Entrevista realizada em Maputo, a 24 de maio de 2024, por Cláudia Pereira.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.
Observatório da Emigração (à frente OEm) – Muito boa tarde, professora Inês Raimundo. Agradecemos ter aceitado o convite para ser entrevistada para o Observatório de Emigração. Gostaríamos de começar por perguntar: como é que, no seu percurso académico, chegou ao tema das migrações?
Inês Raimundo (à frente IR) – Ah, muito obrigada. É um prazer para mim poder partilhar um pouco do que sei sobre este assunto e também falar um pouco da minha vida. Aliás, a minha vida, assim como o percurso da minha família, foi marcada por migrações forçadas. Talvez tenha sido isso que me levou, consciente ou inconscientemente, a estudar migrações forçadas. Como cheguei até aqui? Bem, fui "forçada" a ser professora, a fazer o curso de formação de professores de História e Geografia, mas não era isso que eu queria. Eu queria fazer outra coisa, algo que não fosse dar aulas. Depois de muitos anos, quando estava em Nampula, vim para Maputo. Em 1990, entrei na Universidade Eduardo Mondlane. Por causa do meu desempenho académico, fui convidada pelo então diretor da Faculdade de Letras, o professor Manuel Garrido Mendes de Araújo, para trabalhar com ele como assistente de investigação e assistente científica. Na altura, já fazia parte do Departamento de Geografia, e já havia um colega a estudar a área demográfica, focado na fecundidade. O professor sugeriu que eu seguisse a linha das migrações, e foi aí que percebi que este tema realmente tinha a ver comigo.
OEm – E era na Faculdade de Letras, correto?
IR – Sim, porque em 2000 houve a fusão entre a Faculdade de Letras e o Instituto de Ciências Sociais, formando a atual Faculdade de Ciências Sociais. Em 2000, tive a oportunidade de receber uma bolsa de estudos. Fui para a África do Sul, e lá percebi que havia uma escola dedicada ao estudo das migrações forçadas. Achei que isso tinha a ver comigo, e decidi focar nisso.
OEm – E isso foi em 2000?
IR – Sim, exatamente. Em 2000, quando houve grandes inundações no Limpopo e cerca de 30.000 pessoas tiveram de ser evacuadas da cidade de Xai-Xai, onde nasci. Durante a minha pesquisa de mestrado, estudei migrações internas em Moçambique, na província de Gaza, e entrei em contacto com as histórias de muitos refugiados que haviam sido deslocados para a África do Sul e o Zimbabué por causa da guerra. A cheia no Limpopo foi devastadora. A cidade de Xai-Xai ficou inundada, e muitas pessoas precisaram de ser evacuadas. A minha dissertação de mestrado focou-se em migrações internas causadas por esse tipo de desastre natural. Fui até ao ponto mais alto da bacia do Rio Limpopo, na província de Gaza, e entrei em contacto com comunidades afetadas, tanto pelas cheias como pelos efeitos da guerra. Além disso, encontrei refugiados moçambicanos que haviam sido deslocados pela guerra, principalmente para a África do Sul e o Zimbabué. Quando percebi o impacto das migrações forçadas, decidi aprofundar a minha pesquisa.
OEm – E o que encontrou na sua pesquisa?
IR – Além de estudar os deslocados internos causados pela cheia, percebi que havia uma dinâmica interessante relacionada com os moçambicanos que fugiram para países vizinhos durante a guerra. O que descobri foi que muitos migrantes não estavam apenas a fugir da guerra, mas também a usar as migrações como uma forma de procurar uma vida melhor, com segurança e condições de vida adequadas. Durante o meu doutoramento, continuei a estudar as migrações, agora com foco na província de Niassa, uma região onde a migração era muito menor do que em outras áreas, como Cabo Delgado, mesmo sendo ambas as províncias afetadas pela guerra colonial.
OEm – Porque escolheu Niassa?
IR – Eu queria entender por que razão Niassa, que tem o mesmo nível de desenvolvimento e estava igualmente afetada pela guerra, não tinha o mesmo fluxo de migrantes para Maputo como outras regiões, como Cabo Delgado. Estudei a migração de Moçambique para o Malawi, já que os dois países têm uma fronteira aberta. Fui até ao Malawi, entrevistei refugiados moçambicanos que se estabeleceram lá, e percebi que a migração não era apenas motivada pela guerra. Outros fatores, como a proximidade geográfica, também influenciavam a migração.
OEm – Encontrou alguma diferença entre as motivações para a migração dos moçambicanos para o Malawi e para a África do Sul?
IR – Sim, uma das grandes diferenças foi que o Malawi sempre teve uma política de fronteiras abertas. Moçambicanos podiam atravessar livremente, o que facilitava o processo de migração. No entanto, a África do Sul, devido à sua política de controlo de imigração mais rígida, era uma opção mais difícil. Mesmo assim, muitas pessoas foram para a África do Sul, principalmente durante a década de 1980, quando o apartheid estava no auge. O que percebi é que muitas das migrações para a África do Sul e para o Malawi eram resultado de uma combinação de fatores, incluindo a procura de melhores condições de vida, a procura de trabalho e a fuga de conflitos e desastres naturais.
OEm – A sua pesquisa também abordou o impacto das migrações nas comunidades de destino. Pode falar-nos mais sobre isso?
IR – Claro. Ao estudar as migrações internas e transnacionais, percebi que as comunidades de destino, especialmente em áreas urbanas como Maputo, estavam a ser fortemente impactadas. Em Maputo, por exemplo, o número de migrantes aumentou significativamente, o que gerou desafios na infraestrutura urbana, nas questões de habitação e na oferta de serviços públicos. Ao mesmo tempo, também percebi que muitos migrantes traziam novas habilidades e conhecimentos para as áreas urbanas, o que ajudava no crescimento económico dessas regiões. No entanto, a crescente população de migrantes também criou tensões sociais e problemas de integração.
OEm – Também mencionou o impacto das migrações em questões de saúde, como a disseminação do HIV. O que encontrou sobre isso?
IR – Essa é uma área que tem sido muito debatida. Durante algum tempo, havia a ideia de que a migração era responsável pela disseminação do HIV, mas, na minha pesquisa, percebi que essa visão não era totalmente correta. O HIV espalha-se principalmente por comportamentos de risco, como relações sexuais desprotegidas. Embora a migração possa criar condições em que as pessoas estejam mais vulneráveis, o principal facto para a disseminação do HIV é o comportamento individual, e não a migração em si. Por isso, a migração não deve ser vista como a principal causa da epidemia, mas sim como um facto contextual.
OEm – E, ao longo da sua pesquisa, teve também a oportunidade de trabalhar com colegas de outros países da África Austral. O que aprendeu com essa colaboração?
IR – Foi uma experiência muito enriquecedora. Trabalhei com colegas da África do Sul, do Zimbabué e de outros países da região num projeto sobre migração transfronteiriça. O que aprendi é que a migração na região da África Austral é muito mais complexa do que a narrativa tradicional de que todos os migrantes da África do Sul vêm de outros países da África Austral. Na verdade, também há fluxos migratórios de moçambicanos para países vizinhos, e muitos migrantes acabam por retornar a Moçambique, como aconteceu com alguns trabalhadores moçambicanos que migraram para a África do Sul, mas não conseguiram ajustar-se lá.
OEm – Falou sobre alguns mitos relacionados com a migração. Quais são os principais mitos que encontra frequentemente?
IR – Um dos maiores mitos que encontrei foi o de que a migração é sempre um reflexo de um desequilíbrio económico ou da falta de recursos. Embora esses fatores sejam importantes, há uma série de outros fatores que também influenciam a migração, como a procura de segurança, a necessidade de melhorar a qualidade de vida e a procura de melhores condições de trabalho. Outro mito é o de que a migração é sempre em direção à África do Sul ou à Europa. O que percebi na minha pesquisa é que muitos migrantes retornam ao seu país de origem ou se deslocam para outros países, como o Malawi, que tem políticas mais abertas de imigração. Outro mito é que a migração está diretamente ligada ao HIV, o que, como mencionei, não é verdade. A migração não é a causa do HIV, e sim os comportamentos de risco.
OEm – E o que acha que deve mudar na forma como as políticas de migração são tratadas em Moçambique e na África Austral?
IR – Acredito que é necessário desconstruir as narrativas preconceituosas sobre a migração e começar a olhar para ela de uma maneira mais holística. As políticas migratórias devem ser mais flexíveis e adaptadas às realidades locais, levando em consideração os diferentes fatores que impulsionam a migração, como conflitos, mudanças climáticas, oportunidades económicas e sociais. Além disso, é fundamental que os países da região desenvolvam políticas conjuntas para garantir a segurança e o bem-estar dos migrantes, reconhecendo a migração como um fenómeno global que deve ser tratado com compreensão e humanidade.
OEm – Muito obrigado pela sua entrevista, professora Inês, e por partilhar as suas experiências e reflexões connosco.
IR – Eu que agradeço. Foi um prazer estar aqui e discutir estes temas tão importantes. Espero que as reflexões sobre migração possam contribuir para uma melhor compreensão do fenómeno e para o desenvolvimento de políticas mais justas e eficazes.
Como citar Pereira, Cláudia (2025), “Desafios e dinâmicas das migrações forçadas: entrevista com Inês Raimundo”, Observatório da Emigração, CIES, Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, 24 de maio de 2024. http://observatorioemigracao.pt/np4/10232.html