores e dos "bufos", e isto também funcionou em França. Isto é, mesmo que a PIDE não estivesse presente directamente, as pessoas continuaram a pensar que não estavam libertas do olhar dela. Como muitos emigrantes queriam voltar para Portugal, mantinham-se longe da política para evitar que eles ou os seus familiares sofressem represálias.

 

OEm – Depois da tese de doutoramento envolveu-se em mais algum projecto relacionado com a emigração portuguesa em França?

VP – Eu terminei a minha tese de doutoramento em 2007, depois fui pós-doutorando da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), na Universidade Nova de Lisboa, e desde 2009 tenho um projecto também financiado pela FCT, sobre a emigração irregular para França. Uma das conclusões a que cheguei na minha tese é que muitas vezes a emigração clandestina era apresentada como um desafio ao estado português, à ditadura. Ou seja, as pessoas iam de forma clandestina, por redes de passadores que funcionavam bastante bem, e isso era uma forma de desobedecer ao regime, era realmente um desafio. Só que a consultar os arquivos vi que para alguns governantes do estado português essas pessoas eram um desafio, mas para outros eram um mal menor, no sentido em que os passadores faziam o que o estado português não podia fazer, porque tinha medo das consequências políticas da emigração legal. Os passadores e os emigrantes clandestinos não eram todos vistos como um desafio ao regime, mas também como uma forma de conciliar os interesses contraditórios no seio do Estado. Nos anos 1960, o governo arranjou um excelente bode expiatório que podia explicar a emigração irregular e esconder a ambiguidade das autoridades: os passadores. Assim, as autoridades podiam dizer que a emigração existia, mas que não era o estado português que a facilitava, eram os passadores. Porém, as penas de prisão a partir de 1961 eram muito fortes, os passadores podiam passar até oito anos na prisão. Havia muitos que eram presos, mas quase nunca oito anos, os juízes eram bastante benevolentes nas penas. Nos arquivos, pode-se ver que a polícia política nem sempre se interessava muito pelos passadores. Às vezes prendiam passadores, mas estes eram postos em liberdade. Muitas vezes a polícia espanhola prendia os emigrantes clandestinos que atravessavam Espanha e devolviam-nos à PIDE, que os soltava sem que houvesse julgamento. A partir de 1961 a emigração clandestina é considerada um crime e os emigrantes podiam passar até dois anos na prisão.

 

OEm – Houve algumas prisões dessa natureza?

VP – Houve, mas poucas. Como dizia o próprio director da PIDE, Portugal não tinha suficientes cadeias para prender todos os clandestinos. Fernando Silva Pais defendeu nos relatórios que pouco se podia fazer contra a emigração clandestina. Portanto, eu quis compreender neste projecto o que é que justificava a emigração clandestina e vi que não era apenas um desafio ao Estado Novo. Mas também não se pode cair no erro contrário, pensando que o Estado Novo tinha um plano maquiavélico de deixar a emigração clandestina desenrolar-se, controlando para isso os passadores. O meu objectivo era ver como, de facto, a emigração clandestina funcionava, quais eram as relações entre os passadores e os engajadores e os emigrantes, e como se relacionavam os passadores e os polícias.

 

OEm – Este projecto da FCT foca-se no mesmo período da emigração?

VP – Sim. O projecto continua a decorrer, ainda estamos na pesquisa bibliográfica no arquivo da PIDE, no Ministério da Justiça, já fizemos algumas entrevistas a passadores de Vilar Formoso e espanhóis. Vamos tentar fazer mais entrevistas com todo o tipo de intervenientes do processo como passadores, engajadores, emigrantes clandestinos, antigos agentes da PIDE, fiscais, advogados e juízes.

 

Como citar  Pereira, Cláudia (2011), "O medo da PIDE foi exportado para os portugueses em França. Entrevista a Victor Pereira", Observatório da Emigração, 29 de Dezembro de 2010. http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4700.html

 

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