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O perfil sociodemográfico dos emigrantes do Noroeste português
João Queirós
João Queirós é sociólogo e investigador doutorando no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. O seu trabalho tem incidido sobre o estudo das transformações sociais e de classe. Tem publicados artigos e capítulos de livros que abordam questões relacionadas com a mobilidade e dinâmicas migratórias, no contexto regional do noroeste português, incluindo o fenómeno da emigração pendular para Espanha.

 

Entrevista realizada no Porto, a 23 de Maio de 2011, por Pedro Ribeiro. 

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) - Como é que, partindo do estudo de uma comunidade local do noroeste português, chegou ao estudo sobre a emigração?

João Queirós (à frente JQ) - Eu não acredito necessariamente numa segmentação demasiado grande da actividade sociológica em sub-disciplinas, sub-áreas de trabalho. Eu estava interessado em questões relativas ao processo de urbanização no Norte do país, questões de migrações, questões de desenvolvimento... migrações residenciais, mobilidade da população, etc. Tive sempre um pouco uma visão lançada a partir do contexto geográfico e socioeconómico do Norte do país, e do Porto em particular, e, quando estava a fazer a minha formação de base, sempre me despertou alguma reserva, no final da década de 1990 e no início desta década, precisamente a ideia da transformação de Portugal num pais de imigração e do abandono do processo emigratório como grande tendência migratória. E, a partir do Norte, temos a percepção empírica de que não é tanto assim, de que a emigração continua a fazer parte das estratégias das famílias - mesmo quando se falava mais em imigração, e mesmo quando, aqui no Norte, e em particular no Porto e em Braga, se verificava a vinda de muitos imigrantes, sobretudo do leste da Europa. Nós íamos vendo as pessoas a saírem, no interior do distrito do Porto isso foi sempre algo de relevante...

 

OEm - Essa constatação parece ser confirmada pelas próprias estatísticas, de que a emigração em Portugal nunca parou, mesmo nesse período...

JQ - Não sendo surpreendente, foi sobretudo um estímulo para lançarmos um olhar mais aprofundado sobre este tópico quando de facto verificámos que havia muito essa visão um pouco "lisboocênctrica", que naturalmente não é errada mas é alicerçada numa realidade daquele contexto. Mas a realidade das migrações no conjunto do país tem mais nuances do que na altura se estava a fazer crer. Até em termos de investigação houve uma grande orientação para os estudos sobre imigração, mesmo em termos de financiamento... Se fizermos uma análise das candidaturas a projectos de investigação nos últimos 10 anos na FCT, por exemplo, verificamos que o rácio de projectos sobre imigração para projectos sobre emigração é muito desfavorável a estes últimos. Mesmo agora, quando já se fala em termos mediáticos e políticos do retorno da emigração, continua a haver esse enfoque, por força também da consolidação de alguns grupos de trabalho, sobretudo em Lisboa. Fazendo uma perspectivação teórica e epistemológica do trabalho que vamos fazendo aqui, nós preocupamo-nos não tanto com as questões da emigração, mas estudamo-las  partindo de um enfoque nas transformações sociais e de classe no Noroeste português em particular.

 

OEm - Ou seja o vosso interesse no fenómeno da emigração é uma questão mais alargada, numa perspectiva integrada...

JQ - Claro, a preocupação da equipa de que tenho feito parte, que é coordenada pelos Professores José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira, é mesmo essa de estudar a realidade portuguesa, e em particular do Noroeste português, sob um ponto de vista integrado, que olha sobretudo as transformações socioeconómicas e classistas  como um todo e que olha em particular - eu e o meu colega Bruno Monteiro temo-lo feito - as questões relativas aos meios populares, ao operariado, às famílias de meios populares aqui no Noroeste português. E foi no quadro desse estudo sobre formação e transformação de classes sociais no Noroeste português que surgiu esta sub-temática específica que, não obstante, nós procurámos ainda assim não "essencializar", porque às vezes há um pouco essa tendência para olhar "o emigrante", "a emigração" numa perspectiva mais restrita, mais essencialista. O que vimos realmente é que era uma estratégia que estava a regressar para muitas famílias...

 

OEm - O estudo localiza-se em termos temporais em que momento?

JQ - Isto foi um cruzamento de dois estudos. Da minha parte, resultou do trabalho que estava a ser feito no âmbito deste estudo coordenado pelo Prof. Madureira Pinto, que foi uma revisitação de uma colectividade local em Penafiel, no interior do distrito do Porto, a meio caminho entre o Porto e Vila Real, 30 anos depois do estudo original que foi feito nessa colectividade. Nessa altura, final da década de 70, curiosamente, o tópico das migrações foi muito explorado, ainda que estivéssemos num período que foi mais de regresso, de uma certa inversão do fenómeno migratório que até aí tinha sido predominante. Apesar de estarmos nesse momento, verificou-se que o tópico das migrações era muito relevante, mas do ponto de vista das migrações internas e, em particular, das migrações pendulares (casa-trabalho).

 

OEm - Ou seja, do ponto de vista analítico, não fizeram propriamente uma distinção entre migrações "para fora" e migrações internas...

JQ - Não. O que nós quisemos foi estudar aquela comunidade local, perceber as transformações que aquela comunidade estava a viver ou tinha vivido nestes trinta anos (1977-2007), tendo como ponto de comparação o estudo original e tentando que tivesse um alcance regional, ainda que partindo de uma comunidade local. E um dos tópicos que tinha emergido no final da década de 70 tinha sido o de migrações muito relevantes naquela comunidade, designadamente  migrações casa-trabalho. E ao voltarmos lá, verificámos que essa realidade não só mantinha uma grande incidência, como se tinha aprofundado e diversificado. Uma das formas dessa diversificação foi a emergência local desta migração pendular quinzenal/semanal protagonizada por operários da construção civil empregados em Espanha.

 

OEm - Isso foi algo de novo nos trinta anos que mediaram os estudos...

JQ - Sim, sim. A distensão e a diversificação dos destinos da migração foram realidades que nós verificámos, mesmo neste concelho e nesta comunidade onde, havendo muita migração interna, não havia uma grande tradição de emigração... Se fôssemos, por exemplo, para Amarante, Baião, Marco de Canavezes, já seria um pouco mais forte. Aqui, não havia essa tradição. Por outro lado, em 2007, existiam 7% dos activos que estavam em Espanha e em França em migrações sazonais, migrações pendulares semanais ou quinzenais. O que nos remetia não para uma história da emigração local, mas para as transformações que grupos sociais do operariado do Noroeste português viveram e para as estratégias que, por força destas transformações, emergiram. Um processo contemporâneo articulado com este é o do progressivo encaminhamento das estruturas produtivas locais para a construção civil e actividades que incorporam na sua estrutura o fenómeno das migrações. E, portanto, aqui a ligação é não tanto com uma experiência familiar e histórica de emigração, mas com um encaminhamento das trajectórias profissionais para sectores que têm uma grande componente de migração (nem que seja interna), como é o caso da construção civil, e que, entretanto, por força também de estratégias das empresas e de acontecimentos que estavam a ocorrer particularmente em Espanha (boom do imobiliário e da construção civil), se repercutiu nos membros destas famílias que tinham relação com o trabalho através da construção civil e de actividades relacionadas com obras públicas.

 

OEm - Portanto, o que sucedeu entre os finais dos anos 70 e finais da década de 2000, nesta colectividade, foi uma transformação das estruturas produtivas e do tipo de actividades profissionais característico...

JQ - Este estudo tem a particularidade de analisar a emigração não no sentido do acompanhamento histórico de um processo emigratório que já fosse frequente e importante ali, mas como consequência de uma transformação mais profunda das estruturas sociais e económicas naquela colectividade e região. O que, por seu turno, tem um certo efeito reprodutivo, na medida em que pessoas que eventualmente não tinham na família experiência de emigração, que não tinham elas próprias uma experiência prévia da emigração, depois desta primeira experiência acabaram por materializar uma "carreira" de emigração. Ainda que haja regressos, obviamente... O meu colega Bruno Monteiro estava a estudar, na mesma altura, a indústria do mobiliário em Paredes (concelho vizinho de Penafiel). Em Paredes, e em particular em Rebordosa, há um grande peso da indústria local, autóctone, e portanto não havia uma história local, uma experiência muito forte da emigração "clássica" que era comum na região Norte do país. O que se verificou foi que, também aí, algumas transformações estavam a acontecer junto do operariado local, levando-o a começar a incorporar a saída do país e o abandono do sector do mobiliário como estratégia de reprodução. Por um lado, a indústria local estava a viver alguns problemas e a dispensar pessoas que tiveram de encontrar outras soluções de integração profissional. Por outro lado, como houve um boom de pessoas que saíram para a construção, também estava a surgir, em alguns trabalhadores da indústria do mobiliário, uma certa predisposição para avaliar a possibilidade de abandonar a sua carreira, por questões relativas a remuneração em particular, e embarcar num trajecto que acaba por ser desqualificante, porque se tratava de ir para a construção civil quando já se tinha alguns anos de carreira na indústria transformadora. O Bruno verificou que, no quadro destas transformações, também se estava a falar de emigração num contexto em que isso não era comum. Este cruzamento de duas realidades que tinham a sua singularidade e alguns aspectos de proximidade, fez com que olhássemos um pouco mais a fundo para isto para procurar integrar a análise da emigração e das movimentações destes operários na análise mais profunda que estávamos a fazer.

 

OEm - O vosso estudo desse fenómeno procurou apenas compreender os seus impactos ao nível local ou acompanharam as pessoas para perceber que motivações tinham e como se inseriam nos locais de destino?

JQ - Do ponto de vista metodológico, a dada altura reflectimos acerca disso. Começámos por trabalhar no contexto de origem, por recolher informação de enquadramento desses contextos, em particular em Rebordosa, Paredes (no caso do meu colega Bruno Monteiro), e em Fonte Arcada, Penafiel, no meu caso. Procurámos incorporar, designadamente nos inquéritos que aplicámos, questões que pudessem balizar o fenómeno do ponto de vista quantitativo e depois qualitativo. Logo nas comunidades de origem começámos a incorporar nos guiões de entrevista questões relativas à experiência da migração, num sentido geral, e depois, num sentido mais específico. Portanto, acabámos por ter acesso a números que, para essa comunidade em particular, nos davam conta da importância das migrações, designadamente das migrações profissionais (embora também residenciais) e que depois isolavam as questões relativas à migração intra-regional, inter-regional e internacional. Para além desta visão panorâmica e de uma tentativa de integrar a migração no quadro de uma análise acerca das estratégias destas famílias do operariado desta região, vimos depois que era importante olhar a experiência quotidiana destes migrantes. E  fizemos algum trabalho na comunidade - de observação, de entrevista a migrantes e a membros de famílias de migrantes nas comunidades locais que estávamos a estudar - e depois fizemos esse trabalho de acompanhamento de uma equipa de operários da construção civil que estava a trabalhar na Galiza, em Espanha, havia já algum tempo, no domínio das obras públicas. Durante uma semana, estivemos a viver com essa equipa de operários portugueses na residencial onde eles ficavam instalados. Tomávamos as refeições com eles, acompanhávamos o seu quotidiano e pudemos observar, por um lado, o quadro de vida destes migrantes numa semana de trabalho fora do país e, por outro lado, entrevistá-los e fazer esse follow-up tanto na comunidade de origem, como na comunidade de destino.

 

OEm - Estamos a falar sempre de migrações pendulares, certo? Semanais, quinzenais...

JQ - As obras são subcontratadas a várias empresas e portanto há várias equipas que convivem numa mesma obra. Nós acompanhámos uma, mas no mesmo local estava instalada uma outra que era de Braga e Barcelos e eram equipas que seguiam para lá (e nós fomos também) na segunda-feira de madrugada e regressavam na sexta-feira a seguir ao almoço. Estavam na Galiza, podiam vir semanalmente a casa. De todo o modo, contactámos lá com pessoas que tinham tido experiência prévia deste tipo de migração e, se iam para o País Basco, a migração era quinzenal, de três em três semanas, ou mesmo mensal. Alguns destes migrantes eram "novos", nunca tinham tido experiências de migração - nem sequer na família - mas havia outros que já tinham essa experiência, alguns até haviam sido imigrantes, por exemplo nos anos 1980 na Suíça ou na Alemanha, haviam regressado e, entretanto, com esta "nova vaga", tinham retomado as suas experiências migratórias. Curiosamente, já na altura em que fizemos o acompanhamento desta equipa, nos inícios de 2008, já depois do estalar da crise do sub-prime (finais de 2007), se anunciava, em particular em Espanha, um ano de "vacas magras" e já verificávamos alguns sinais de preocupação da parte dos emigrantes relativamente a uma deterioração das possibilidades de trabalho em Espanha e uma antecipação do que poderia ser feito para contornar isso.

 

OEm - E que estratégias eram adoptadas por esses emigrantes?

JQ- Por um lado, havia os que não tinham propriamente uma estratégia definida, do ponto de vista racional, e que admitiam voltar ao país...

 

OEm - Estamos a falar de pessoas que trabalhavam para empresas portuguesas?

JQ - Na maioria dos relatos que nos foram transmitidos, estamos a falar de empresas portuguesas subcontratadas por empresas espanholas. Era manifesto, da parte dos emigrantes portugueses, em particular daqueles que já tinham a experiência das duas situações, a ideia de que estar contratado por uma empresa espanhola era preferível, muito melhor do que estar contratado por uma portuguesa - por questões relativas a fidedignidade, tratamento, mesmo em termos de remuneração. O que verificámos era um sentido de diferenciação e de privilégio face àqueles que tinham um contrato devidamente assinado com uma empresa espanhola e não com uma portuguesa. Havia muito a ideia de que "os portugueses são os primeiros a prejudicar os próprios portugueses", "os empresários portugueses não são de confiança", "é melhor estar numa empresa espanhola", etc.  Mas voltando às estratégias que se estavam a projectar já nessa altura, havia quem já estivesse a projectar uma transferência para a emigração definitiva: lembro-me perfeitamente de um jovem que se preparava para se casar e que já tinha no final daquele contrato um pré-acordo para um contrato na Suíça, para onde iria com a mulher.

 

OEm - Em termos de caracterização das pessoas com que lidaram, estamos a falar de quem?

JQ - Maioritariamente jovens. Esta equipa, por acaso, tinha três pessoas mais jovens e outras três com mais idade, entre os quarenta e os cinquenta. Mas os mais jovens, em particular aqui no Norte, com qualificações relativamente baixas, eram pessoas com poucas perspectivas de inserção profissional num eventual regresso a Portugal e que, portanto, é compreensível que estivessem a antecipar a possibilidade do prolongamento da emigração e até a sua transformação em definitiva. Ali [Galiza] funcionou como uma espécie de tubo de ensaio até, eventualmente, ser encontrada alguma coisa mais estável: "realmente isto aqui é o melhor possível", "em Portugal, para mim, não há hipótese", "a minha única possibilidade é prosseguir este rumo"...

 

OEm - Vimos observando nas estatísticas espanholas um retrocesso do número de portugueses em Espanha nos últimos tempos. O que constatou permite-lhe dizer que esse facto pode não ter necessariamente por reverso da medalha o regresso a Portugal?

JQ - Sobre isso, temos algumas informações porque tentámos fazer o follow-up dessa equipa. É óbvio que estamos a falar de um estudo que não pode ser considerado representativo, no sentido estrito, estatístico, do termo, mas que é representativo do ponto de vista sociológico, se quisermos. Nós estamos a falar de uma equipa composta por trabalhadores da zona do Vale do Sousa e Baixo Tâmega (Paredes, Resende, periferia do grande Porto). Em relação a um dos trabalhadores mais velhos, não conseguimos traçar a sua trajectória subsequente mas há um outro, dos mais velhos, que regressou a Portugal mas com perspectivas de, se surgir a oportunidade, regressar à emigração; trata-se de uma pessoa que não está "com a corda ao pescoço" e que já esteve em França. Dois dos trabalhadores jovens que conhecemos prosseguiram o percurso de emigração. É de crer que alguma da emigração para Espanha tenha regressado ao país. Por acaso, na altura, alguns trabalhadores diziam: "em Espanha [a actividade] vai baixar, mas em Portugal vai melhorar". Era uma altura em que se falava na possibilidade de uma certa retoma económica (2007-2008), "Em Portugal, vai aparecer alguma coisa". Havia uma espécie de cálculo económico com pouca informação, digamos, mais wishful thinking do que [uma previsão] realista. A verdade é que, depois, estes dois trabalhadores mais jovens acabaram por prosseguir o trajecto de emigração. Portanto, é de crer que tenha havido algum retorno e incorporação nos números do desemprego. O aumento do desemprego no pós-2009, em Portugal, certamente incorporará alguns destes trabalhadores, em particular no Norte. Mas do que nos temos apercebido, e cada vez mais, é de uma diversificação dos destinos...

 

OEm - Trata-se agora de uma emigração menos sazonal, por comparação com a situação anterior?

JQ - Sim, ainda sazonal mas já sem o regresso semanal ou quinzenal a casa. Temos conhecimento de vários casos de pessoas que foram para Angola, França, Suíça e, portanto, uma parte importante desta emigração prosseguiu a trajectória migratória, ainda que distendendo e alterando a sua configuração. É um fenómeno que certamente valerá a pena acompanhar e que, retomando uma análise mais geral sobre as transformações socioeconómicas e de classe no Noroeste português, me parece que poderá ter alguma continuidade, pelo menos nos próximos anos, tendo em conta as dificuldades que se conhecem do tecido produtivo local em incorporar este excedente de mão-de-obra que existe. Acho que, naturalmente, não devemos entrar na mesma visão entusiasta/alarmante em que se entrou quando, há uns anos, se começou a falar na imigração. Fala-se agora na "nova vaga" da emigração, volta-se a ter um discurso eventualmente exagerado sobre a realidade mas, tal como sempre mereceu continuar a ser estudado, valerá a pena seguir este fenómeno, em particular aqui no Norte do país.

 

OEm - O vosso estudo incidiu em particular sobre uma determinada classe. A ideia que perpassa hoje na própria imprensa quanto à incidência da emigração qualificada ficou fora do âmbito da vossa análise?

JQ - Sim. Algumas das pessoas que têm estudado a emigração e que continuaram sempre a estudar a emigração (por exemplo, João Peixoto ou Ana Delicado) têm-se dedicado recentemente mais ao estudo da emigração qualificada que realmente, do ponto de vista relativo, terá tido um incremento maior do que a emigração mais próxima do modelo tradicional. É óbvio que não vou usar o argumento quantitativo absoluto para justificar que centremos as atenções no modelo mais próximo da emigração tradicional mas a verdade é que, aqui no Norte em particular, é residual a referência e a percepção que possamos ter de uma emigração qualificada. Mesmo no Grande Porto, onde a estrutura social é mais qualificada e onde se concentram os segmentos mais qualificados da população do Norte do país, é muito mais fácil a uns 10 km do Porto ser confrontado com jovens que até podem ter alguma qualificação (12º ano de escolaridade, por exemplo) e que vão para a Irlanda, para a Inglaterra, para a Holanda, mas trabalhar sazonalmente e em actividades desqualificadas, do que ouvir falar nos cientistas migrantes, por exemplo - ainda que saibamos que há uma grande mobilidade desse segmento da população. Portanto, o que verificámos aqui, é que quase não há referências a essa emigração qualificada e as que há referem-se a um número reduzido de casos. Aquilo com que nos confrontámos é com esta emigração que se aproxima da tradicional: sobretudo homens, entre os 25 e os 35 anos em média, com uma qualificação que não ultrapassa a escolaridade mínima na maioria dos casos e com uma trajectória profissional muito ligada aos serviços desqualificados ou à indústria, em particular em actividades ligadas à construção civil e às obras públicas. É este o perfil-tipo do emigrante no Noroeste português. O que a realidade nos mostrou foi isto e nós, obviamente, não lançámos o nosso olhar sobre segmentos mais qualificados de emigrantes.

 

OEm - Eventualmente, terão uma percepção mais completa, até a partir de outros projectos que têm agora em curso sobre o enquadramento económico da região, da forma como a emigração se articula com estas questões...

JQ - Claro. Se pensarmos no Norte, sabemos que a própria estrutura socioprofissional da região é ainda uma estrutura relativamente desqualificada e que, tendo vindo a assistir-se a uma melhoria da qualificação média (temos de aguardar informação mais recente e os censos 2011 serão importantes nesse sentido), existe também uma certa dualização da estrutura socioprofissional (e isto é muito marcado neste território). Neste estudo muito particular isso foi muito visível. A 30 km de distância do Porto, temos uma estrutura socioprofissional muito distinta. Nesta região, agrupam-se e vivem as pessoas que são os construtores, os alicerces do mundo urbano "mais qualificado", por assim dizer. São operários da construção civil, são as pessoas que trabalham nos serviços de limpeza, de segurança... Uma análise da emigração só pode reconduzir-nos a esta estrutura socioeconómica e socioprofissional.

 

OEm -Estudaram a inserção no destino? Ou concluíram que ela praticamente "não existia" um a vez que os casos que estudaram eram de uma emigração de cariz pendular?

JQ - Escrevi um primeiro texto sobre isto que apresentei em Lisboa num colóquio realizado no ICS e que foi um pouco excêntrico porque estávamos a falar sobre migrações protagonizadas por jovens na Europa e os representantes da academia portuguesa, sobretudo de Lisboa, abordavam a imigração ou a migração de jovens mais qualificados. Mas, respondendo à sua pergunta, uma hipótese que avancei na altura foi a de que este tipo de emigração, tendo essas marcas próximas do modelo de emigração tradicional, tinha algumas diferenças, designadamente nessa inserção de que fala. Eu na altura avancei com a hipótese de uma certa "desestruturação bipolar" ou "dipolar", um pouco por diálogo com o conceito de Maria Beatriz Rocha-Trindade, de uma certa vinculação bipolar ou de "comunidades dipolares" enquanto comunidades de emigrantes que reconstroem laços no local de destino, através das suas associações, da língua portuguesa, da cultura e do desporto, e que depois, por seu turno, reconstroem comunidade nos locais de origem, através, mais uma vez, das associações, das remessas (dos emigrantes), da construção da casa, das festividades, do regresso no Verão. Portanto, Maria Beatriz Rocha-Trindade aponta esta estrutura para dar conta desta dupla inserção, desta relação de "duplo vínculo" (que é uma expressão de Albertino Gonçalves, que estudou a emigração tradicional e as casas dos emigrantes, em particular aqui no Noroeste). Eu, na altura, tentei dialogar um pouco com estes conceitos e falei de desestruturação bipolar ou dupla desvinculação por referência a esta nova vaga de emigração pendular, como nós também lhe chamámos a dada altura. Esta emigração tinha contornos de precariedade económica, mas também social e pessoal. Por um lado, precariedade laboral; por outro lado, uma certa instabilidade quotidiana, quase esquizofrénica, se quisermos: trata-se de uma realidade muito volátil, não se trata só da deslocação semanal/quinzenal, mas há também a deslocação de estaleiro para estaleiro, em Espanha, as mudanças de cidade, de região, etc. Geralmente, estas pessoas passavam de obra para obra, de cidade para cidade, durante muito tempo, e, portanto, estavam em permanente deslocação e tinham um certo sentimento de estar entre cá e lá. Verificámos uma incapacidade prática para o estabelecimento de uma comunidade no local de destino - estamos a falar de um quotidiano muito fechado, estruturado em torno do trabalho, que ao final do dia culmina com a refeição e com o fechar-se no quarto para dormir. O convívio limitava-se à equipa, que era a unidade social básica, e pouco mais. Há aquela mitologia do tipo que vai gastar o dinheiro todo, à quinta-feira à noite antes de vir para Portugal, mas depois na prática isso são casos mais isolados. O que se verifica muito é este fechamento "sociabilitário", esta incapacidade prática para estabelecer laços, para investir na construção de comunidade no destino e também, não imediatamente mas a prazo, uma certa desvinculação relativamente à comunidade de origem. Uma coisa interessante que procurámos perceber em Espanha, ainda que de uma forma um pouco impressionista, foram as percepções locais sobre os emigrantes portugueses. Por exemplo, as pessoas do restaurante e da pensão diziam: "estão sempre a mudar, nunca são os mesmos"; "estes estão aqui há um mês mas já estão de saída". Era uma relação de alguma distância e volatilidade. Lembro-me também, por exemplo, de folhear a imprensa local e de haver referência à imigração (particularmente à latino-americana), mas nunca à imigração portuguesa. O imigrante português é um temporário e é de certa forma invisível, devido ao seu estatuto precário. A percepção que o português pode ter de si próprio a partir da realidade espanhola - isso era muito visível num certo mal-estar, em algumas acusações que, veladamente ou não, se faziam em relação ao "encarregado espanhol que beneficia os espanhóis", que "os portugueses aqui são maltratados", que "fazem o que eles não querem fazer" - era de uma certa invisibilidade e uma certa subalternização. Na comunidade de origem, por seu turno, ouviam-se os mais diversos comentários a faits divers relacionados com a desestruturação familiar (por exemplo, que as mulheres tinham casos extra-conjugais), e havia também, sobretudo para os que tinham constituído cá família, a tendência para o regresso a casa ao fim-de-semana e para um certo fechamento em torno da família nuclear: ir a casa para estar com os filhos e a mulher, eventualmente estar com os amigos e ir ao café, mas com um afastamento progressivo ("já nem me ligam", "já não querem saber de mim", "parece que já nem nos conhecem"). Havia também este pólo, cá, de um certo fechamento doméstico, familiar, aquilo a que chamámos o reforço de um certo individualismo "familista" de muitos destes migrantes, com consequências também numa certa desestruturação comunitária nos locais de origem. É óbvio que esta ideia é contestável numa análise mais geral sobre o que é hoje o modo de vida das classes populares nestas regiões que tem muito a ver com um certo fechamento doméstico, um investimento na casa...

 

OEm - O que nos está a dizer é que isso pode não ser resultado da emigração mas uma tendência geral...

JQ - A hipótese em cima da mesa é que será uma tendência geral, mas que eventualmente possa ser reforçada por essa mobilidade, pelo simples facto de não se estar lá durante a semana e, portanto, de possivelmente alguns laços se desestruturarem, com acentuação dessa tendência mais geral de reforço de um certo individualismo "familista", uma certa tendência de fechamento no reduto doméstico, um certo investimento nalgum consumo doméstico. Daí também este diálogo que procurámos fazer com a perspectiva mais clássica das migrações portuguesas, que era a dos emigrantes que investiam tanto na comunidade de origem, como na comunidade de destino. Isto marca uma diferença relativamente à emigração tradicional, se lhe quisermos chamar assim.

 

OEm - Qual é a sua percepção em relação a este tipo de emigração pendular? Caiu abruptamente ou apenas deixou de ser visível?

JQ - Não será nada fácil quantificar. Num pequeno aparte metodológico, creio que os dados dos Censos 2011 não vão ser nada esclarecedores relativamente a isso, ainda que o pudessem ser por força da diferença entre população residente e população presente. Mas creio que não, porque nós temos trabalhado muito no cruzamento de uma abordagem mais quantitativa com uma abordagem mais qualitativa e o que temos verificado é que, por força exactamente de uma alteração na percepção da emigração no sentido de uma maior flexibilização da mesma, de uma maior sazonalidade da mesma, as pessoas quando inquiridas não dão a pessoa como ausente, dão a pessoa como presente e como residente. As pessoas, quando inquiridas sobre "faça-me o retrato das pessoas que vivem aqui: quantas pessoas e quem são?", tendencialmente respondem: "eu, o meu marido e os meus filhos". Só mais à frente é que somos confrontados com "o meu filho está em França mas vem aqui todos os meses", por exemplo. A própria percepção sobre a emigração traz desafios metodológicos a quem quiser avaliar e quantificar o fenómeno. Por isso, eu não tenho a certeza sobre se os censos virão a ser clarificadores a este nível ainda. Pessoalmente, creio ser bastante difícil quantificar o fenómeno. De todo o modo, do acompanhamento que fomos fazendo, o que creio que possa estar a acontecer realmente é algum regresso de uma parte dos emigrantes, que se integraram nos números do desemprego ou no mundo do trabalho em Portugal. Muitas destas pessoas provêm da construção civil e têm a percepção de que estar na Galiza é mais perto do que estar em Lisboa e, se calhar, muitas delas o que fizeram ou tentaram fazer foi voltar a entrar no seu circuito profissional.

 

OEm - Mais uma vez isso tem a ver com a questão da auto-imagem, se as pessoas se vêem a si próprias como emigrantes...

JQ - Claro. As pessoas, mantendo-se no sector da construção civil, poderão ter prosseguido essa migração não necessariamente fora do país. Creio também que há um segmento importante destes migrantes pendulares, estou seguro - e estou a falar de números na ordem dos 20% da população activa em concelhos como o Marco de Canaveses, contas que fizemos tendo em consideração a informação dos sindicatos - que distendeu e diversificou o seu trajecto migratório. Logo a seguir à crise do subprime, quando em Espanha as coisas estavam a começar a deteriorar-se, houve em França um plano de obras públicas (que está em vigor), que recrutou logo muita gente e, se formos fazer uma pesquisa pelos jornais, vemos que França continua a ser um destino importante, designadamente para operários da construção civil. Há ainda o fenómeno Suíça, que merece continuar a ser estudado porque continua a ser, no imaginário e na realidade da emigração portuguesa, muito relevante. Ainda está  também por apurar, ainda que a imprensa lhe tenha dado destaque, a importância da emigração para Angola, com muita actividade económica a requisitar mão-de-obra portuguesa, designadamente nas obras públicas e na construção civil. Portanto, eu creio que uma parte significativa destes emigrantes distendeu e diversificou os seus destinos. Acho que Espanha poderá ter funcionado, sobretudo para os mais jovens, como um teste, como um balão de ensaio para uma trajectória de emigração, em particular nos casos em que foi mais bem-sucedida. Eu tenho um bom amigo que está neste momento em França a trabalhar em actividades do tipo, cujo exemplo resume as preocupações científicas que temos tido. Sem querer fazer sociologia da emigração a partir de um caso singular, ele é o exemplo de alguém que não é propriamente um emigrante no sentido tradicional do termo: não tinha na família nenhum historial de emigração, nem grandes relações com as redes de recrutamento de emigrantes, mas o que acontecia é que era um jovem relativamente pouco qualificado, com dificuldades de inserção profissional, com uma experiência precária de inserção profissional no país e que, a dada altura, porque tinha um cunhado que era operário da construção civil que decidiu ir para a Islândia (onde durante algum tempo houve bastantes portugueses a trabalhar em obras públicas), ele também foi. As coisas correram-lhe mal porque teve um acidente de trabalho relativamente grave. De qualquer maneira, há sempre uma relação ambígua com estas experiências, há sempre uma visão dividida da realidade. Ele teve essa má experiência mas, por outro lado, também houve aspectos positivos, designadamente remuneratórios e até uma certa aura aventureira associada à própria experiência de conhecer uma realidade completamente diferente da nossa. Depois deste percurso profissional de alguma precariedade, ele voltou agora, com o cunhado uma vez mais, a fazer um percurso, desta feita para França. E portanto, mais uma vez, isto reconduz-nos a um encastramento social destas estratégias migratórias, que têm a ver, em grande medida, com a desqualificação de segmentos importantes da mão-de-obra do norte do país, com experiências reiteradas de uma certa subordinação social, de uma certa precariedade laboral e, portanto, é mais uma fuga em frente, por assim dizer, é essa necessidade feita virtude que é o ir, o arriscar, para ganhar muito dinheiro e poder cumprir certas aspirações do ponto de vista pessoal...

 

OEm - Isso tem a ver com projectos de vida à moda da emigração tradicional, com vista a um regresso, ou as coisas hoje são muito diferentes, muito mais diversificadas?

JQ - Para este conjunto de jovens, relativamente desqualificados, que têm uma trajectória e uma experiência profissional desqualificada e eventualmente até desqualificante, e que têm esta experiência de uma certa dificuldade para concretizar com sucesso uma trajectória sólida e uma carreira profissional, eu creio que as coisas se vivem mais numa óptica de permanente instabilidade, de uma ausência de uma perspectiva sólida. Penso que é uma estratégia que é coetânea e que se articula com um modo de vida, com uma experiência social particular que é esta experiência de lidar com uma certa contingência, com as dificuldades...

 

OEm - Uma espécie de navegação à vista...

JQ- Sim, é um pouco isso, acho que a expressão é boa. Nós também a usamos para dar conta dessa precariedade e por, partindo da emigração, nos reconduzir, de facto, a uma incrustação social destes migrantes e destas pessoas que protagonizam a emigração e acho que isso, se do ponto de vista da análise da realidade é mais rico, por outro lado, do ponto de vista teórico e metodológico, é também um ensinamento interessante para a sociologia da emigração. Foi um ensinamento para nós e, portanto, se eventualmente demos algum contributo, foi neste sentido. Lembro-me de terem perguntado [em contactos anteriores] se prevemos prosseguir um estudo específico sobre esta realidade e de eu ter dito que provavelmente não, mas que deveríamos voltar a cruzar-nos com este fenómeno. Por exemplo, nós realizámos recentemente uma investigação no Vale do Ave, sobre desindustrialização da região, e voltámos a confrontar-nos com a incidência deste fenómeno, até com um certo regresso da ideia de emigração tal como podia ser encontrada há algumas décadas atrás. E se prosseguirmos os estudos territorializados sobre transformações sociais e de classe aqui no Noroeste Português, como pretendemos prosseguir, creio que nos vamos voltar a confrontar seguramente com o assunto. Foi para nós interessante confrontarmo-nos com ele e revisitarmos alguma bibliografia e trabalhos que tinham sido feitos, para podermos agora estar mais atentos a alguns sinais que entretanto a realidade nos venha a revelar.

 

OEm - Uma última questão que, no fundo, é mais um pedido de opinião, que se liga com o que estávamos a conversar e que tem vindo à baila a propósito sobretudo da emigração qualificada mas que poderíamos talvez generalizar: acha que, o facto de aparentemente não se encontrar, entre quem emigra, um projecto de vida de médio e longo prazo pode levar muitas pessoas a um corte na relação com o país? Por exemplo, e embora talvez seja ainda cedo para fazer este tipo de análises, o acréscimo recente da emigração não tem tido aparentemente uma correspondência tão significativa no aumento das remessas. Isto pode querer dizer que as pessoas não têm o projecto de regressar, ou que pelo menos se limitam a viver navegando à vista, como falávamos?

JQ - Não quero fazer o paralelismo entre a emigração mais qualificada e esta que nós, prioritariamente, estudamos, mas penso que pode haver alguma aproximação, ainda que num patamar completamente diferente, precisamente nesse aspecto de uma certa contingência da emigração actual, dos modos de vida e dos seus protagonistas, o não ter uma perspectiva de médio e longo prazo do que pode ser a trajectória profissional e pessoal do migrante. Nesse aspecto, essa contingência pode traduzir-se nessa possibilidade de um corte com o país. E acho também que aquela ideia da dupla desvinculação ou da desestruturação bipolar é um pouco para isso que remete, porque se verifica que se, por um lado, no destino não há o tempo e a perspectiva de continuidade que justifique um investimento maior na criação de comunidade, por outro lado, na origem há também esse paulatino afastamento da realidade local, que pode ter como consequência essa perda de vínculo com o país. Essa ideia de comunidade é algo que merecerá certamente alguma reflexão, algum estudo e intervenção pontual do ponto de vista político. Mas creio que sim, pode haver esse risco, tanto mais que o emigrante tem também hoje uma relação difícil com o país, com uma certa ausência de perspectivas que aqui existe. É um clássico do "velho" emigrante perspectivar o país dizendo que "lá fora é que é bom" mas depois o "velho emigrante" tinha aquela nostalgia, aquela ligação cultural que contrariava aquela perspectiva. Faz parte de ser emigrante a divisão social e simbólica que a emigração introduz, essa dupla visão "lá fora é que é bom" e "não há nada como a minha terra".

 

OEm - Talvez hoje haja um pouco mais de individualismo ...

JQ - Claro. De qualquer maneira, é verdade que está na natureza social do emigrante ter esta visão dividida da realidade. Não obstante uma certa individualização das trajectórias, uma maior contingência desses caminhos e das formas de perspectivação do futuro, creio que se mantém a perspectiva de que é aqui, no seu país, que as pessoas se sentem bem, apesar de tudo.    

 

Como citar  Ribeiro, Pedro (2011), "O perfil sociodemográfico dos emigrantes do Noroeste português. Entrevista a João Queirós", Observatório da Emigração, 23 de Maio de 2011. http://observatorioemigracao.pt/np4/4693.html

 

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