Quando saíste de Portugal o que é que levavas na mochila?
Um fato de treino, um par de ténis, meias, cachecóis, camisolas de lã, t-shirts, sweatshirts, um par de calças e todas as cuecas que tinha. Depois, a máquina fotográfica, computador, memória extra, iPod, caneta, lápis e bloco. E também um ‘necessaire' com champô, cremes e perfume.
Um ‘necessaire' é a antítese do viajante de mochila às costas...
Os mimos mantêm a identidade, mesmo que depois só se ande de fato de treino.
À medida que foste avançado, prescindiste dos mimos?
Sim, deixei de me pintar. Não ia para ser vista. Quanto mais discreta melhor.
A necessidade de discrição deriva do facto de seres mulher?
Um viajante quanto mais discreto for melhor: observa mais e interage quando quer. Não há necessidade de armar em boazona até porque, em alguns países, basta seres mulher e estares sozinha para virem logo 500 atrás.
Aconteceu?
Sim, tentaram a sua sorte mas nunca foram incorrectos ou abusadores.
Define 'nunca foram incorrectos'.
Tentaram a sorte mas nunca passaram dos limites, tirando um indiano em Jaipur que se atirou, literalmente, para cima de mim. Deve ter percebido alguma coisa errada.
Falas de sinais mal interpretados. Passaste por várias culturas, tiveste outra vez esse tipo de problema?
Sim. Por exemplo, o nosso gesto que indica medo para a maioria dos povos não significa nada. E na China tive dificuldades em comunicar. Eles não falam mais nada a não ser chinês e são pouco expressivos.
É difícil perceber se estão tristes ou indignados...
Quase impossível. Na China tentava antecipar os problemas no hotel com aqueles que percebiam inglês mas nem sempre era possível... Uma vez atirei a mochila pelo ar e comecei a chorar e lá vieram perguntar-me o que é que eu tinha.
O viajante tem de ter paciência.
Muita, que é a característica que me falta. Curiosamente tenho toda a paciência para estar horas perdidas nos autocarros.
O que fazias?
Aprendi a distrair-me. Eu pensava que ia escrever muito mas não aconteceu.
Porquê?
Já estava tanto tempo sozinha... Tenho coisas apontadas que são duas frases. Mas eu sei exactamente o que significam. Podem ser cinco parágrafos de uma reflexão.
Perdeste alguma coisa?
Não. Viajar é bom, mas estando sozinha há que redobrar a atenção. Andei sempre com a mochila do computador. Usava-a como se lá não estivesse nada de valor. A mochila estava negra de porcaria, tinha papéis em cima de tudo o que interessava.
Nunca sentiste que algo podia correr mesmo mal?
Só quando fui presa na Colômbia, mas como sabia que estava inocente... É um esquema comum entre os polícias para extorquirem dinheiro aos turistas, acusam-nos de um crime. Revistaram um puto com quem falava e ele tinha droga. Fui presa. Mas se pagasse não ia. Não paguei e estive na cadeia até às 05h da manhã. Depois paguei 60 euros.
Sessenta euros dá para quê na Colômbia?
Dá para 20 gramas de cocaína.
E quantos cafés?
Um café custa 10 cêntimos...
Nunca tiveste nenhum desastre?
Exteriormente não.
Exteriormente não?...
Há momento duros. Saudades. Cansaço. Quero o colo da minha mãe. Estou farta desta m*. É muito tempo sozinha.
Quando é que a viagem começou a ser psicologicamente mais dura?
Os três meses são a fase em que, de repetente, tens saudades e depois os seis meses. Do Iémen para a Omã estive parada por causa da burocracia e da guerra. Não podia passar. Tive de apanhar um voo. Pensei: ‘Estou farta desta porcaria toda'.
Apeteceu-te voltar para trás?
Eu tinha vergonha de fazer uma coisa dessas. Nunca mais olhava para a minha cara no espelho. Eram só momentos.
Como é que os ultrapassavas?
Ia comer bolos ou gelados. Comprava uma garrafa de vinho. Fazia o que toda a gente faz. Mas, neste momento, podes contactar com Portugal em todo o lado.
Tiveste sempre facilidade de ligação via internet?
Sim. Uma vez, em Marsabit [entre o Quénia e a Etiópia], estava a tentar mandar fotografias mas não conseguia. Desesperei ao ponto de berrar uns palavrões. Ouvi: ‘Desculpe, é portuguesa?' Era uma professora portuguesa de uns 50 anos, de mochila às costas, de férias, sozinha.
Como se lida com a visão da pobreza?
Eu já tinha viajado para África [Gâmbia] com os meus pais e tinha passado por sítios piores. É claro que vi pessoas com barrigas de fome. Vi pessoas que quase se esmagavam para ter o espaço delas.
Onde aconteceu isso?
Em África mas também na Ásia. É a lei da oferta e da procura. Passa uma carrinha por dia e há 50 pessoas à espera, que querem ir e vão. Eu passei à frente de velhinhos sem qualquer clemência. Não sou diferente dos outros. Dei joelhadas nas costas de vietnamitas para conseguir passaporte. Na fronteira só havia meia hora para pôr o carimbo e tinha de competir com centenas de pessoas, algumas com sacos com 40 passaportes...
O Mundo é difícil e burocrático?
Burocrático é muito. E corrupto.
Extorque-se mais ao turista?
Sim. Eu via se era razoável ou não. Se fosse 10 e pedissem 12... tudo bem.
Aí a nacionalidade conta?
Ser americano é proibido. Todos os americanos que encontrei tinham bandeirinhas do Canadá para fingirem que eram canadianos. Eu dizia que era portuguesa. Respondiam: ‘Portugal, União Europeia'. Eu dizia: ‘Sim, mas muito pobrezinhos! Espanha é cinco vezes maior e ganham cinco vezes mais...' Às vezes resultava.
Mudaste ao longo da viagem?
Perdi inseguranças.
Por exemplo?
Perdi medos. Do escuro. Se tinha de ir, dizia: ‘Seja o que Deus quiser'.
Dizias?
Muitas vezes.
Onde?
Quando houve o tremor de terra em Timor. Tive medo. As crianças choravam, as velhinhas também mas, quando vi o pai de família assustado, desatei a correr. Pensei só em mim. É horrível mas é assim. Também tive medo da condução dos autocarros na Índia e no Iémen.
Andaste basicamente de autocarros...
Sim, muito bons e muito maus.
Qual foi o máximo que pagaste?
Paris-Lisboa, 90 euros. A viagem mais cara, em função da distância, foi no TGV, 200 euros, entre Zurique e Paris.
Qual era o teu orçamento diário?
30 euros. Se for fazer a média hoje, talvez tenha chegado aos 40, mas comia, dormia, viajava e tratava de vistos.
Onde é que dormias?
Em casa de conhecidos ou de emigrantes, em backpackers, espeluncas várias. Às vezes não havia outro remédio. Em Nampula havia baratas e sangue nas paredes.
Como são os emigrantes?
São diferentes consoante o sítio de origem. Uns dão importância à missa, outros ao folclore. Todos têm um inexcedível amor por Portugal.
Durante a viagem tiveste ecos de Portugal?
Sim, na Argentina alguém me disse que a Manuela Ferreira Leite tinha sido eleita para o PSD.
Por causa das crónicas na Domingo mandaram-te e-mails...
Muitos. Um cantor popular; um lutador de boxe tailandês; pessoas de Sarzedas, da faculdade, pessoas que já não via há muito tempo e que se lembravam de mim.
E ao longo da viagem fizeste amigos?
Sim, muitos.
Qual foi a pergunta mais estranha que te fizeram?
Se eu era feliz - um monge no Laos.
O que respondeste?
Que era muito, que era uma privilegiada por ali estar a ouvi-lo.
Passaste o Natal e o aniversário fora.
O Natal pela primeira vez na vida. Mas fiz 40 anos com os pés dentro de água numa ilha deserta.
Chegaste há um mês a Lisboa. O que trazias na mochila?
Dois pares de botas que comprei na Mongólia. Discos, moedas de cada país, o fato de treino e os ténis - os que tinha levado - todos rotos. A mochila presa com alfinetes. E o ‘necessaire' todo sujo e partido.
'VASCO DA GAMA TROUXE OS BANDIDOS'
O que acontecia quando dizias que eras portuguesa?
Normalmente, faziam-me uma festa.
Sabiam onde fica Portugal?
Hoje em dia, por causa do futebol, sabem. Sabem que é na Europa. No Corno de África sabiam até quem era o Vasco da Gama.
O que diziam?
Que tinha sido o primeiro navegador a passar por ali. E a seguir a parte má - que tinha trazido os bandidos. Mas isto sabiam aqueles que falavam inglês, esses tinham estudos. Os outros, coitados, estavam preocupados com a sobrevivência.
Qual foi o sítio mais extravagante onde viste um testemunho de Portugal?
'ERA O EQUIPAMENTO DO CRISTIANO'
Qual foi o sítio mais extravagante onde viste um testemunho de Portugal?
Foi na travessia do Panamá para a Colômbia, numa ilha onde existe o povo mais pequeno do Mundo a seguir aos pigmeus. Vi uma roupinha de bebé pendurada numa corda. Era o equipamento da selecção portuguesa - do Cristiano.
PERFIL
Patrícia Brito nasceu em Setúbal há 40 anos. Com um ano de idade foi com a família para Moçambique, onde o pai cumpria serviço militar. Regressou a Portugal em 1974 e viveu até aos 18 anos em Sarzedas, Castelo Branco. Estudou Direito em Lisboa. Trabalhou como jornalista em ‘A Capital', ‘Independente', ‘20 Anos' e ‘Euronotícias'. Em 2000 fez uma viagem solitária de oito meses ao Sudeste Asiático.
Fernanda Cachão
Correio da Manhã, aqui, acedido em 12 de Maio de 2009.