HUGO SILVA, PEDRO CORREIA
Da janela do quarto andar do Hotel Diplomàtic vê-se o bar por cuja porta saíram apressados, pouco tempo antes, dois rapazes. Atravessaram a Avinguda de Tarragona - é avenida mas nem é muito - para esvaziar a bexiga junto a um pequeno parque de estacionamento. Ao lado, um baldio cercado por telas metálicas estava branco de neve. Temperatura abaixo dos zero graus. Os rapazes, aquecidos, vestiam t-shirt. Não havia gelo que lhes pegasse.
São quase quatro da manhã e Andorra La Vella, núcleo central do principado de Andorra, parece dormir. Num canal de vendas espanhol procura-se convencer os telespectadores que um computador portátil é a 13.ª maravilha do mundo e uma verdadeira pechincha. O bar em frente ao hotel já tem a porta fechada. Dos rapazes, nem sinal. Ninguém na rua.
Está frio em Andorra. Ainda a muitos quilómetros, no autocarro conduzido por Eduardo Feijó, seis anos de volante rumo ao principado transformado em enclave turístico, e por Faustino Alves, em viagem de estreia, Joel espera pelo momento do encontro com a namorada Diana. "Os pais estão lá a trabalhar há alguns anos e ela está com eles, a estudar", explica.
Joel Dinis acordou às cinco da madrugada e, depois da viagem de comboio entre Aveiro e o Porto, já estará a pouco tempo de ver terminada a jornada de autocarro que começou, quase 20 horas antes, na portuense Praça da Galiza. De camioneta, para ir de Portugal e Andorra, mais de mil quilómetros, gasta-se quase um dia inteiro na estrada. "Vou três ou quatro vezes por ano", conta.
Em Andorra, a língua oficial é o catalão, mas uma comunidade portuguesa com quase de 14 mil pessoas torna o ambiente familiar. A crise já levou muita gente a regressar. Se o turismo resiste, a construção civil ressente-se da conjuntura económica. A emigração está praticamente encerrada - é tarefa quase impossível conseguir uma autorização para trabalhar em Andorra.
Há 18 anos, António Leão da Silva só queria lá ir comprar uma aparelhagem, uma máquina fotográfica e aprender a esquiar. Depois de um par de meses emigrado na Suíça e uma temporada em França na apanha da fruta, resolveu passar pelo principado antes do regresso a casa. Mas arranjou emprego, ganhou dinheiro e, quase duas décadas depois, ainda lá continua. Até já chegou a servir o rei de Espanha.
"Não há condições em Portugal para quem quer buscar a vida", desabafa, num sotaque musicado pelo castelhano. Uma "língua" partilhada por muitos dos que formam a comunidade portuguesa. Inúmeras palavras espanholas polvilham o discurso. António é dono do restaurante "Pa i Vi", já tem mais dois negócios em perspectiva e não pensa regressar a Portugal. Nem quando se reformar: "Tenho uma casa aqui, outra para férias na Costa Brava. Não vejo condições para voltar, tendo em conta o nível de vida que faço".
"Ai que saudades!", exclama Rita Moura, enquanto prepara "bocadillos" (sandes) e uma imensa feijoada à transmontana. Também há carapaus à espera de tratamento para o almoço. "Isto só é bom para férias. Minha rica cidade do Porto...", suspira a cozinheira gaiense que há quatro anos está em Andorra. O filho, Sérgio, cozinheiro como a mãe, chegou primeiro. Os pais, Rita e Delfim, seguiram-lhe as pisadas. "Quero voltar a Portugal, estou aqui para ganhar umas coroas", esclarece logo Rita.
"Enquanto houver trabalho vou ficando", diz Filipe Amorim, 20 anos, de Arcos de Valdevez. É operário na serralharia Estrella, de um conterrâneo, José Amorim Cardoso. "O trabalho tem diminuído. O trabalho e a gente, muitas pessoas têm ido embora", admite o patrão.
Por agora, a serralharia "vai dando para manter", mesmo com a crise na construção civil. "Mais 15 anos e volto para Portugal", sentencia José. Por certo, Filipe gostaria de ficar mais tempo, garantir o futuro financeiro. Mas "está complicado".
"No último ano e meio foram embora muitos portugueses", confirma o colega de trabalho Paulo Melo, de Águeda. "O trabalho baixou muito", reitera Agostinho Parente, que deixou Portugal há mais de cinco anos precisamente porque a situação estava má. E as notícias que chegam da terra natal continuam a não ser animadoras.
Agostinho vai continuar em Andorra com a mulher e os dois filhos pequenos. Até porque as primeiras dificuldades de integração foram ultrapassadas. A presença de uma vasta comunidade portuguesa ajudou. A relação com os locais, com os andorranos, uma minoria dentro do próprio país, é mais complicada.
Ainda assim, ao JN, os emigrantes rejeitam a existência de xenofobia para com a comunidade lusitana. Concedem que, entre milhares de portugueses, há sempre quem arranje problemas e que isso, por vezes, poderá acarretar prejuízos à imagem da comunidade. António da Silva Cerqueira, presidente d' "Os Lusitanos", lembra-se bem do trabalho que deu apagar a conotação negativa da equipa "portuguesa" que disputa a primeira divisão de futebol de Andorra.
"Tinha má fama, pegava-se sempre com o árbitro", recorda. Agora, mais do que barafustar, o objectivo é garantir, pela primeira vez, a presença na Taça Uefa (através da conquista da Taça de Andorra). Apoio não falta.
Num principado onde é difícil andar na rua sem esbarrar num português, é uma equipa formada quase exclusivamente por craques nacionais (há apenas três "estrangeiros") que leva mais gente ao estádio, constata António José Fernandes - é o treinador Tozé. Funcionário numa empresa de construção civil e com uma paixão pelo futebol "desde garoto", recorda o sacrifício que os jogadores têm de fazer para, depois de uma jornada de trabalho, terem disposição para treinar. Sobretudo no Inverno, com temperaturas muito baixas: "Numa destas noites chegámos e o campo tinha 30 a 40 centímetros de gelo".
No supermercado de Maria Conceição não entra frio. Aos 46 anos, leva quase metade da vida em Andorra. Ninguém diria, ao entrar no Luso Shopping. Nas prateleiras há massas Milaneza, cerveja Sagres, óleo Fula e fumeiro de Montalegre. E bacalhau. Sempre o bacalhau. "Os portugueses buscam o que é nosso", garante a comerciante, que também tem clientes de outras nacionalidades. Os produtos são todos portugueses. Dá para matar as saudades. Voltar? "De momento é difícil. Então se não há emprego para os novos, quanto mais para nós". Crise por crise, em Andorra sempre se aguenta melhor.
O salário mínimo é de 900 euros e António Leão da Silva garante que pouca gente trabalhará por essa retribuição. O ordenado é sempre mais alto. Aliás, antes da crise ter chegado, um trabalhador da construção, com horas extraordinárias e serviço aos fins-de-semana, poderia chegar a arrecadar entre cinco e seis mil euros. Números que o estado actual da economia transformou em recordações.
"O nível de vida da comunidade portuguesa é bom", sublinha José Manuel Silva, conselheiro para as comunidades portuguesas em Andorra. Não admira, portanto, que quem tem um negócio e a vida estruturada em Andorra encare como difícil o regresso. As férias e fins-de-semana prolongados podem dar para matar as as saudades de Portugal.
E para resolver problemas burocráticos. Agostinho Parente que o diga. Quase perdia a fala quando, na embaixada, lhe disseram que para tirar o bilhete de identidade para o filho mais novo era preciso pagar quase 400 euros. "Fui a Portugal e paguei 25 euros no máximo", explicou. Logo houve quem lembrasse que também para mandar um fax autenticado foram pedidos 160 euros e que para obter um passaporte o custo ultrapassará os 100 euros. Somam-se as queixas de falta de apoio da embaixada portuguesa.
Palavra ao embaixador? Impossível. Informou o JN, através do recepcionista, que para falar tinha de pedir autorização prévia ao Governo.
Jornal de Notícias, aqui, acedido em 09 de Março de 2009