Quando deparamos com a expressão ‘o problema judeu', ela reenvia-nos imediatamente para um dos mais dolorosos momentos da história do judaísmo, da consciência judaica e, naturalmente, da nossa história: o de quando foi possível que documentos oficiais do Estado alemão incluíssem a palavra ‘extermínio' como pilar da ‘solução' para o ‘problema judeu'.
As observações de Hannah Arendt a partir do julgamento de Eichmann em Jerusalém, 1961, colocam acento na ‘banalidade do mal'. É um tema que tem ocupado grande parte das nossas reflexões sobre o nazismo e a consciência europeia - e que traça o essencial do nosso espanto diante do Holocausto. Como foi possível? Esta interrogação é gémea dessa pergunta que devemos colocar em relação ao Holocausto e, bem antes disso, em relação à Inquisição: o que pode gerar tanto ódio?
O livro de Esther Mucznik coloca questões muito importantes sobre a natureza do horror, a natureza do Holocausto, a natureza do anti-semitismo e sobre a natureza da política externa portuguesa de 1939 a 1945, chefiada por Salazar.
POLÍTICA DE SALAZAR
Não deixa de ser irónica, e amarga, uma das observações de Mucznik sobre o comportamento de Salazar diante do trágico destino da comunidade de judeus de origem portuguesa de Amesterdão, por exemplo. Expulsos, fugidos de Portugal no século XVI, os judeus portugueses da Holanda constituíram uma das comunidades mais criativas, sólidas e activas da diáspora - a eles devemos, depois, a criação da primeira sinagoga da América e o belíssimo templo-biblioteca da Esnoga de Amesterdão, EtzHaim.
Fugidos de Portugal, portanto, eles acabam por ser assassinados pelos nazis porque o regime de Salazar não lhes reconheceu a sua identidade, apesar dos apelidos portugueses. Dos cerca de 5000 judeus portugueses, sobreviveram apenas 500.
Ou seja: foram assassinados duas vezes: pela Inquisição no século XVI e no século XX pelos nazis, devido à atitude de Salazar, que não lhes reconheceu a identidade. Juntamente com o caso holandês, dois outros, marcantes e abomináveis: os de Salónica e de Istambul. Também aí, o governo português se quis mostrar indiferente em relação à sorte de uma comunidade em cujas raízes estavam os nomes de Gracia Nasi ou de Amato Lusitano como símbolos da comunidade do Levante.
Os judeus portugueses de Salónica e de Istambul, mas também os de Esmirna ou Corfu, não viram a sua identidade reconhecida. Cerca de 50 mil foram encaminhados para os campos de extermínio, apesar dos esforços de alguns dos nossos corpos consulares, onde, além de Aristides de Sousa Mendes, se contam os nomes de Sampaio Garrido e Liz-Teixeira Branquinho ou Agenore Magno e Alfredo Casanova.
Portugal foi um oásis para muitos dos que procuraram refúgio dentro das nossas fronteiras. Escritores como Stefan Zweig, Hannah Arendt, Heinrich Mann, Alfred Döblin, e outros, passaram por Lisboa, a Casablanca da Europa, em busca de salvação. Mas a nossa política externa, de rigorismo legalista, foi cúmplice dos nazis.
Editora: Esfera dos Livros
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