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Emigrar antes da reforma
2009-05-23
Desemprego: Décadas de trabalho não chegam para ficar em Portugal

Traído pela crise. Com 61 anos, Modesto Teixeira tinha um desejo bastante simples: ficar em Alpendorada, Marco de Canaveses, perto dos dois filhos e quatro netos. Mas os planos saíram-lhe furados e, após uma vida quase completa a trabalhar por conta própria, como patrão de uma empresa têxtil, foi obrigado a emigrar para Espanha. Para juntar uns dígitos na conta bancária antes da reforma.

O modo como um antigo proprietário de uma fábrica de confecções chega à necessidade de deixar o País tem a resposta de muitas vicissitudes que assolam Portugal: a crise. "Tinha quarenta e tal pessoas a trabalhar para mim mas, há uns anos, começaram a aparecer os chineses com os preços baixos. Em 2005, sem vendas, a situação tornou-se incomportável", conta.

Diz o povo que um mal nunca vem só e para Modesto Teixeira assim foi. O encerramento do seu negócio coincidiu com problemas de saúde que forçaram a uma paragem de dois anos. "Homem de trabalho", como se define, tinha de achar alternativa: "Nada apareceu até esta oportunidade."

Esta oportunidade mais não é do que um cargo como vigilante nocturno numas obras em Alcázar del Rey, localidade espanhola a pouco mais de 100 quilómetros de Madrid. Momentos antes de começar outras oito horas de viagem em busca de euros, Modesto confessa os motivos que levam alguém a estrear-se como emigrante aos 60 anos: "Não vou roubar, e o dinheiro também é preciso. Trabalhei muito tempo com o meu pai e sem descontar para a Segurança Social. Esperar pela reforma? Estava tramado para sobreviver."

Enquanto conta histórias dos tempos como dirigente desportivo no Alpendorada, Modesto faz jus ao nome e agradece o que tem. "Não podia fazer nada pesado, e ainda retiro um bom ordenado", solta quem começou a dar no duro aos nove anos, como ferreiro. Na cozinha, a sua esposa de sempre, aposentada, prepara várias refeições para levar. Fruta, carnes brancas, saladas. Nada falta na casa.

Antes da viagem, impõe-se um salto até Alcázar del Rey, onde se encontra paralelo para Modesto. Também José Monteiro, de 60 anos, está longe dos sete filhos e seis netos, mas com uma diferença. Modesto é ‘rookie' na vida fora do País, José já correu meio Mundo.

Dia 30 de Março de 1978. A data não sai da cabeça de José: a vida em Portugal também não estava nada fácil e a solução passou pelo Iraque. "Trabalhei como trolha no palácio de Saddam Hussein. Via-o todos os dias", relembra. Ora, e como era o ditador no quotidiano? "Não tenho razões de queixa. Ao contrário do que se pensa, no país não faltavam bebidas ou mulheres nas ruas", conta o homem que, ao longo de décadas, fez "um pouco de tudo" em passagens por Líbia, Alemanha, Irão ou Arábia Saudita.

O sexagenário foi para Alcázar como cozinheiro mas fartou-se "da arte", como lhe chama. Agora é a mulher, Laura Sousa, de 58 anos, quem chefia a cantina. Ela que passou quase toda a vida em Portugal. "Estar longe dos netos é o que custa mais. Vale a pena, pelo dinheiro", sorri Laura.

VIAGEM COM SUSTOS

Aproximam-se as 20h00 de domingo e Modesto Teixeira acende um cigarro, único vício que não conseguiu largar. "Eu conheço os locais onde há radares", salienta.

Bom ponto de partida para abordar as vidas lusas perdidas na estrada. "Não vamos sempre a 120 km/h, senão nunca mais chegávamos", confessa. "Quando voltamos a Portugal, só queremos chegar a casa rápido. Andamos à sorte de Deus, mas não podemos estar sempre a pensar nisso", acrescenta.

19h45, saída de Alpendorada. Duas horas na estrada e primeira pausa, no café A Fronteira, a 100 metros de Espanha. "Nunca mais é sábado", solta um trabalhador antes de voltar ao caminho. Muitas ultrapassagens, muito alcatrão, cigarro atrás de cigarro, a rádio espanhola a tocar e o tempo que não passa. Para alguns passageiros custa menos, embalados no sono.

Após mais duas paragens, às 02h45, o momento da viagem. Perto de Madrid, Modesto trava de maneira repentina e muda o sentido da carrinha de uma forma violenta. O porquê teve resposta logo a seguir: um cocker spaniel preto, perdido no meio da auto-estrada, por pouco não causa um violento acidente aos emigrantes portugueses. A destreza do homem de 61 anos evitou o pior. Pior que já aconteceu vezes de mais. Que o diga Miguel Silva, encarregado de obras, de 31 anos, natural das Termas de São Vicente. "Perdi um colega há dois anos, em Espanha. Um acidente estúpido", recorda de forma sisuda o pai de Ângelo, de oito anos, que logo explica a sua tese para grande parte dos acidentes: "Muita gente pensa que é o álcool mas não é. É mesmo o cansaço de viagens tão longas, que provoca menos capacidade."

São 04h00 da manhã quando a carrinha acompanhada pelo CM chega ao destino. O descanso é escasso: às 07h30 do dia seguinte, quase todos estão a trabalhar. A pausa para almoço é às 13h30 e depois é até à noite. Dia após dia, até que, "finalmente, é sábado".

VIDA PACATA NUMA PEQUENA ALDEIA

Alcázar del Rey é uma aldeia com 217 habitantes situada a mais de 100 km de Madrid, numa zona comparável ao Alentejo - uma imensidão de planícies - mas com uma grande diferença, já que está a mais de mil metros de altitude. "Somos bem tratados, nunca tivemos problemas", diz Mário Costa, de 25 anos, sobre a localidade que se torna abrasadora no Verão e gélida no Inverno.

MAIS DE 700 ESPERAM POR OPORTUNIDADE FORA DO PAÍS

"São as crises." Segundo Miguel Silva, encarregado de obras, é desta forma que os espanhóis definem o momento que se vive no país vizinho. O número de trabalhadores lusos registados na Segurança Social espanhola caiu 3,5 por cento entre Janeiro e Março de 2009, o que traduz o cenário negativo.

O patrão da Sósia, que emprega os trabalhadores acompanhados pelo CM, confirma que o momento não é o melhor. "Nós não passamos os mesmos problemas, porque estamos em obras do Estado, mas já alargámos projectos a outros países, como Argélia ou Angola", disse Joca Pereira ao CM. E conta que não falta quem lhe envie o currículo para deixar Portugal: "Temos mais de 700 pessoas em lista de espera, incluindo professores e engenheiros. De todo o País, desde Valença até ao Fundão."

DORMEM E COMEM JUNTOS COMO UMA 'SEGUNDA FAMÍLIA'

Dois andares, três quartos, uma sala e uma cozinha. A casa onde ficam nove dos trabalhadores que estão em Alcázar del Rey não é o Céu na Terra mas está longe dos "contentores" que foram descritos ao longo dos últimos anos como residências dos muitos emigrantes portugueses em Espanha.

"Temos televisão, máquina de lavar roupa, não falta nada", diz José Monteiro, de 60 anos, que partilha com a mulher Laura, de 58, um dos quartos da casa. Espaço igual está destinado a uma empregada de cozinha paraguaia e o último quarto fica para mais dois trabalhadores.

Na sala, aí sim, a confusão impera: quatro homens juntos num espaço exíguo pode dar azo a pouco descanso, embora as regras de silêncio estejam até escritas em post-it ao longo da casa. "Ponho a televisão cá fora e vemos futebol aqui no terraço", explica José.

As refeições são fornecidas pela empresa Sósia e ficam a cargo de Laura Sousa. "Antes eram perto de 80, agora são cerca de 40, mas foram sempre ordeiros e respeitosos. Cada um pega nos seus talheres e arruma o seu prato", conta, servindo mais uma refeição na cantina improvisada que a Sósia instalou num pavilhão de Alcázar.

Numa das mesas sentam-se juntos dois jovens, com o mesmo nome, Mário, mas com histórias bem distintas. "Vim para cá em Junho último. Não dava para ganhar dinheiro em Portugal", diz Mário Costa, de 25 anos e que reside com a tia em Sandim, Gaia: "Custa sempre deixar amigos e família ao domingo."

Também Mário Silva, de 22 anos, opta pelo pragmatismo. "Portugal está podre", lança o operário, que veio para Espanha com 18 anos: "Aqui temos a nossa segunda família."

Um agregado familiar onde todos têm apelidos. "Manuel Perigoso", "Cabeça de Queijo" ou "Mr. Bean" são algumas das personagens nesta história de emigração.

PERDER E GANHAR COM AS CRISES

Chama-se A Fronteira e fica em Vila Verde da Raia o café que recebe mais emigrantes a caminho ou de regresso de Espanha. Ou seja, o número de clientes aumentou com a crise nacional mas, com a economia do país vizinho a cair e o número de saídas lusas a acompanhar o tombo, o café acaba por se ressentir. "É verdade, mas ainda assim é uma grande clientela que temos", disse, apressada, uma das responsáveis pelo café, que relembra os melhores períodos: "Na Páscoa, é um mundo. Aproveitam todos para voltar a casa e repousam sempre aqui."

PAGAR 80 EUROS POR VIAGEM SEMANAL 

A Sósia dá a possibilidade aos trabalhadores de regressarem a Portugal, de borla, de três em três semanas. Mas há quem prefira viajar de 15 em 15 dias e, para isso, contribuir com algo como 45 euros. Para os mais saudosos, a viagem semanal fica por 80 euros.

As residências também são fornecidas pela empresa, a não ser que se quebre uma regra bem exposta na cantina improvisada num pavilhão em Alcázar: não se pode levar ninguém alheio à firma para as casas, caso contrário a renda passa a ser paga pelos operários.

APONTAMENTOS

REGRAS

Quem não quiser comparecer a uma das refeições providenciadas pela empresa tem de avisar com um dia de antecedência a mesma falha, caso contrário arrisca-se a uma multa de cinco euros. A Sósia dá aos trabalhadores pequeno-almoço, almoço e jantar.

CAFÉ DO JULIÁN

O único café de Alcázar del Rey foi baptizado pelos portugueses como ‘Tasca do Julián', que até abre propositadamente para dar cafés e cervejas aos emigrantes lusos, clientela que caiu do céu para os proprietários do estabelecimento, que tem nos matraquilhos a grande atracção.

‘JUEGOS'

Na viagem para Espanha, alguns dos trabalhadores tentaram a sorte nos ‘Juegos de Fortuna', umas máquinas de casino que se encontram em qualquer café do país vizinho. A sorte, contudo, não esteve com os emigrantes lusos, que tiveram de voltar à estrada.

NOTAS

COLETES: SEGURANÇA À RISCA

Todas as pessoas em zonas de obras têm de usar colete reflector, facto que levou a que responsáveis espanhóis exigissem à equipa do CM que vestisse também o referido equipamento.

SAUDADES: 1.º ANO CUSTA MAIS

Os trabalhadores que já estão há algum tempo em Espanha passam menos dificuldades que os outros. "O primeiro ano é o que custa mais", diz Mário Silva, de 22 anos e há quatro em Alcázar.

SÓSIA: PROJECTOS EM PORTUGAL

A Sósia, empresa de Alpendorada, Marco, ligada à construção de vias de comunicação, tem projectos para começar em Portugal, entre os quais a auto-estrada que ligará Sines a Beja.

OBRAS: HOMENS DO FUTEBOL

Entre as empresas com que foi trabalhando, a Sósia já partilhou obras com companhias de Soares Franco, líder do Sporting, e Florentino Pérez, ligado ao Real Madrid.

CASA: PRODUTOS BEM LUSOS

Em casa dos trabalhadores portugueses, a preferência vai sempre para produtos lusos que trazem na viagem. Salpicão e vinho não podem faltar, para ajudar a matar a saudade.

CARRINHAS: CADA VEZ MENOS

Modesto Teixeira, de 61 anos, testemunha a queda do número de carrinhas em direcção a Espanha: "Antes encontravam-se em todo o lado, agora são cada vez menos".

BARULHO: FIM-DE-SEMANA

Contam os vizinhos espanhóis que até sabe bem ter companhia portuguesa. Pelo menos quase sempre. "Ao fim-de-semana, exageram no barulho", confessa um habitante de Alcázar.

CONSTRUÇÃO: NOVOS DESTINOS

Joca Pereira, líder da Sósia, aponta os novos destinos de sucesso para as firmas de construção: Líbia, Dubai ou Índia, além de Argélia e Angola, onde a Sósia já está instalada.

 

Sérgio Pereira Cardoso

Correio da Manhã, aqui, acedido em 25 de Maio de 2009.

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