Calço as botas de sete léguas e digo adeus às malas de cartão com o mundo nos pés. Acabou a viagem.
A última etapa é Paris. Espreito os contornos da Torre Eiffel à medida que me aproximo da casa de Maria Albuquerque, portuguesa e funcionária das Nações Unidas. Antes de embarcar no TGV que, em meia dúzia de horas, me trouxe de Zurique até à Gare de L'Est, despedi-me do meu irmão mais novo após um reencontro na cidade à beira-lago.
O David tem 22 anos e emigrou para Zermat, estância de ski nos Alpes Suíços, onde passou o Inverno a servir cocktails a turistas. Ganha 3000 euros por mês e vive com a namorada alemã num estúdio, rodeado por 3500 outros portugueses. Na sua maioria apanham neve e lavam pratos 'porque não falam uma palavra de alemão' explica--me, apontando para a bandeira portuguesa ostentada por uma retroescavadora que faz arranjos na estrada. 'Aqui somos todos tugas, excepto o chefe', confirma Luís Inácio, de 47 anos, português de Braga.
Em Paris encontro-me com Inês Espírito Santo, autora de uma tese de doutoramento, 'em progresso', sobre 'a mudança de estatuto dos emigrantes portugueses em França após a entrada na União Europeia.' Bebericando amarguinha, Inês traça-me o breve retrato da diáspora lusitana para França ao longo do século XX. Dos intelectuais e exilados políticos de 1900 à viragem de 1960, quando se fugia da ditadura e da fome, passando pelas vagas de emigração que se seguiram às duas guerras. Em 1975 havia 750 mil portugueses a viver aqui, em ‘bidonvilles'. Hoje são cerca de 600 mil.
Encontro-me com alguns no autocarro que me há-de levar a Portugal. São sobretudo casais de meia-idade que fizeram vida em França, regressaram com as 'retraites' às 'maisons lá na terra', e vêm esporadicamente visitar filhos e netos. Durante as 25 horas de viagem cantam modinhas de Graciano Saga, falam da 'madame do Sarkozy' e queixam-se do 'cheiro a catinga' dos emigrantes africanos e indianos que seguem no autocarro.
A memória é curta, penso, à medida que pela janela corre uma Espanha fantasmagórica. Não consigo dormir. Passaram 14 meses, cinco continentes, 40 países, milhares de quilómetros. Tenho pais, irmãos e amigos à minha espera. A paisagem que delimita a fronteira portuguesa parece-me a mais bela de todas quantas vi. Daqui a umas horas chegarei a Sete Rios. Que dizer? Nada me parece importante. Talvez plagie Fernando Pessoa: 'Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.'
Patrícia Brito
Correio da Manhã, aqui, acedido em 4 de Maio de 2009.