FR
Início / Entrevistas / M‐P
Quando os portugueses na Argentina falam de Portugal é à sua aldeia que se referem
Fernando Moura
Fernando Moura é doutorado em ciências da linguagem e da comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e licenciado em ciências da comunicação social pela Universidade Nacional de Buenos Aires. A sua tese, com o título “Construção da identidade de uma comunidade imigrante portuguesa na Argentina (Escobar) e a comunicação social”, serviu de mote à presente entrevista.

 

Entrevista realizada por telefone, 27 de Setembro de 2011, por Filipa Pinho e Cláudia Pereira.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) - Podia começar por nos dizer qual foi o seu percurso até estudar os imigrantes portugueses na Argentina...

Fernando Moura (à frente FM) - Primeiro, eu nasci na Argentina. Sou filho de um emigrante português, que saiu de Seia e foi para a Argentina em 1962. Sempre estive inserido na comunidade e desde pequeno que tive essa vontade e essa necessidade de entender e tentar explicar os porquês da emigração.

 

OEm - Como escrevia muito bem português nos e-mails, eu nunca percebi que não fosse "nascido e criado" em Portugal.

FM - Nasci na Argentina, mas o meu pai é português, a minha mãe é argentina. É um dos poucos casos de casamento misto. Na minha tese mostro que 95% dos portugueses que moram hoje na Argentina, têm casamentos endogâmicos. O meu pai fez um percurso diferente, casou com uma argentina que já é tão portuguesa como os outros porque, coitada, não teve muita hipótese de não ser... (risos). A minha mãe não tem irmãos, os do meu pai são cinco e, então, a portugalidade acabou por tomar conta. A família da parte dele é maior, ele e a minha mãe e o meu irmão viveram em Portugal - agora vão e vêm -, ela já fala alguma coisa em português, adquiriu a nacionalidade portuguesa... Quando eu fiz a licenciatura em comunicação social, na Universidade de Buenos Aires, o curso era de seis anos e era precisa uma tese para o fim do curso. Na altura, 1998, fiz uma tese sobre a RTP Internacional. A RTP Internacional era de 1992, quando em toda a Europa se tinham retraído os canais internacionais, como no caso da RAI e outras televisões. A tese foi sobre a RTP Internacional e a chegada à Europa e à América do Sul, porque na altura a RTP Internacional não chegava à Argentina e não abrangia os portugueses que viviam lá. Já em 1992, eu tinha feito um trabalho que foi publicado numa revista científica argentina sobre a comunidade portuguesa na Argentina, um trabalho sobretudo qualitativo, onde eu explicava um bocado as correntes migratórias, e foi aí que fui lançando a minha ideia de um projecto de tese. Mas entretanto eu comecei a filmar a comunidade: como trabalhava na televisão argentina, tinha acesso a câmaras - na altura não era tão fácil quanto hoje ter acesso a câmaras - e comecei a filmar um documentário que acabou só em 2008. O documentário tem um percurso de 10 ou 11 anos de gravações sobre os portugueses na Argentina, depois mostrei-o num Festival realizado em Seia, onde foi bastante bem recebido. A partir daí,eu fui fazendo o meu percurso e, em 2001, candidatei-me a um estágio em Portugal através da DGACCP (Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas) e acabei por ir para Portugal ao abrigo do programa "Estagiar em Portugal" destinado a portugueses e luso-descendentes.

 

OEm - Portanto, até aí viveu sempre na Argentina?

FM - Sim. Fui a Portugal várias vezes com a família. Em 1994, através de um intercâmbio do Instituto Português da Juventude, da altura, acabei por estar mais tempo, uns três ou quatro meses. Fiz um primeiro curso de História na Universidade de Coimbra e fiquei a pensar que um dia iria estudar em Portugal. Em 2001, quando surgiu a hipótese de estagiar aí, inscrevi-me sem muita confiança, porque a língua portuguesa estava esquecida, mas acabei por participar, fui lá, fiz o percurso todo... Na altura, houve a grande crise da Argentina, eu fiquei sem emprego e acabei por ficar em Portugal. Arranjei emprego na SIC e estive a trabalhar lá até 2008. Tive a hipótese de fazer uma pós-graduação na minha área, no IADE. E depois acabei sempre por pensar em fazer um doutoramento, mas era difícil porque não havia bolsa, eu trabalhava, e só em 2006, mesmo a trabalhar na SIC, é que apresentei um projecto na Universidade Nova de Lisboa Eles gostaram, comecei o doutoramento e fiz o trabalho todo em Portugal. A defesa foi em Maio de 2010 e vivi em Portugal até essa data.

 

OEm - E hoje em dia, continua na investigação, ou não?

FM - Sim. Embora esteja complicado, porque existe pouca vontade de financiar com dinheiros portugueses a América do Sul, eu quero continuar com o estudo, estendendo o que fiz na Argentina, nessa pequena comunidade, ao Cone Sul. Eu já apresentei, este ano, a ideia para um projecto de bolsa, com o Prof. João Sardinha e a Profª Beatriz Padilla, que é a de fazer uma comparação entre a comunidade portuguesa de Escobar e uma do Cone Sul que é São Paulo; mas não correu bem. E era para perceber se há semelhanças, como é que os meios de comunicação social que a comunidade portuguesa criou, tanto na Argentina como no Brasil, vão reconstruir a identidade. Há diferenças entre as duas, em que uma está isolada e perdida no tempo, porque o estado português nunca ligou para ela, e há São Paulo, no Brasil. Não há interesses criados pela academia portuguesa ou brasileira para estudar os portugueses hoje. Portanto, o que se está a estabelecer na América do Sul é isso. Enquanto todo o mundo estuda na Europa os portugueses em França, na Alemanha, no Luxemburgo, quase ninguém estuda os portugueses aqui nesta zona. Está certo que é uma migração um bocado anterior, mas é uma imigração que envolveu muitos milhares de pessoas e não se estuda. O que mais me preocupa como investigador é que são comunidades que, se não se estudam hoje, não se estudam mais, porque a migração, como sabem, parou, os portugueses já não migram para esta zona e estes vão morrer e quando morrerem acaba a memória aqui, visual e colectiva. Mas são fenómenos diferentes, o do Brasil e o da Argentina. O do Brasil, porque é muito longe, porque vem lá da altura colonial e o da Argentina porque foi sempre um destino assim...

 

OEm - Com uma emigração mais residual...?

FM - Sim. Mas se formos pensar e fazer contas, não é assim tão marginal. Emigraram para a Argentina, no século XX, ao todo, mais ou menos uns 80, 90 mil portugueses, o que não é pouco. Mas nunca ninguém estudou os portugueses na Argentina. Quando eu digo nunca, não é bem assim, hoje há três teses sobre os portugueses na Argentina: uma de um professor argentino, que se chama Marcelo Borges, que hoje estuda nos Estados Unidos, mas é uma tese historiográfica feita sobre pontes entre Portugal e a Argentina na década de 1950; depois, a de uma outra professora, que é a Ada Nemirovsky, com quem eu tenho feito muitas coisas e apresentado comunicações em congressos, antropóloga, que estuda o fenómeno agrário e como os portugueses na Argentina se colocaram na terra e como foram passando de empregados até terem posse de terra; e depois há o que eu estudo, como os portugueses formaram o conceito de comunidade e dos meios de comunicação social nesta zona. Não há nada feito na mesma área que eu, e a maior crítica que eu faço à minha tese é que não tenho como contrastar. E existem duas hipóteses: ou fico muito egocêntrico e feliz porque acho que o que fiz está óptimo porque não há outra coisa; ou, como é o meu caso, fico um bocado apreensivo porque não há nada que eu possa contradizer, sabes? Eu às vezes fico assim um bocado preocupado porque eu digo o que acho, mas não tenho ninguém que me possa dizer "poderia ser de outra forma". É uma pena porque eu acho que é uma migração importante, mesmo em termos estatísticos. Os portugueses na Argentina são a sétima corrente migratória do país até à década de 1950. Não são italianos ou espanhóis, que são milhões, mas é uma comunidade que foi importante, e que ainda hoje tem alguma visibilidade dentro de o que eu chamo de invisibilidade que é a estratégia que os portugueses encontraram de ficar quietinhos no seu cantinho a criar os seus clubes e associações portuguesas para, de alguma forma, recriar a sua aldeia de origem em Portugal; e ficaram por aí. Eles criaram essa estratégia para poderem viver na Argentina, em parte como argentinos, mas também como portugueses, acho eu. Os portugueses na Argentina foram tão esquecidos - e são tão esquecidos até hoje - que tiveram de criar as suas próprias ferramentas para recriar o seu Portugal. Na minha tese, a conclusão é essa, que os clubes são uma aldeia portuguesa de 1950, anos 1940 talvez, e eles fazem tudo ainda hoje para a recriar.

 

OEm - Já fez o enquadramento, penso que o que acaba de dizer é um óptimo ponto de partida para explicar de que forma a sua investigação se construiu, o que procurava e as conclusões...

FM - A tese é uma loucura como todas as teses. Eu quis tentar criar um marco teórico. Fiz uma tese em comunicação social e o objectivo era estudar os meios de comunicação portuguesa na Argentina, mas como não havia nada que me pudesse dizer quem eram os portugueses residentes em Escobar, Buenos Aires, de onde tinham vindo, o que tinham feito, porque tinham chegado à Argentina, como, onde viviam, eu tive de fazer antes uma tese antropológica. Então, a minha tese está basicamente dividida em duas partes. A primeira parte tem um grande estudo sociográfico em que eu fiz um censo da comunidade portuguesa em Escobar, ou seja, eu tive de identificar, na comunidade, quantas casas portuguesas havia, onde pelo menos uma das pessoas do agregado familiar, seja o marido ou a mulher, é de origem portuguesa, e a partir daí eu tive de criar uma amostra. Então, em 115 casas onde pelo menos um dos membros do agregado familiar é português, nascido em Portugal, eu fiz um questionário em forma de censo, para determinar a origem, quando emigraram, porquê. Mais tarde, fiz uma análise com essas pessoas, sobre a recepção e a ligação que eles tinham com os meios de comunicação portugueses, isto é, com os meios feitos na Argentina e criados pela comunidade, e com os meios feitos na origem, como alguns jornais que vêm de Portugal, a RTP Internacional e a RDP. O que eu queria saber era o que eles consumiam, porquê e como. Mas o mais importante era essa abordagem antropológica da investigação, que era de onde tinham vindo e como. Quase 40% da comunidade que vive em Escobar é originária de Seia, basicamente de duas aldeias, principalmente Paranhos da Beira; mais de 50% são da Guarda. Dos portugueses que temos hoje nesta zona da Argentina, diríamos que partiram de dois distritos, basicamente da Guarda e de Faro, mas da Guarda é Seia, e em Faro é Loulé. Se quisermos ser ainda mais minuciosos na análise, diríamos que são da Guarda, de Seia, e de Seia são da freguesia de Paranhos da Beira. No caso do Algarve, são de Faro, do concelho de Loulé, freguesia de Loulé.

 

OEm - Portanto, houve uma corrente muito localizada, uma rede muito localizada entre esses distritos e Escobar...

FM - Esse é um fenómeno que se estabelece na migração portuguesa para todo o mundo, que é uma migração feita por redes e capital social. Por isso, essa não é uma grande novidade.

 

OEm - Assim tão localizado é interessante de salientar, de qualquer modo.

FM - É uma migração feita, desde o século XVIII, em função das redes, capital social. É feita a partir da saída de alguém que depois vai levando mais pessoas. Por isso, portanto, um dos aspectos interessantes é que, contrariamente ao que se poderia pensar, a maior parte dos portugueses que foram para a Argentina e para esta zona, foram para um melhor emprego, mas associado ao reagrupamento familiar. De alguma forma, nessa emigração por redes e capital social, alguém da família em 1º grau ou 2º grau ou 3º grau, tinha emigrado em algum momento e esse alguém faz com que o resto da família vá para a Argentina. Então, nós temos uma migração feita por redes sociais, pensando num melhor emprego mas sempre olhando para esse reagrupamento familiar e, ao contrário das migrações europeias da mesma altura, os portugueses emigram em família. Isso não acontecia em França, na década de 1960. Neste caso, não, muitas vezes emigram primeiro os pais e os irmãos mais velhos e mais tarde a mãe e irmãos. Quase todo o núcleo familiar vai para aquele lado. Se você hoje fosse, por exemplo, à freguesia de Salir, em Loulé, ou a Paranhos da Beira, em Seia, você iria ver que quase todas as pessoas que moram na aldeia têm algum familiar na Argentina porque a migração foi feita dessa maneira. A segunda parte da tese, para mim a mais importante, era sobre os meios de comunicação. No século XIX, em 1881, é criado o primeiro meio de comunicação portuguesa nesta zona, o "Correio de Portugal: dedicado à colónia portugueza",  editado em Montevideu, Uruguai. Ao que parece, e pelo que mais à frente exporemos, este foi o primeiro meio de comunicação social étnico produzido pelos imigrantes portugueses residentes na região platina e não só, porque funcionou com um nexo no Cone Sul já que servia as comunidades do sul do Brasil, Uruguai e Argentina, todas reunidas numa zona conhecida, então, pela Coroa portuguesa como as "Repúblicas da Prata". Até hoje, os portugueses que vivem no Cone Sul, e sobretudo na Argentina, foram criando meios de comunicação social próprios para, de alguma forma, recriar o seu Portugal, mas sobretudo para se comunicarem internamente na comunidade. Por isso eu acho que a rádio e a imprensa escrita foram fundamentais na estruturação dos imigrantes como grupo. E a formação do grupo estabelece-se através dos clubes, através das festas, e dos rituais que ainda hoje a comunidade tem e conserva como fulcrais da sua identidade. Nesse aspecto, os programas de rádio desde a década de 1960 e a imprensa escrita desde o séc. XIX acabaram por ser fundamentais. Como a ligação com Portugal não existia, ou seja, não havia forma de manter contacto com a origem, porque não havia rádio, não havia televisão e a maior parte das coisas que havia nesta zona tinham muito baixa recepção, acabaram por criar ferramentas internas para poderem colmatar esse isolamento. Eles criaram o primeiro periódico e mais tarde programas de rádio para se comunicarem entre si e, de alguma forma, recriarem o Portugal que deixaram. Na tese trabalho esses aspectos.

 

OEm - Uma curiosidade que tive logo desde início, quando comecei a ler acerca do seu trabalho, foi a escolha da cidade Escobar. Pode esclarecer porque é que a escolheu?

FM - A escolha de Escobar teve duas razões fundamentais. Primeiro, porque eu nasci e fui criado dentro dessa comunidade. Há uns 30 mil portugueses na Argentina. Na província de Buenos Aires reside a maior parte dos portugueses na Argentina, e Escobar é uma das maiores e mais activas. Há três grandes comunidades: Escobar, La Matanza e Villa Elisa. São os três grandes núcleos portugueses no país. E depois há outros mais pequenos, como Villa Tesei, General Rodriguez, Gonzalez Catán, algumas cidades do interior da Argentina, como Comodoro Rivadavia na patagónia. Em Escobar, com filhos e netos de portugueses, serão uns 1.500 portugueses; em La Matanza, maior câmara municipal do país (juntando as prefeituras Isidro Casanova e Gonzalez Catán) mais 1.500-2.000; e depois Villa Elisa com 2.000. As outras têm 700, 800, 500, 200, e algumas já são de segunda ou terceira geração de portugueses, mas continuam a ter esses clubes. Por isso eu escolhi Escobar. E era a forma que eu tinha, por estar em Portugal, de desenvolver uma tese que me permitisse um trabalho de campo. A única forma que eu tinha de estudar a comunidade portuguesa de Escobar foi eu vir a Portugal. Ou seja, precisava de sair da comunidade, estranhar a comunidade, olhar de fora. Eu já tinha saído, os meus pais continuavam na Argentina e eu ia visitá-los, mas como investigador foi a forma de eu estudar a comunidade. O que é facto é que enquanto eu estava a fazer a tese, ouvia programas de rádio. Escolhi os mais importantes que a comunidade tem e uma das anedotas mais interessantes é que em muitos programas de rádio que eu acompanhei, primeiro pela Internet em Portugal e, depois, na Argentina, em casa e, mais tarde a fazer rádio, foi o trato que eu recebi dos que fazem o programa, que eu conhecia há muitos anos e que conhecia os pais e tudo o mais. Como eu vivia em Portugal, era interessante porque eu era investigador mas também era o informante. Então, eu ia ao programa e, sentado na mesa com eles, comentava como é que o país estava... Quando eu explicava como é que o país estava, estava a contradizer completamente o discurso de toda a gente. O que eu digo na tese é que a rádio cria um Portugal que não existe, onde é tudo perfeito, as coisas funcionam perfeitamente, onde a música continua a ser exactamente a mesma há 50 anos atrás... Nos meus programas eles diziam "o Fernando agora vai apresentar música portuguesa". E eu pensei que não ia pôr Xutos e Pontapés, mas "vou pôr alguma coisa de que também gostem muito e que esteja mais ligado ao que eles gostam de ouvir". E na altura tinha saído um dos discos novos da Mariza e levei, e também levei um da Mafalda Arnauth, de quem eu gosto muito. Quando acabou: "não gostamos disso, gostamos do fado da Amália". Então, o que eles fazem é recriar o Portugal deles. Não interessa se a Mariza vai para fora, ou se a Ana Moura é fantástica, ou se o Camané canta muito bem fado; eles querem é ouvir o que ouviam e todos os emigrantes ouviam e ficar por aí. Acho que é muito interessante, foi a forma que eles encontraram para se aguentarem. Entre 1940 e 1975, nada foi feito na Argentina com os portugueses na Argentina. A comunidade estava muito isolada, dentro do regime salazarista. Mais tarde já não aparecia, nunca houve grandes ligações com a origem. Então, criaram-se as ferramentas para sobreviver, de forma totalmente altruísta, porque quem faz o jornal português é um emigrante que apenas tem a escolaridade primária; quem faz os programas de rádio são emigrantes portugueses com a quarta classe, mas criaram as ferramentas para poder comunicar entre si. E uma questão que pode ser colocada, é: "teria acontecido se o estado português estivesse mais presente, como na Europa?". Eu acho que teria sido diferente. Nesta comunidade, a maior parte deles não voltou a Portugal, foi só a partir de 1995, 1996 que alguns o fizeram... Eu perguntei se tinham voltado a Portugal e a maior parte deles demorou 30 ou 40 anos para voltar pela primeira vez a Portugal, coisa que não acontece com os que estão em França ou Luxemburgo ou Alemanha, que durante o salazarismo não voltavam porque não podiam, mas que depois começaram a voltar e a construir as suas casas. Então no imaginário deles, a identidade portuguesa é a que eles deixaram. E sabe outra coisa interessante? Eu digo que esta é uma identidade imaginada, eles imaginam um Portugal que está recriado na aldeia. Outra questão importante que eu encontro nesta comunidade é que, quando eles falam de Portugal, do país, da simbologia do país, na realidade falam da sua aldeia. A maior parte deles, 95% deles, a única viagem que fizeram para Lisboa na sua vida foi a de comboio para apanhar o barco. Não conhecem Portugal, eles associam aldeia=Portugal=aldeia. E o clube, a festa, o ritual, é a aldeia recriada. Se for ver como eles estruturaram o seu clube, é como as filarmónicas que se têm em Portugal. Como sabe, durante o Estado Novo eram permitidas reuniões ou manifestações em Portugal, mais de duas ou três pessoas reunidas eram presas. Criaram uma estrutura vertical e recriaram essas filarmónicas que na Argentina se chamam clubes. Segundo a comunidade onde vai, predominam os costumes da comunidade de origem. Por exemplo em Escobar, como são mais beirões, há mais chouriços... Em Villa Elisa, como são mais algarvios, há mais peixe, mais bacalhau. Outra coisa interessante nesta comunidade na Argentina, diferente de no Brasil, ainda mais de França ou da Alemanha, é que os clubes não estão ligados a regiões, estão ligados a Portugal. Ou seja, você tem o Centro Recreativo Lusitano de Escobar, que foi o que eu estudei, tem o Clube Português de Buenos Aires, e são todos clubes que têm uma tendência para nomear o país e não uma região. No Brasil, não, há a Casa dos Açores, a Casa da Guarda... Aqui não, eles criaram clubes pensando no seu país. Mesmo que depois recriem a aldeia e não o país. O que eu digo é exactamente isso. A identidade deles é a recriação da sua aldeia de origem.

 

OEm - Atrás falou num documentário que terminou em 2008. Pode falar-nos um pouco desse documentário?

FM - Chama-se "Na Diáspora - Os Lusos na Argentina". É um documentário que eu deixei aí na Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas. Eu não sei se o espólio da biblioteca está mais organizado do que em 2007, mas deve estar por aí. Se não, o documentário está na Biblioteca de Seia, ou eu posso enviar.

 

OEm - Talvez o possa colocar na Internet, em algum lugar como o Youtube, para onde possamos depois remeter como ligação?

FM - Vou ter que pensar nessa questão e de como fazer. Na altura, quando esteve em exposição em Seia, também na RTP me contactaram, queriam fazer alguma coisa, mas depois não se proporcionou. Também pode ser porque eu dedico dois capítulos à RTP Internacional e não a trato muito bem...

 

OEm - O documentário trata do percurso dos portugueses na Argentina sobre algum aspecto em particular?

FM - O que eu tentei mostrar, basicamente, é como eles vivem e o que fazem. A partir de quatro histórias grandes eu vou contando o percurso migratório deles. E aí tem as festas, onde vivem... O documentário basicamente o que mostra é como os portugueses vivem na Argentina, mostra qual é a dificuldade de esses portugueses para falar português porque não falam português com ninguém e a maior parte saiu de Portugal há 50 anos e nunca mais voltou... Contam as lembranças... Portanto, o que eu faço é mostrar como esses portugueses vivem, o que fizeram, onde estão e, basicamente, para onde vão. Parti de quatro grandes personagens para identificar as quatro grandes correntes migratórias que há na Argentina no século XX e como estão posicionadas na sociedade. As pessoas que têm visto, têm gostado. Com o documentário, os políticos de Seia perceberam pela primeira vez que em Escobar, e portanto na Argentina, viviam portugueses naturais do concelho. Em 2009, o Presidente da Câmara de Seia, Eduardo Brito, esteve na Argentina, e foi iniciado, junto dele e da Câmara, um processo de geminação. Mas depois o governo mudou e com a crise económica e tudo o mais, aquilo estancou um bocado. Pode ser que em algum momento se possa reencaminhar essa questão. Acho que é fundamental pensar numa ligação muito mais forte desses emigrantes com Portugal. A comunidade vai desaparecer, as pessoas estão a morrer e está a ficar a segunda geração, que ainda tem força e ainda trabalha nos clubes e tudo o mais, mas cada vez mais é preciso ter alguma ligação com a origem.

 

OEm - Quer salientar mais alguma coisa do seu trabalho?

FM - Não, queria apenas destacar o isolamento dos portugueses na Argentina, as ferramentas que criaram para combater esse isolamento e, sobre a RTP Internacional, queria só dizer que está muito longe de ser serviço público porque tem de pensar se quer ser uma televisão internacional ou uma televisão transnacional. Acho que o maior problema que a RTP Internacional tem é esse, que não é uma televisão para as comunidades portuguesas que vivem fora, mas uma televisão feita por portugueses que vivem em Portugal, pensando nas comunidades portuguesas que vivem fora de Portugal. Uma das maiores críticas que a comunidade de portugueses na Argentina faz à RTP é que eles têm a RTP em casa, mas eles nunca se vêem lá, porque ninguém está interessado neles. O serviço público deveria atender às diferenças das comunidades, porque isso é outra coisa: quando você estuda ou faz uma coisa, não pode fazer de forma global. Os portugueses em França não são iguais aos da África do Sul e ainda menos aos da Argentina. Então, acho que era mais interessante pensar na emissão da Internacional a partir de outros patamares. É muito bom ter o Jornal da Madeira todos os dias no horário nobre da Argentina ou do Brasil mas, lamentavelmente, na Argentina e no Brasil quase não há madeirenses. Os açorianos, na Argentina, 0,0000%, madeirenses são 0,0001%. Então, a RTP Internacional deveria ter uma visão mais clara do seu público e pensar um bocado mais nessa especificidade das comunidades. Um dos arguentes da minha tese foi o Prof. Paquete de Oliveira, o antigo Provedor do Telespectador da RTP, e eu consegui discutir um bocado com ele essa necessidade de que se saiba quem vê e para quem está feita a RTP Internacional. E eu queria só dizer que vale mesmo a pena referir, do meu percurso, que eu fui a Portugal para estagiar na Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas, porque acho que isso foi muito importante. Foi muito bom, mesmo. Eu fiz muita coisa na altura com um colega brasileiro de quem agora sou muito amigo, que é sociólogo, e com quem na altura fiz uma análise para a DGACCP. Depois dos nove meses do estágio ficámos mais um ano a trabalhar naquilo e acho que foi fundamental eu ficar aí, para eu entender Portugal, e para eu me interessar a estudar esta temática.    

 

Como citar  Pinho, Filipa e Cláudia Pereira (2011), "Quando os portugueses na Argentina falam de Portugal é à sua aldeia que se referem: entrevista a Fernando Moura", Observatório da Emigração, 27 de Setembro de 2011. http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4690.html

 

Observatório da Emigração Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
Instituto Universitário de Lisboa

Av. das Forças Armadas,
1649-026 Lisboa, Portugal

T. (+351) 210 464 322

F. (+351) 217 940 074

observatorioemigracao@iscte-iul.pt

Parceiros Apoios
ceg Logo IS logo_SOCIUS Logo_MNE Logo_Comunidades