Entrevista realizada por skype, 27 de Maio de 2013, por Cláudia Pereira.
Observatório da Emigração (à frente OEm) - Tem uma vasta obra sobre a imigração portuguesa no Brasil. Como é que no seu percurso profissional e pessoal surgiu a ideia de fazer pesquisa sobre este tema?
Izilda Matos (à frente IM) - Eu venho de uma família de imigrantes portugueses: os meus avós eram portugueses, minha mãe e meu pai também, vieram ainda crianças e se conheceram no Brasil. Na minha trajectória de vida convivi com familiares e vários amigos portugueses e descendentes. No princípio da minha vida académica não tinha um interesse directo em fazer pesquisa sobre a imigração portuguesa. Minha tese de doutorado teve como objecto estudar as indústrias em São Paulo, priorizando as fábricas de sacaria para o café (toda a imensa quantidade de café que era exportada do Brasil estava envolta em sacaria de juta). Essas fábricas eram modernas e muito grandes, mas toda a sacaria era costurada à mão através de trabalho domiciliário, externo às fábricas. No processo de pesquisa através da documentação histórica, comecei a identificar a presença das mulheres imigrantes no trabalho fabril e na costura domiciliária, entre elas localizei um número significativo de imigrantes portuguesas. Então, comecei a fazer um retorno às minhas memórias de infância e concentrei uma parte das minhas investigações sobre as mulheres imigrantes portuguesas em São Paulo, tema a que me dedico desde 1990.
OEm - A sua formação inicial é em história...
IM - Minha trajectória académica é na área da história, a graduação e todo o meu trabalho de pós-graduação (doutorado e pós doutorado). Priorizo o final do séc. XIX e todo o séc. XX, digamos que é uma história recente.
OEm - No projecto de doutoramento concilia a sua ideia inicial, então, com o estudo do papel das imigrantes portuguesas na costura das sacas de juta do café...
IM - Comecei a ir atrás das experiências das mulheres portuguesas no quotidiano de São Paulo. No Brasil há muitos estudos sobre a imigração portuguesa, mas grande parte deles centra-se no Rio de Janeiro, onde, sem dúvida, o número de imigrantes portugueses foi significativo. A pesquisa que eu faço é tentar rastrear essas memórias e a trajectória histórica dos portugueses em São Paulo, mostrando sua presença. Em certos anos, os imigrantes portugueses foram o primeiro grupo de estrangeiros a entrar em São Paulo, em outros foi o segundo grupo (depois dos italianos). Todavia, ainda existem poucos estudos sobre a imigração portuguesa em São Paulo. Nos últimos anos, têm-se desenvolvido estudos que observam as experiências dos portugueses em diferentes regiões do Brasil, no Norte (Pará e Amazonas), no Nordeste (Pernambuco e Bahia), em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em todos estes estados do Brasil os portugueses tiveram experiências diferenciadas. Assim, meus estudos centram-se no estado e cidade de São Paulo. Apesar de a pesquisa ter começado pelas mulheres, porque temos pouquíssimos estudos sobre as mulheres imigrantes portuguesas, também pesquiso os homens, as familias, as crianças etc. Em alguns casos, os homens vinham primeiro, enviavam as remessas para a família em Portugal, algumas vezes chamavam as esposas e filhos e havia o reagrupamento familiar. Outras vezes voltavam. Já outros imigram em família, principalmente os que vinham subsidiados para a lavoura do café.
OEm - Na época do auge da emigração portuguesa para o Brasil?
IM - Sim, no período de 1900 até cerca de 1914, diminuindo em torno da I Guerra Mundial e retornando ao seu final. O governo de São Paulo necessitava de mão-de-obra e, por isso, implementou os subsidios à imigração, pelo qual pagava a passagem e hospedava os imigrantes, para tanto construiu uma grande hospedaria - a Hospedaria dos imigrantes de São Paulo. Estes imigrantes subsidiados iam trabalhar principalmente nas lavouras de café. O governo só subsidiava aqueles que vinham em familia.
OEm - Quais eram as razões por detrás dessa política?
IM - Em 1888, em plena expansão da lavoura cafeeira, acabou o sistema de escravatura no Brasil. Isso gerou uma carência de mão-de-obra por parte dos produtores de café e, devido a essa procura por trabalhadores, organizou-se o sistema de imigração subsidiada. No princípio, os italianos foram o maior grupo de imigrantes, mas, a partir de 1908, os portugueses já superavam os italianos. Também contribuiu o facto de o governo italiano ter proibido a imigração subsidiada devido às denúncias sobre as condições de trabalho destes imigrantes na lavoura do café.
OEm - E como eram essas condições de trabalho dos imigrantes, no início do século XX?
IM - Naquela altura as condições não eram fáceis, eram baseadas no sistema de colonato, em que os homens recebiam pelos cuidados com os pés de café e a família toda era integrada na colheita e recebiam uma percentagem do café colhido. O ganho não era mensal, o pagamento era realizado no final da safra, e logicamente nessa altura os imigrantes já tinham dívidas no armazém da fazenda; não era um sistema muito favorável ao imigrante. Muitos dos cafeicultores tinham sido senhores de escravos e tratavam os imigrantes como escravos. Com o passar do tempo, particularmente os cafeicultores do Oeste do estado de São Paulo, que tinham uma visão mais empreendedora, já não tratavam os trabalhadores da mesma forma.
OEm - Portanto, era um modelo de recrutamento...
IM - Geralmente, os imigrantes portugueses que vinham subsidiados para a lavoura do café eram os que não tinham condições económicas para comprar a passagem, os que tinham essas condições priorizaram a imigração para as cidades. Alguns, por exemplo, vieram com um pequeno capital para investir, particularmente, no comércio. Mesmos os que vieram subsidiados, depois de uma experiência no café (ao fim de dois, três ou cinco anos, dependendo da duração do contrato), tendiam a ir para a cidade.
OEm - Para que cidades?
IM - Para o interior do estado, mas principalmente para duas cidades: São Paulo e Santos. Neste momento SP é uma cidade em plena expansão industrial e urbana; e Santos, o porto, também tinha um crescimento intenso, e mantém uma forte marca da imigração portuguesa até aos dias de hoje. Os portugueses tenderam a vir para a cidade de São Paulo e para a de Santos porque ofereciam mais possibilidades geradas pelo crescimento urbano. Estas cidades estavam em obras e com muitas possibilidades de empregos na construção civil (carpintaria, marcenaria, pedreiro, serralheiro ou vidraceiro), também nos transportes urbanos (torneiros mecânicos, condutores, carroceiros, entre outros), nas indústrias ou nos serviços domésticos. Em Santos, para além de tudo isto, havia o trabalho portuário, que absorvia muita mão-de-obra. Nesta cidade muitos portugueses eram da ilha da Madeira e se estabeleceram no Morro de São Bento e no Morro da Nova Cintra - entre outros. Estes portugueses da Madeira trouxeram a experiência de construir em morros, e até hoje há descendentes de portugueses morando nestas áreas. Vários homens e mulheres portuguesas integraram-se nas diversas actividades ligadas ao Porto de Santos, além da estiva, o ensacamento de café, a selecção dos grãos, a própria costura da sacaria, em que parte realizada no porto. A presença feminina era muito significativa. Os imigrantes que vieram em família, ou os que constituíram família no Brasil, tiveram mais possibilidades de sucesso nos seus negócios - mesmo que fossem pequenos (pequeno armazém, loja ou leiteria) - porque as mulheres trabalharam arduamente nesses negócios e cuidavam da família, proporcionaram melhores condições alimentação e cuidados, o que os levou a ter melhor saúde e maior prosperidade.
OEm - E os que foram para a produção de café o interior do estado de São Paulo, de que zonas de Portugal eram originários?
IM - Vieram de todas as regiões portuguesas, particularmente do Norte e do Nordeste, muitos de Trás-os-Montes. As pesquisas que têm sido feitas em Portugal sobre as saídas da região do Norte estão concentradas na Universidade do Porto e no CEPESE, onde aparecem trabalhos demográficos quantitativos. No Brasil temos também investigado as listas de ingresso.
OEm - Essas listas de entrada no país eram feitas como?
IM - As listas de bordo eram feitas pelo capitão do navio, e eram obrigatoriamente depositada no porto de chegada. No Estado de São Paulo temos analisado as listas de bordo do Porto de Santos, mas esse material existe para outros portos do Brasil. Pesquisámos essas listas, para analisar quem entrou em Santos e comparar com as listas e os dados dos que saíam de Portugal. Ao cruzar estes dados constatam-se diferenças que, apesar de não serem significativas, têm explicação: a recolha das informações foi feita de formas distintas; havia também o passaporte colectivo, em que se registava o nome do chefe da família, esposa, filhos e algumas vezes agregados; havia os clandestinos. Nas listas de bordo vêm as pessoas que os navios apanharam em diferentes áreas, algumas vezes os navios vinham directo, em outras paravam no Norte (porto de Leixões), de Lisboa, da ilha da Madeira e dos Açores. Observa-se que a imigração funcionava em rede, os que se estabeleciam chamavam familiares e amigos, esta documentação ajuda a identificar as redes. Por exemplo, em Santos houve um grupo vindo da ilha da Madeira, chamado através destas redes. E os imigrantes açorianos que vieram para São Paulo nos anos 1950 praticamente estabeleceram-se num único bairro, a Vila Carrão.
OEm - Pode-se dizer que os portugueses vindos da Madeira, do Minho e de Trás-os-Montes chegaram a São Paulo sensivelmente no início do século XX, e os dos Açores a partir dos anos 1950?
IM - Para São Paulo, a imigração açoriana foi pouco significativa antes de 1950. Eles vieram para a Vila Carrão, onde existe hoje a Casa dos Açores. Hoje, as outras gerações, os descendentes destes açorianos, já se distribuíram por outras regiões da cidade, mas ainda há um grupo significativo de açorianos neste bairro.
OEm - Porque é que os açorianos foram especificamente a partir dos anos 1950?
IM - Havia neste bairro o "Cotonifício Guilherme Giorgi", de tecelagem de algodão, e os primeiros açorianos que chegaram foram trabalhar nesta fábrica, depois chamaram formando uma rede.
OEm - Sabe como é que os primeiros açorianos chegaram?
IM - Cheguei a entrevistar alguns dos açorianos, já com idade bastante avançada, que foram dos primeiros a vir. Tratou-se de um trabalho que fizemos a pedido da Casa dos Açores. Eles contaram as suas memórias, as experiências de trabalhar na fábrica, às vezes foi ali que começaram a namorar, portanto encontraram-se mesmo a partir da fábrica e da vizinhança. Eles não fizeram referências a subsídios, pois algumas vezes os proprietários de grandes fábricas tinham esta prática, eles tinham interesse na mão-de-obra e davam algum tipo de apoio para a viagem.
OEm - Chegou a haver alguma preferência dos empregadores por trabalhadores portugueses na área do café, ou noutra área, ou havia uma oferta de trabalhadores portugueses que eram assim integrados?
IM - Com o fim da escravatura, o governo implementou um projecto de imigração. Como dito, o imigrante preferido era o europeu, a princípio vieram muitos italianos, depois portugueses e espanhóis. Os portugueses tinham maior facilidade - língua, costumes, religião -, e melhor se integraram, eram considerados muito trabalhadores e económicos.
OEm - Faz-me lembrar o título de um dos seus artigos: "Em busca da árvore das patacas: o cotidiano e o trabalho de homens e mulheres imigrantes portugueses no Brasil" ...
IM - Sim. Os imigrantes portugueses vinham com o projecto de buscar de novas possibilidades: a terra, sucesso no comércio, o enriquecimento, os sonhos que ao mesmo tempo são colectivos e individuais... A busca pela realização desses sonhos fez com que muitos enfrentassem a saga de uma viagem transatlântica. Apesar das dificuldades da viagem, os fluxos entre Portugal e o Brasil eram intensos. Hoje, os estudos sobre migração questionam a abordagens que a justificam apenas pelas dificuldades no país de saída e os atractivos no país de destino. Para além destas condições, havia a busca pelos sonhos e novas possibilidades. Quem emigra leva consigo a ideia de retorno e, depois, conforme as condições esta ideia se transforma, e alguns se estabelecem definitivamente na sociedade de acolhimento. Na emigração portuguesa para o Brasil, em particular para São Paulo, observamos constantemente idas e vindas dos emigrantes, alguns chegaram a ir e vir cinco vezes, voltavam para Portugal e depois retornavam a emigrar para São Paulo, as experiências foram múltiplas e variadas. O que complexifica a quantificação destes imigrantes, que aparecem várias vezes nas listas de saídas e de chegadas.
OEm - Só que nesse caso a mesma pessoa apareceu três vezes nas listas das ordens de ingresso...
IM - Esse ir e vir de vários portugueses foi muito constante, eram intensos os fluxos de pessoas e também o volume das remessas.
OEm - Essas remessas foram muito importantes na altura para Portugal, Miriam Halpern Pereira também já o referiu numa entrevista ao OEm...
IM - Sem dúvida! Viabilizaram muitas vezes a economia portuguesa, não só com o investimento de capitais, mas também através de pequenos investimentos na aldeia de origem, possibilitando melhor qualidade de vida, o estabelecimento de actividades e negócios, construção de casas melhores, a compra de animais e outros benefícios. Não se consegue quantificar todo o impacto economico e social destas remessas, mas pode se captar os efeitos na aldeia de origem e nas famílias dos emigrantes.
OEm - Lembra-se qual foi o período de maior crescimento das remessas?
IM - Como a imigração portuguesa em São Paulo cresceu a partir dos anos 1890, mas se intensificou a partir de 1903 até 1914, e depois abranda, o fluxo de remessas acompanha estes fluxos e se mantém contante por muitos anos. Os fluxos de remessas também ocorrem dos emigrados para o Rio de Janeiro e para a Amazonia. Depois de São Paulo e Rio de Janeiro, o terceiro maior contingente de portugueses foi para a Amazonia, tive um orientando que estudou os portugueses em Manaus (estado do Amazonas).
OEm - Como se chama esse investigador?
IM - Paulo Barreiro dos Santos. Já terminou o doutorado e actualmente é Professor na Universidade do Amazonas. Além de pesquisar a imigração portuguesa em São Paulo, tenho procurado implemetar as pesquisas sobre o tema, tenho vários mestrandos e doutorandos que trabalham ou trabalharam a temática. Também estimulo a investigação em outros estados e cidades, as pesquisas em Santos (feitas por Maria Aparecida Franco e Maria Suzel Gil Frutuoso), no Amazonas (além do Paulo Marreiro, Luis Balkar Pinheiro, Geraldo Pinheiro e Maria Luiza Ugarte), no Pará (Maria de Nazaré Sarges, Magda Maria de Oliveira Ricci, Antonio Otaviano Vieira Jr.,Cristina Donza, Eliana Ramos Ferreira, Aldrin de Figueiredo). Para tanto, é necessário os cuidados com a documentação, é o caso de Manaus, onde está a digitalização de toda a imprensa portuguesa, ou em Belém, o Arquivo da Universidade Federal do Pará dirigido pelo prof. Otaviano. Estas acções com as fontes são fundamentais para se ter as condições propícias para novas investigações. Há também investigadores no Rio de Janeiro, com destaque para Lená Medeiro de Menezes. Tive recentemente um doutorando (Leandro Pereira Gonçalves) no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, que estuda as relações entre os integralistas brasileiros e lusitanos, particularmente a figura de Plinio Salgado. Os portugueses que voltavam para Portugal (ditos brasileiros de torna viagem) são propagandistas (propaganda indirecta) das possibilidades de São Paulo. Muitos foram bem-sucedidos, é o caso de um grande empresário portugues em São Paulo, o José Ermínio de Moraes, que construiu um império industrial e foi grande benfeitor na sua região de Portugal. Há uma questão interessante nas pesquisas que tenho feito: desde os finais da década de 1920, até o final da II Guerra Mundial, o governo brasileiro coloca várias barreiras as entradas de imigrantes, buscavam seleccioná-los, evitando os denominados "imigrantes indesejáveis". Contudo, os portugueses foram sempre excepções e, nesse sentido, o governo brasileiro fez vários acordos com Portugal (entre 1930 a 1945).
OEm - Na altura havia uma boa imagem do trabalhador português...?
IM - Sim havia uma boa imagem, que foi construída aos poucos, mas também ambiguidades. Havia estes empreendedores portugueses, também uma grande quantidade de portugueses que trabalhavam por conta própria (pequenas oficinas, confeitarias, armazéns, padarias). Alguns prosperaram, nestes pequenos negócios, o português era visto como trabalhador e poupador, mas também era acusado de causar a carestia e inflação.
OEm - Porque é que alguns portugueses eram acusados de inflação?
IM - Como os portugueses tinham presença significativa no pequeno comércio de abastecimento quotidiano, eram acusados de esconder a mercadoria para depois a vender mais caro, de elevar muito o preço em busca de um lucro maior.
OEm - Que tipos de mercadorias? Bens alimentares?
IM - Sim, principalmente pequenos armazéns, quitandas [mercearias], açougue [talho], padarias, etc. Por um lado, a imagem reforçava os portugueses como trabalhadores e poupadores, mas, por outro, como sovinas e açambarcadores. Existia e existe um número grande de padarias de portugueses em São Paulo e, na altura da II Guerra, com a falta de trigo, ocorreram muitos conflitos e denúncias de que eles escondiam o trigo ou misturavam-no com outros grãos e questionava-se a qualidade, o peso e o preço do pão.
OEm - Estou a lembrar-me de um outro artigo seu que está disponível em linha, "Portugueses e experiências políticas: a luta e o pão", em que dá uma outra perspectiva, a das lutas e das greves em torno do pão e de melhores condições.
IM - Em São Paulo, como os italianos foram os primeiros a chegar e vieram em número elevado, ocuparam os postos nas fábricas e outras actividades, também seriam os principais articuladores do movimento operários, organizadores da imprensa operária, marcadamente anarquistas. Os portugueses chegaram numa segunda fase e sabemos que havia muitos conflitos entre italianos e portugueses, que eram acusados de pouco politizados e de não aderirem a causa operária, tornando-se ausentes nas fontes operárias. Durante vários anos, o meu esforço foi o de mostrar a participação dos portugueses, tanto homens como mulheres, nos movimentos e nas lutas operárias, através da pesquisa intensa (na imprensa, nas fontes patronais, policiais entre muitas outras). A pesquisa enfrentou dificuldades como de reconhecimento dos portugueses em vários documentos, já que não se pode diferenciar os nomes dos portugueses e dos brasileiros. As pesquisas sobre as lutas operárias também permitiram observar a participação das mulheres portuguesas. Neste sentido, os estudos sobre a história das mulheres em Portugal, e no Brasil, tem estabelecido grandes interlocuções. Desde 1991 (quando fui a primeira vez academicamente a Portugal) para hoje, pude perceber como as pesquisas cresceram e como dinamizamos o diálogo, inicialmente foi feito um convénio com a Comissão da Condição Feminina para aprofundar as pesquisas, depois com outras instituições universitárias e outras pesquisadoras, como as profs. Irene Vaquinhas (Coimbra), Maria Tereza Cunha e Natália Ramos (Universidade Aberta). Mas acho que ainda há muito que fazer, pesquisar sobre o passado das mulheres que ficaram e as que vieram.
OEm - Um dos seus contributos é que abordou e diferenciou os homens e as mulheres na imigração portuguesa em São Paulo, não se focando apenas num deles, mas nos dois de forma integrada...
IM - Quando se aprofunda uma perspectiva de género não se pode isolar o feminino do masculino, porque mesmo muitos homens vieram sós e as respectivas mulheres ficaram em Portugal. Agora, que tenho-me dedicado muito à análise das cartas dos imigrantes, posso dizer que vê-se claramente como as redes funcionavam, não só através das cartas de chamada, mas também no contacto constante. Por exemplo, nas cartas que eram escritas regularmente, comentava-se, perguntava-se sobre tudo: os negócios na aldeia, o pequeno comércio na vila ou cidade, a saúde de todos, o envio de dinheiro para poder melhorar as condições de vida e o conforto da família, ou o envio da passagem. Pelas cartas chamavam parentes e conterrâneos, também para concretizar o sonho da reunificação famíliar no Brasil. Acabei de escrever um artigo, baseado nas cartas, sobre os preparativos para a viagem e a mala do emigrante, abordando as suas tradições, o quotidiano, o que traziam e o que não traziam, o que tinham e o que deixavam, as ferramentas de ofício, os instrumentos de música (porque muitas vezes eram pessoas que apreciavam a música por lazer ou profissionalmente); é uma documentação com grande potencial. A antiga Hospedaria dos Imigrantes é hoje o Memorial do Imigrante de São Paulo, além do Museu tem um grande acervo com documentos, entre outros as cartas.
OEm - Então, reuniram várias fontes históricas no Memorial do Imigrante, inclusive as cartas dos imigrantes portugueses?
IM - Tem algumas cartas. Como já disse, para se fazer a pesquisa precisamos organizar as fontes. Desta forma, foi um processo de luta de convencimento dos gestores do Museu que esta documentação era tão importante como o acervo museológico, e que precisávamos organizar o arquivo. Foi uma luta para que os documentos fossem tratados, organizados, digitalizados e hoje parte deles já se encontram online. Quanto às cartas, o maior volume são missivas dos italianos, em seguidas os portugueses. Foi a partir dessas cartas que fui várias vezes a Portugal pesquisar nos arquivos do Porto, Lisboa, Braga e Bragança. As cartas são localizadas junto aos processos para passaportes, a legislação limitava as saídas das mulheres sem autorizaçao dos maridos, que muitas vezes estavam no Brasil. Nesses arquivos foi feito um trabalho de recolha dessas cartas, hoje tenho em mãos cerca de 2.500 e ainda há muitas mais. Estabeleci parcerias com colegas de outras universidades, lembro o prof. Henrique Rodrigues de Viana do Castelo. Temos, por isso, um projecto bastante amplo para trabalhar essas cartas, é um tesouro em termos de fontes históricas. Este trabalho com as cartas facilita muito a interlocução com a semiótica e com os investigadores da literatura, a literatura epistolar. As saídas, as distâncias e as saudades foram grandes motes para a escrita. O esforço de manter contacto era ainda maior para as pessoas semiletradas, para alguns era um grande desafio e, por vezes, as cartas são muito rústicas no tipo de letra, no português fonético... Encontrei cartas que nem eram em português, nem em galego, depois identificamos que era mirandês...
OEm - Interessante...
IM - Sim, de Miranda do Douro, há aqui imigrantes com laços dessa zona de Portugal. Então, as cartas têm sido um desafio, algumas são muito difíceis de se trabalhar. Nos últimos trabalhos sobre as cartas temos uma grande equipa fazendo a investigação, alunos de licenciatura, mestrandos, doutorandos e pós-doutorados, financiados pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento de Pesquisas) e a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
OEm - Voltando um pouco atrás, as mulheres não podiam ir sozinhas para o Brasil...
IM - Exactamente, as mulheres casadas só podiam emigrar sem que os maridos as chamassem.
OEm - Em que anos houve essa proibição?
IM - A legislação vigora durante grande parte da primeira metade do século XX. Os filhos menores também não podiam ir sem as cartas de chamada. Era proibido as mulheres viajarem sozinhas devido às questões em torno do tráfico das mulheres e da prostituição. Nesse sentido, as cartas de chamada faziam parte da burocracia para tirar o passaporte em Portugal e, a partir de 1920, passaram a ser obrigatórias para entrarem em São Paulo.
OEm - Era obrigatório em Portugal as mulheres terem carta de chamada para irem para o Brasil?
IM - Para tirar o passaporte era necessário ter carta de chamada. Mesmo aos homens solteiros era-lhes facilitado o passaporte se tivessem uma carta de chamada, porque já dava a garantia que ser-lhes-ia mais fácil empregar-se. O governo brasileiro exigia que quem tivesse mais de 60 anos, ou tivessse qualquer deficiencia física, tivesse carta de chamada ou que assegurasse que tinham que cuidasse deles(as). Isto reforça as ações do governo que queria selecionar o imigrante desejado, o que tinha saúde para trabalhar.
OEm - Além das cartas, que outras fontes tem utilizado noutros projectos?
IM - Coordenei uma pesquisa com a Casa dos Açores, foi um projeto entre a PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde trabalho há mais de 25 anos) e a Casa dos Açores. Foram feitas várias entrevistas, hoje depositadas na PUC e na Casa dos Açores, e essas entrevistas foram trabalhadas por diferentes investigadores que estavam articulados ao projecto. Eu tive uma doutoranda (Elis Regina D´Angelo) que fez uma tese sobre a Festa do Divino na Casa dos Açores em São Paulo, ela começou a fazer essas entrevistas e depois interessou-se e fez o doutoramento sobre os açorianos. Eu trabalhei estas entrevistas sobre a perspectiva das mulheres, das memórias femininas e depois de as ler e reler, me interessei pela questão dos sabores, dos gostos, das práticas de cozinha (nas festas e no quotidiano), a gastronomia, e como essas tradições portuguesas foram preservadas, também como foram recriadas enquanto "gastronomia etnica". A pesquisa também abarcou as questões do sistema de abastecimento em São Paulo. O facto de os portugueses estarem presentes no comércio, tanto no quotidiano como no comércio importador, possibilitou o acesso ao azeite, ao vinho, a certos tipos de produtos.
OEm - Portanto, quando os portugueses começam a ter o pequeno comércio com estes produtos no início do século XX...
IM - A balança comercial de Portugal para o Brasil foi sempre muito favorável para Portugal, no Brasil consumiam-se - e consome-se - muitos produtos de Portugal, como o bacalhau, o azeite, os enlatados, a sardinha, a variedade de vinhos, as compotas. Portanto, havia um grande comércio importador com uma procura crescente a partir do fluxo imigratório português para São Paulo.
OEm - O seu trabalho atravessa várias fronteiras: disciplinares, como a história e a antropologia; geográficas, os diferentes estados do Brasil e a sua diferenciação interna; e temáticas. Agora está a investigar o consumo de cultura material, através das práticas da gastronomia e dos objectos que levavam na mala de emigrante: já pesquisou a identidade, o género, a diversidade profissional, o envolvimento nas lutas operárias, os que estavam nas aldeias e nas cidades ...
IM - É muito importante questionar a ideia do imigrante português universal, único, sintetizado num número. As experiências de imigração são múltiplas envolvendo homens, mulheres, jovens, adultos e crianças, os que viram sós, ou em familia, os que vieram subsidiados ou com capital, os que vieram no começo do século XX, nos anos 30 ou 50, os que imigram hoje. Os que imigraram para o Norte (Amazónia), São Paulo, Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil. São processos diferentes, como os que vão para o campo ou para a cidade. Para os que tinham diferentes perspectivas políticas, os que se envolveram nas lutas operárias ou os que eram vinculados ao governo salazarista. Também os que foram bem-sucedidos e os que infelizmente não conseguiram ter sucesso. Tem que se obsevar que as experiências são múltiplas, não existe o imigrante português universal. Existem muitas histórias de imigrantes portugueses no Brasil, eles não são só números, ou manchas ocultas no passado, cada um tem uma pequena/grande história, uma memória, que pode ser a janela para desvendarmos a sua presença, tradições, facilidades e dificuldades no Brasil. Esta forma de abordagem permite descobrir as múltiplas histórias de homens e mulheres portugueses. As pesquisas vêm sendo implementadas através de convénios com instituições portuguesas. Não sei se conhece a Rede REMESSAS?
OEm - Não conheço...
IM - É uma sigla: Rede de Estudos das Migrações da Europa do Sul para a América do Sul - REMESSAS. Foi criada recentemente por iniciativa do CEPESE, articula pesquisadores sobre o tema da imigração, na realidade surgiu de um grupo de pesquisadores portugueses e brasileiros que se discutem (já há mais de dez anos) os temas da e/imigração portuguesa para o Brasil e hoje se ampliou para outros paises como Espanha e Itália. Se fazemos o inventário das diferenças comparando a imigração portuguesa no Norte, sudeste e Sul do Brasil, é salutar também comparar a imigração dos portugueses com a dos espanhóis e italianos no Brasil. Nesta rede destaca-se o Professor Fernando de Sousa e sua equipa em Portugal e vários pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará e Amazonas (já citados). Através dela voltamos a olhar para e/imigração através de novas perspectivas, além da económica e demográfica incorporando a cultural no desafio de descobrir as múltiplas experiencias de e/imigração dos portugueses para o Brasil. Contudo, ainda resta muito a fazer, precisamos de novas pesquisas.
Como citar Pereira, Cláudia (2013), "Percursos na História dos portugueses no Brasil: entrevista a Izilda de Matos", Observatório da Emigração, 27 de Maio de 2013. http://observatorioemigracao.pt/np4/4676.html