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"Muitos destes homens regressaram como os retornados: sem nada"
2011-02-21
O fim do boom migratório para Espanha deixou as aldeias do Marco de Canaveses ainda mais desertas. Os homens foram para França, Suíça, Angola, Brasil...

por Natália Faria

No café Nascer do Sol, na freguesia de Penha Longa, em Marco de Canaveses, o trabalho começava a apertar a meio da tarde de sexta-feira e acabava aos domingos, pela meia-noite. "Nesses três dias, trabalhávamos para a semana toda", recorda Arlindo Soares. Mas isso era no tempo em que as carrinhas chegavam de Espanha e descarregavam as dezenas, centenas de homens que regressavam às aldeias depois de mais uma semana de trabalho na construção civil do lado de lá da fronteira.

Agora, desde que a crise bateu forte em Espanha, "trabalha-se quatro semanas para pagar as despesas e, às vezes, não chega". As empresas desataram a despedir e os que recusaram ficar a trabalhar o mesmo por menos dinheiro, aguentam-se com o subsídio de desemprego ou procuraram outros destinos: França, Suíça, Angola, Luxemburgo, Alemanha e também, o Brasil, por causa do mundial de futebol. Com tantos quilómetros de permeio, regressar a casa aos fins-de-semana tornou-se impraticável. Agora, no café Nascer do Sol, como na quase totalidade do Noroeste português, "é um deserto todos os dias".

"O pessoal daqui não é de se pôr à espera que a chuva passe: vai para onde há trabalho", intromete-se Nélson Martinho, ajudando a perceber por que é que o Marco de Canaveses foi o concelho que mais trabalhadores exportou para Espanha: cerca de oito mil, no auge do fenómeno, entre 2007 e 2008. Nélson é dos poucos que continuam. É quarta-feira de manhã e encontramo-lo no café da terra a bebericar uma cerveja, mas isso é porque "há uma obra nova em Pamplona que ainda não arrancou porque falta a licença da câmara". "Vai havendo algum trabalho, mas eles [os espanhóis] baixaram muito os preços. Chegámos a ter lá trinta homens, agora são menos de quinze". Nélson conhece muitos homens atirados para o desemprego sem direito a nada. "Era o prato do dia. Alguns pensavam que tinham feito descontos e, quando foram meter os papéis para o fundo de desemprego, perceberam que não. Também havia patrões a declarar salários de 150 euros por trabalho em part time. Mas o pior era os que falsificavam exames médicos e folhas de Segurança Social para enganar os espanhóis e dizer que estava tudo regular".

As vítimas dos engodos foram as que mais dores de cabeça provocaram ao padre Pedro Oliveira, responsável pelas paróquias de Penha Longa, Sande e Paços de Gaiolo. "Muitos destes homens regressaram como os retornados: sem nada", descreve, no escritório da casa paroquial, em Penha Longa. Para aqui chegar desde o café, atravessa-se o silêncio absoluto da aldeia, subindo pela estrada principal, por onde quase não passam carros. Do cinzento opaco do céu desprende-se uma chuva miudinha que faz reluzir as cameleiras dos quintais. O vento empurra o fumo das chaminés, a denunciar a existência de gente dentro. "Há muita pobreza que se esconde dentro destas casas", aponta o pároco. "Sabemos porque as crianças começam a chegar à escola com fome".

Jeans, sapatilhas coloridas, computador ligado à Internet, Pedro Oliveira sabe fazer-se presente entre os seus quase cinco mil paroquianos. Em 2007, quando a emigração para Espanha mobilizou perto de 150 mil portugueses, este padre metia-se nos cafés ao domingo à noite, a recomendar cautela na estrada. "Ia ter com eles e dizias-lhes: "Vejam lá, mudem de condutor várias vezes, quero-os cá vivos para a semana"." Nunca teve de enterrar nenhum emigrante morto na estrada. Nalgumas freguesias e concelhos vizinhos, sim, houve vários mortos. Os homens abalavam em carrinhas de nove lugares, a horas em que o país descansava entre lençóis, para, depois de centenas de quilómetros em curvas e contracurvas, engatar directamente em jornadas de 10, 12 horas de trabalho. "Na altura, havia quem ganhasse dez euros por hora. Aos domingos à noite, as carrinhas faziam fila aqui", recorda a funcionária da bomba de gasolina de Penha Longa, Zita Maria, de 36 anos. Sabe do que fala porque o seu marido foi um dos que, agora, tiveram que abandonar Espanha. "Andou três anos, até que começou a ganhar menos e depois deixou de ter trabalho". Agora, espera que o chamem para a Suíça e Zita reza para que possa seguir com ele. "Ia fazer umas horas nas limpezas", pondera.

Educar os filhos

Ao menos, acabava-se-lhe o problema de ter de educar dois filhos praticamente sozinha. "Aqui funciona a figura do pai ausente, as crianças são todas órfãs de pai", brinca o padre. Mas vai-se perguntar ao director do agrupamento de escolas do concelho e percebe-se que o assunto é grave. "A ausência dos pais, ou o desemprego, imediatamente gera actos de indisciplina e conflito", constata Alberto Tavares. Por causa disso, o agrupamento inaugurou este ano lectivo um gabinete de mediação com apoio psicológico. Mais recentemente, reforçou o apoio alimentar a meio da manhã e a meio da tarde. "Começámos a ver miúdos que chegavam a comer duas e três vezes ao almoço para compensar o facto de não jantarem".

Em frente a um copo de vinho branco, num café da aldeia vizinha de Magrelos, Manuel Brás, quatro filhos, dos quais um ainda na escola, está no desemprego, mas garante que comida em casa foi coisa que ainda não faltou. "Estou no paro [desemprego] até ver", apresenta-se, num português contaminado pelo castelhano. Com 58 anos, trabalhou na Alemanha, Rússia, Iraque, Espanha. "Estive oito anos em San Sebastian, mas vinha a casa todos os oito dias". Nos tempos áureos, trabalhava por oito/nove euros por hora, a um ritmo de dez ou doze horas por dia. Hoje, paga-se sete euros aos melhores. Muitos não passam dos cinco".

Um dos filhos que com ele trabalhou em Espanha já seguiu para França, em Bordéus. O outro, que entretanto trouxe namorada espanhola para a terra, "está à espera". Como o pai. "Pois se não há trabalho em Espanha, que hei-de eu fazer?! Ainda me faltam muitos anos para a reforma". E até conseguir? "Vai-se ocupando o tempo". E depois, como se falasse para dentro: "Uma pessoa chateia-se, quem está habituado a trabalhar, chateia-se de não fazer nada, hombre...".

Chateia-se ele e chateia-se Américo Aguiar, de 45 anos, ao balcão de outro café, o Ventosa, outra vez em Penha Longa. "O patrão mandou-nos embora e agora andamos aqui, a olhar uns para os outros", lamenta-se. Sem direito a subsídio de desemprego, encostou-se aos pais para aguentar a falta de dinheiro. Já tratou de "meter os papéis para a Alemanha. França e Suíça". "O primeiro que sair, eu vou". Se puder, evita a França, por onde já andou um mês, em Bordéus. "Ganhava oito euros por hora, mas éramos doze a dormir numa casa velha, em camas separadas por cortinas. Ao almoço, comíamos sandes". O pior, porém, eram as pessoas. "Não sei se era racismo, mas parece que nem olhavam para nós". Se pudesse, voltava para Espanha. "A língua é fácil, a casa onde dormíamos era boa e a comida também". E, além disso, diz: "Era quase como se continuássemos em Portugal". Na pasmaceira do café Nascer do Sol, Arlindo Soares também sonha com o regresso desses dias do eldorado espanhol. "Ao fim-de-semana, isto ganhava vida. Agora se as pessoas se põem todas a correr o mundo, e alguns até a levar as mulheres com eles, aqui o comércio morre. Morremos todos".

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