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Mobilidade e redes translocais nas aldeias de fronteira
João Baía
João Baía é doutor em antropologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), onde também concluiu o mestrado em antropologia. É investigador associado do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e do Observatório da Emigração. O seu trabalho foca-se em migrações, redes translocais, memória, movimentos sociais, fronteiras e trajetórias biográficas. Entre 2022 e 2024, lecionou História, História da Cultura e das Artes e Cidadania na Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho e na Escola Secundária Gil Vicente. A sua tese de doutoramento, intitulada Fronteira, (i)mobilidades e redes translocais: migrações a partir de uma aldeia raiana de Trás-os-Montes, foi concluída em 2023.

 

Entrevista realizada via Zoom, a 13 de novembro de 2024, por Carlota Moura Veiga.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – João, a tua formação em Sociologia e Antropologia levou-te a explorar temas como a mobilidade e as redes sociais em áreas de fronteira. Houve alguma experiência pessoal ou académica que te tenha despertado o interesse pelas comunidades migrantes e pela forma como as fronteiras influenciam essas dinâmicas?

João Baia (à frente JB) – Sim, a minha formação começou na licenciatura em Economia na Universidade de Coimbra. Curiosamente, naquela altura, o tema das migrações não era muito forte na faculdade. Tive a oportunidade de aprender com a professora Maria Ioannis Baganha, mas ela lecionava mais sobre métodos e análise de dados em SPSS. No mestrado em Antropologia, tive a sorte de contar com dois professores fundamentais: João Leal, que abordava temas como a cultura e o transnacionalismo, e Paula Godinho, que estudava as áreas fronteiriças. O entusiasmo dela, especialmente sobre a fronteira luso-espanhola, despertou a minha curiosidade para esse universo. Além disso, participei num projeto sobre imigração irregular na década de 1960, onde entrevistei migrantes, passadores e guardas fiscais, e também consultei arquivos. Foi nessa fase que comecei a estudar de forma mais aprofundada as mobilidades e as fronteiras.

OEm – E por que escolheste Montezinho como ponto de partida para a tua tese?

JB – Durante o projeto sobre imigração irregular, entrevistei um senhor que foi fundador da Casa de Trás-os-Montes, em Les Pavillons-sous-Bois, nos arredores de Paris. As associações como essa são sinais de migração em cadeia. Isso motivou-me a investigar mais e, a partir daí, escolhi Montezinho. Além disso, as redes transfronteiriças foram um fator importante, pois os habitantes dessas aldeias frequentemente se identificam mais com as aldeias do outro lado da fronteira do que com a capital do país.

OEm – O conceito de translocalismo, que utilizaste, é uma abordagem alternativa ao transnacionalismo. Como se aplica à emigração portuguesa?

JB – O translocalismo permite uma comparação mais ampla das trajetórias migratórias, tanto para destinos internos quanto internacionais. Diferentemente do transnacionalismo, que tem o Estado-nação no centro do seu conceito, o translocalismo permite comparar essas trajetórias de forma mais eficaz. Ele foca os lugares de circulação, os pontos de conexão entre a origem e os destinos, em vez de se centrar exclusivamente nas relações entre Estados-nações.

OEm – Durante a tua investigação, percebeste transformações culturais e sociais significativas na aldeia? Quais foram essas mudanças?

JB – Sem dúvida, houve transformações importantes. A migração feminina para Espanha foi fundamental. As mulheres ampliaram o raio social de interação, primeiro para Espanha e, mais tarde, para França. Por outro lado, os homens expandiram esse raio através do serviço militar. O contato com outras realidades foi um fator importante para a saída das aldeias. Depois, houve uma fase de esvaziamento, mas também uma fase de revitalização, com a recuperação das casas e o surgimento do turismo rural.

OEm – Abordaste também o impacto das redes de interação social e o papel das mulheres na dinâmica migratória. Podes explicar melhor?

JB – As mulheres desempenharam um papel crucial nesse processo. Elas foram pioneiras na migração para Espanha, o que acabou por abrir caminho para a migração masculina para França. Além disso, as redes sociais de apoio, como as associações de portugueses no estrangeiro, foram fundamentais para facilitar a adaptação e a integração dos migrantes.

OEm – Falaste também do conceito de "raio social de interação". Como este conceito ajuda a entender as redes de apoio aos emigrantes portugueses?

JB – O "raio social de interação" refere-se ao alcance das relações sociais e influências culturais antes e depois da migração. Antes de emigrar, o raio social dos habitantes de Montezinho estava muito centrado na zona fronteiriça. A migração alargou esse raio, criando novas oportunidades, mas também desafios, principalmente no que diz respeito à adaptação a novos contextos e à manutenção das redes de apoio.

OEm – Existe uma conexão entre a religião e os vínculos entre os migrantes e Montezinho?

JB – Sim, a organização mais forte na aldeia é a fabriqueira, que gere os fundos para a igreja. Há também diferentes cofres na aldeia, incluindo um para a manutenção da igreja e outro para a organização das festas religiosas e pagãs. A festa de Santo António, por exemplo, é repetida em agosto, permitindo a participação dos migrantes. Contudo, a organização dessas festas tem sido afetada pela falta de voluntários, especialmente entre os mais jovens.

OEm – Como vês as políticas públicas para incentivar o retorno de emigrantes e a fixação de novos residentes nas aldeias do interior?

JB – Este é um tema muito relevante. Muitos partidos falam sobre isso, mas criar condições para o repovoamento das aldeias não é uma tarefa fácil. É difícil justificar um grande investimento em territórios com pouca população, mas o desinvestimento só acelera o despovoamento. Uma possível solução seria investir em redes de cuidados domiciliários para a população idosa, em vez de forçá-los a sair para lares. Além disso, melhorar a infraestrutura, como as estradas e a rede de internet, e criar oportunidades de emprego sustentáveis seria essencial.

OEm – No que estás a trabalhar atualmente?

JB – Após a minha tese de doutoramento, o meu interesse tem sido em aprofundar a relação entre a aldeia e o Estado ao longo do tempo, bem como analisar os impactos da lógica extrativista. Também tenho vontade de estudar os novos retornos dos filhos dos migrantes. A segunda geração de emigrantes terá um papel crucial: venderão as casas ou irão regressar? Alguns falam em voltar, mas para outras regiões, como o Algarve. Acompanhar essa dinâmica seria muito interessante.

OEm – Muito obrigada pela partilha, João! Alguma mensagem final que gostarias de deixar?

JB – Acredito que é essencial continuar a estudar as dinâmicas das aldeias raianas e das comunidades migrantes. As políticas públicas devem ser mais informadas por estudos qualitativos e pela voz das próprias comunidades. Muito obrigado pela oportunidade!

 

Como citar Veiga, Carlota Moura (2025), “Mobilidade e redes translocais nas aldeias de fronteiras: entrevista com João Baía”, Observatório da Emigração, CIES, Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, 13 de novembro de 2024. http://observatorioemigracao.pt/np4/10249.html

 

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