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O regresso a Portugal [reportagem]
2011-01-31
No mundo serão cerca de 2,5 milhões. Em Portugal estão a aumentar. Quantos são, é o trabalho que o Observatório dos Lusodescendentes (criado em 10 de Junho de 2010) pretende realizar, para melhor aproveitar o seu talento e os seus recursos. «Portugal precisa de saber que para sair da crise conta com muito mais do que dez milhões», diz a lusodescendente Emmanuelle Afonso.

Sentada numa das filas da frente do auditório da Fundação Gulbenkian, durante o Fórum «Migrações Minorias e Diversidade Cultural», Emmanuelle Afonso confirmou as inquietações que a levaram a criar - com um grupo generoso de compatriotas - o Observatório dos Lusodescententes (OLD): em Portugal não é estrangeira, mas é imigrante, apesar de ser filha de pai e mãe portugueses e de residir no país da sua nacionalidade há dez anos. O OLD - simbolicamente lançado a 10 de Junho de 2010 - vai precisar de trabalhar muito para mudar esta visão oficial que «cola» à identidade de quase 2,5 milhões de portugueses o selo de imigrantes em que não se reconhecem.

Quantos são não se sabe, mas desconfia-se que são muitos. Tantos que seriam suficientes para fazer com Portugal o inverso do que os pais fizeram, há várias décadas, quando deixaram Portugal à procura de uma vida onde dificuldade rimasse com oportunidade. O Atlas das Migrações, apresentado na Gulbenkian, começa por falar em 2,5 milhões de portugueses emigrados, mas reconhece que contando com os descendentes desta leva de cidadãos do país que trabalham e vivem no estrangeiro, talvez o número chegue aos cinco milhões.

E esta é outra das inquietações de Emmanuelle Afonso. O que a estatística e as análises quantitativas desconhecem (ver entrevista ao secretário de Estado) significa sempre qualidades que se perdem ou desperdiçam. «O Observatório tem desde logo um objectivo inicial de conduzir ao conhecimento integral desta realidade. Sabemos que há muitos lusodescendentes a viver já em Portugal, sabemos que há muitos ainda a residir no estrangeiro, e queremos promover a realização deste levantamento estatístico e o estudo até científico sobre os lusodescendentes».

«Há muito mais do que dez milhões de portugueses»

Emmanuelle e o OLD não esperam nada de material do Estado, do governo, mas a presidente afirma que têm muito para oferecer. «Desde logo a certeza e a afirmação positiva de que, para sair da crise, Portugal conta com muito mais do que dez milhões de portugueses.» Imagine-se o que aconteceria ao turismo em Portugal se todos os portugueses e seus descendentes - que uns dizem ser cinco milhões, outros quarenta milhões - que moram no exterior resolvessem visitar no mesmo ano o seu país de origem... Imagine-se se uma parte do investimento que milhões de empreendedores portugueses (ou os seus descendentes) fazem em todo o mundo fosse canalizado para Portugal...

O futuro em Portugal seria mais risonho seguramente, tanto quanto França foi para os pais de Emmanuelle ou de Carlos Matos, hoje capelão no Hospital de São José, filho de emigrantes da Covilhã em França. «Uma característica muito positiva que os emigrantes e os seus filhos perpetuam é a noção de que não devemos esperar que nos dêem nada. Com trabalho e esforço chegamos lá», assegura, com a força moral de quem vendeu copos na discoteca Kapital para custear os estudos em Lisboa e não pesar no bolso dos pais que continuavam a batalhar em Pontoise o sustento da família.

A vocação para o sacerdócio nasceu-lhe da experiência como missionário na Ordem do Verbo Divino, primeiro no Prior Velho, depois com emigrantes ilegais do México e da Guatemala em Nova Jersey. Percebeu aí que o sonho de criança - ser taxista - era curto de mais para o que podia dar à comunidade, fosse numa paróquia do Alentejo - esteve em Almodôvar - fosse em Lisboa, no mundo difícil que é o centro hospitalar de São José.

Discriminação com os «avecs»

Da experiência vivida como adolescente em férias em Portugal ou mais tarde, como estudante universitário filho de emigrantes, Carlos Matos - que tem semelhanças fantásticas com a personagem título da série Seinfeld - lembra um contraste que não chega a desgostá-lo, mas que é recorrente nas histórias de vida dos lusodescendentes: «Em França, nunca me senti discriminado por ser português, numa terra e numa escola onde nem havia muitos. Mas em Portugal chamavam-me o avec e marcavam-me por ser filho de "emigras".»

Este é um dos aspectos em que o Observatório acredita poder ter missão fértil e trabalhosa. A de ajudar a que as expectativas de quem regressa não esbarrem numa estreiteza de vistas e de tratamento, numa catadupa de dificuldades e entraves que podem ser desmotivadoras. «Há muito para crescer em muitos domínios. Eu, por exemplo, tenho duas identidades: todos os documentos da minha vida em França possuem o meu verdadeiro nome - Emmanuelle Jacqueline - mas em Portugal, os meus pais não puderam registar-me com esse nome e todos os documentos registam uma Emanuela Jaquelina.  Este absurdo estende-se a questões tão fundamentais, para quem regressa, como diplomas escolares, reconhecimento de competências e certificações, recuperação de nacionalidade...», enumera, acreditando que também aqui o OLD tem um papel a desempenhar.

Em boa verdade, nenhuma destas histórias difíceis de assimilar por quem estava totalmente integrado, activo e vibrante nos países que os pais ou avós escolheram para viver impede os contornos de sucesso que rodeiam as vivências em Portugal dos lusodescendentes com quem a nm contactou.

De emigrante às cinco estrelas

As raízes de António Ferreira, director do Hotel Sofitel Lisboa (que acabou agora de receber a sua quinta estrela), mergulham no lugar de Porto Manso, Cinfães do Douro, de onde na década de cinquenta saiu o avô, para Paris. O genro seguiu-o em 1956 e a mulher e a filha em 1962. Um ano depois nascia António, em Paris, continuando um ramo com vocação para emigração que fora iniciada por um bisavô, mas na rota do Brasil, escorraçado pelo declínio do movimento fluvial dos rabelos do Douro com a chegada do comboio à região.

«Em casa falava-se português e lá fora o francês», recorda, com um sotaque fortemente marcado pela pronúncia duriense, a musicalidade da língua de Voltaire e uma mundividência acrescida pelos três anos na faculdade de Direito e mais de duas décadas de andarilho iniciadas em Inglaterra, nos finais dos anos setenta, onde estudou inglês e serviu às mesas em grandes unidades hoteleiras como o Savoy ou o Berkeley, em Hyde Park. «Dormia quatro horas por dia, e ainda hoje durmo», faz notar, tomando como natural a sua chegada a Lisboa para dirigir mais uma unidade do grupo Accor.

Andou pela República Dominicana, por Cuba, pelo Brasil, pela Rússia, percorreu os vários degraus na cadeia de um hotel até chegar a director, mas custou-lhe mais habituar-se ao show off dos portugueses que nunca saíram de cá do que à escassez ou estranheza linguística dessas outras paragens. «Não estou aqui por ser lusodescendente, mas acredito que se houvesse dois candidatos, isso pesaria na decisão. Os primeiros tempos foram complicados porque não estava habituado a sinais de consumo desenfreado, viver acima do que pareciam ser as posses, esta necessidade de ter e parecer mais do que de ser», reconhece. «Os lusodescendentes pensam como os seus pais: compro um carro se trabalhar e juntar dinheiro para o comprar, não porque tenho acesso ao crédito», sintetiza, reconhecendo para o OLD - de que é apoiante - um trabalho árduo. «É importante colocar os dois lados a redescobrirem-se e a multiplicarem conhecimento. Eu tenho motivos para estar mais próximo de Balzac do que de Camões, mas não quero cortar com as minhas origens», frisa.

Ser de dentro e de fora tem vantagens

A seu lado, um outro lusodescendente, Pascal Gonçalves, está desde 1997 em Portugal e lembra-se do tempo em que as suas qualificações académicas eram motivo de discriminação positiva. A sua história de vida leva-o primeiro para o Brasil - para instalar a Saint-Gobain no Rio de Janeiro, e já nessa altura «o facto de falar português foi uma vantagem competitiva». Mais tarde, num MBA do ISEG, em Lisboa, falar francês e inglês escorreitamente, ter conhecimentos de japonês e possuir um ritmo de estudo e de trabalho intenso foram trunfos que o fizeram distinguir-se.

O regresso a Portugal para ampliar o negócio - com uma imobiliária - que o pai foi plantando e fazendo crescer no seu país trouxe-o para o que considera ser «um país ainda periférico, mas muito mais próximo dos grandes centros de decisão do que estava há 15 anos». Pascal vê na necessidade de amplificar lá fora os efeitos desta mudança a mais-valia do Observatório dos Lusodescendentes. «Pode potenciar o contributo de uma rede de pessoas ligadas pelas origens. Há que identificar onde estamos, cá dentro e lá fora - e aproveitar este potencial. Portugal pode usar este capital como trampolim», empolga-se.

Chegar, ver e ficar

Foi num episódio representativo deste esforço que o jornalista Renato Mendes chegou a Lisboa depois de um ano a viver na Austrália, que lhe mostrou como era importante morar fora do Brasil. Um ramo da família emigrara da Madeira (alguns foram para a Venezuela, Estados Unidos, e Canadá) e o outro tinha as raízes mergulhadas na Itália. No bairro de Pompeia, em São Paulo, onde os Mendes ainda hoje moram, a população é bem um espelho do que é a história do país, feita com cinco milhões de emigrantes e a partir das primeiras décadas do século XIX.

«Em 2003, quando tomei conhecimento da existência de um programa da Secretaria de Estado das Comunidades que proporcionava a filhos de emigrantes estágios profissionais em empresas instaladas em Portugal, percebi que havia ali uma oportunidade», recorda, atalhando uma história fácil de envio de currículos para uma base de dados do MNE e das negociações de 15 dias com uma empresa alemã do ramo automóvel que o contratou em Lisboa. «Os nove meses iniciais prolongaram-se e hoje moro em Portugal, sou casado e tenho uma filha nascida na freguesia de Santa Maria dos Olivais», enternece-se, percebendo na sua história de vida o ondular atlântico da história de tantos milhões migrantes. «A informação é o elo entre o Observatório e os lusodescendentes espalhados pelo mundo. Um lusodescendente do Brasil não tem os mesmos interesses de um lusodescendente francês», faz notar, identificando na energia positiva e capacidade de liderança da presidente do Observatório o cimento exacto para unir tantas pessoas, tão diferentes.

Na plataforma virtual do OLD na internet, no Facebook, deslocalizado fisicamente mas omnipresente no mundo, o Observatório tem missões importantes de serviço para ambas as margens que toca. «O meu estágio foi uma imersão na cultura portuguesa e o programa de estágios tinha essa componente de colmatar a deficiente informação sobre o novo país que Portugal já era, mas ainda não era junto das suas comunidades emigradas», lembra Renato, sem esquecer o que ele pessoalmente pôde ver: um país de elite em termos de tecnologia e modernidade de conhecimento e de informação, mas que ainda não se posicionava de forma moderna frente aos problemas da sociedade e frente aos outros, como evidenciava «a escassa participação cívica dos cidadãos».

Isso mostrou-lhe que Portugal ainda precisa percorrer um «longo caminho» para aproximar o país europeu que se apropriou da modernidade do seu tempo e o outro que permanece e se mantém «por vezes com componentes de atraso».

«Vemo-nos como uma ONG»

«Por enquanto, vamos trabalhar os dados dos que já estão cá, saber exactamente onde estamos e quantos somos. Em simultâneo temos a plataforma no portal Sapo, o blogue, e com isso vamos aproximar essas realidades. Há milhares de colectividades e associações de portugueses no mundo, mas nós somos a primeira de lusodescendentes nascida em Portugal. Do Estado, do governo, não queremos dinheiro nem nada. Vemo-nos como uma ONG, um movimento de cidadania positiva. Só queremos reconhecimento e apoio», sintetiza Emmanuelle Afonso, que espera o «segundo» filho por estes dias. «Estou grávida pela primeira vez, mas costumo dizer que o meu primeiro filho foi a associação», ri, acrescentando que, tendo em conta que trinta por cento das mulheres (metade da direcção, numa paridade absoluta) do Observatório está grávida, até neste detalhe - o da natalidade - a associação pode ajudar Portugal.

 

Aude de Amorim

Uma franco-lusitana no Porto

A cônsul de Portugal no Porto é uma lusodescendente, o que coloca a França na posição única de pela primeira vez ter como representantes diplomáticos num país filhos de estrangeiros que em tempos acolheu como emigrantes (no caso de Aude, um avô que foi mineiro na Normandia, que teve o pai em Portugal e depois reuniu a família, de Tondela, em França, nos anos quarenta). Aude, cuja mãe é francesa, só aprendeu a falar português com 19 anos e conta que esse pormenor a ajudou na evolução de uma carreira construída entre filhos de gente de todo o mundo e não apenas de herdeiros aristocratas. A primeira colocação foi em Brasília, e ser lusofalante foi um ponto a seu favor na competição e um trunfo que a fez sentir-se extremamente bem acolhida numa pátria de falantes de português onde não era costume os diplomatas estrangeiros reconhecerem a língua pátria. «A escola do Ministério dos Negócios Estrangeiros era bem o exemplo de uma França que integra, reconhecido desde logo no facto de o presidente do país se chamar Sarkozi também», conta à nm, chegada ao Porto há poucos meses (tal como Pascal, o embaixador em Lisboa). Na região que nos dois séculos passados tantos portugueses deu ao mundo, Aude vai ter oportunidade de reencontrar as raízes da sua ascendência portuguesa. Por enquanto, está «ainda a descobrir a cidade».

 

O Censos falhado

O OLD foi lançado simbolicamente no dia 10 de Junho de 2010. Tem um grupo de vinte fundadores mas nasceu da reflexão de mais de cinquenta lusodescendentes, maioritariamente de França mas também dos Estados Unidos, do Brasil, da Alemanha, do Luxemburgo, da Venezuela, gentes estabelecida em Portugal em áreas como a gestão de empresas, artes plásticas, cinema, magia, ensino de música, advocacia, medicina ou ensino. Um dos mais notórios lusodescendentes da actualidade é, de resto, o jovem guru da auto-ajuda em português, Daniel Nogueira, que em Outubro passado encheu o Pavilhão Atlântico, em Lisboa, com a iniciativa «Trata a Vida Por Tu Gal». Daniel nasceu na África do Sul, regressou ao país de origem dos pais com 15 anos, e conta à nm que detestou o país que viu. «Foi só depois de sair pelo mundo, conhecer outras realidades, quando regressei, em 2004, em plena euforia do Euro», que se reencontrou com a magia das suas raízes. Hoje, Daniel não encontra nada na sua ascensão académica, social, ou profissional que reconheça como específico da sua lusodescendência, mas atribui ao Observatório a missão importante de «promover o conhecimento» que no país se tem dos seus cidadãos a morar no estrangeiro e também o que esses cidadãos possuem sobre o país que é hoje Portugal.

Uma oportunidade que o OLD queria agarrar, mas que de acordo com fonte do Instituto Nacional de Estatística estará descartada, era o aproveitamento do Censos, este ano. «Os censos de população e habitação vão ter início em Março, e neste momento não é possível alterar os seus questionários, que se encontram absolutamente fechados e em fase de impressão», esclarecem do Gabinete do Censos.

Os questionários em que o OLD gostaria de incluir alíneas que ajudassem a determinar quem não nasceu em Portugal mas reside no país e tem filiação ou ascendência portuguesa, são «objecto de acompanhamento pelo Conselho Superior de Estatística», onde estão representados vários sectores da sociedade, lembra o gabinete.

 

214 milhões de migrantes no mundo

Cerca de 1,5 por cento da população deslocada no planeta é portuguesa; as taxas de emigração e imigração em Portugal estão ao nível, por exemplo, do Reino Unido, país que chama aos seus emigrantes expatriados ou residentes no estrangeiro.

Nas conclusões do Colóquio Migrações, Minorias e Diversidade Cultural, António Vitorino, comissário do Fórum Gulbenkian Migrações, dizia que depois do lançamento do Atlas das Migrações em Portugal, o país se descobria «normal», ou seja, igual a tantos outros países que são, foram, e voltam a ser, ponto de partida e também de chegada.

O colóquio deu expressão numérica e estatística a muitas realidades bastante desconhecidas dos portugueses e deixou em aberto a grande dúvida sobre quantos serão, afinal, os cidadãos no mundo com ascendência portuguesa. Nascidos em Portugal e a viver «lá fora», são 2,5 milhões, isso sabe-se.

Rui Vilar, presidente da Fundação criada por um cidadão arménio que, naturalizado inglês, se instalou definitivamente em Portugal nos anos quarenta do século passado, lembrou que «as migrações internacionais já não são hoje uma realidade periférica que afecta apenas determinadas populações». A Assembleia Geral das Nações Unidas revelou que existem hoje 214 milhões de migrantes internacionais, dos quais 128 milhões vivem em países desenvolvidos. Destes, apenas 58 por cento são oriundos de países em desenvolvimento, ou seja, cerca de metade dos migrantes sai de países desenvolvidos. O relatório avança, segundo Rui Vilar, com dados «no mínimo inquietantes, quer para os países de origem quer para os países de destino», e Portugal, que desde há algumas décadas entrou na «normalidade» de ser ambos, não pode desperdiçar nem forças nem conhecimento.

Uma boa parte do estigma, fez notar o sociólogo Rui Pena Pires, coordenador do Atlas e do Observatório de Emigração, vem desse «mal-lidar» português com a ambivalência. «Gostamos, por um lado, de dizer que há portugueses em todos os cantos do mundo, mas já não gostamos tanto de admitir que saem portugueses do país para todos os lugares do mundo», detectou, divertido, avançando com dados desmistificadores: «Os níveis de emigração em Portugal estão a nível dos do Reino Unido, por exemplo, e dentro da média mundial de cinco por cento.»

À nm, Rui Pena Pires confirmou a dificuldade de encontrar uma metodologia para contabilizar os números da lusodescendência e considerou inúteis as tentativas para mudar a nomenclatura. «Deixar de chamar emigrantes para lhes chamar portugueses em mobilidade, no caso da emigração na Europa, ou deslocados no estrangeiro, teria o mesmo efeito que mudar o nome à Praça do Areeiro... já mudou mas ninguém usa o novo nome.»

 

A grande herança

Uma sociedade de nações unida pela criatividade de uma lusodescendente famosa em todo o mundo. O atelier de Joana Vasconcelos na doca de Alcântara reúne gente das proveniências mais variadas e é plataforma de ideias e realizações, independentes de nações e cores. Joana, ela mesmo, nasceu em Paris, filha de portugueses exilados políticos em França, e regressou ao Portugal democrático para uma experiência totalmente indissociável da artista que hoje é. «Faço parte da primeira geração de portugueses totalmente educada em democracia», referencia, conhecedora, nas suas andanças de artista internacional, da evolução das comunidades portuguesas no contexto pré e pós-25 de Abril. «São pessoas fantásticas. Os lusodescendentes podem ajudar a "exportar" Portugal. Aqui, ainda vivemos muito o peso dos pensamentos inculcados com a ditadura - como o de só termos qualidade se estivermos longe das massas, a viver num limbo de intelecto. Nos lusodescendentes não há disso. Podem trazer mundividência.»

No departamento de produção, Paula Leitão, 38 anos, é o espelho de Joana. Filha de portugueses da Figueira da Foz, emigrou com dois anos para França e fez todo o seu percurso de vida até aos 28 anos em Paris. Quando chegou a Portugal para concluir o curso de Produção Artística com um estágio no Instituto das Artes ficou com emprego mais do que garantido porque não havia no país ninguém com o seu currículo: «No início é difícil porque não se conhecem os códigos locais, mas uma das vantagens, com a formação que eu tinha era não ter de justificar como tinha chegado ali».

Espelho uma da outra, separadas por muitas décadas e uma mudança de regime da realidade migratória do início do século passado, ambas reconhecem, na diversidade das suas experiências, a matriz do sucesso dos portugueses no mundo: «Com a emigração aprende-se que as pessoas conseguem o que conseguem por si, não há back-up. Essa é a grande herança. Não estamos à espera que ninguém faça nada por nós!»

Contactos em rede

O mundo digital é a plataforma escolhida pelo Observatório para partilhar conteúdos e informações com a diáspora portuguesa e com os lusodescendentes que residem em Portugal. No Facebook, o endereço é http://www.facebook.com/#!/pages/Observatorio-dos-Luso-Descendentes/125432727509561?v=info e a página verte imensa informação relevante sobre esta temática. Uma das entradas mais recentes é uma petição contra a retirada do Português das provas de admissão em algumas das mais prestigiadas escolas de França, mas há também fóruns abertos a antigos e futuros participantes Erasmus em Portugal ou ofertas de emprego.

Desenvolvido em parceria com o Sapo, o blogue do Observatório pode ser frequentado em http://luso-descendentes.blogs.sapo.pt/, mais um sinal da modernidade e abrangência do movimento, que encontra nas novas tecnologias um aliado importante a derrubar barreiras.

Integração pelo sucesso

Filha de pais de Miranda do Douro, brilhante aluna em todas as fases do ensino, Emmanuelle Afonso cresceu a ouvir falar mirandês em casa e francês na rua. Especialista em marketing farmacêutico, foi durante o ano sabático que decidiu fazer em 2002 que se insinuou na sua mente produtiva a ideia de que criar um Observatório que ajudasse a dar visibilidade e conhecimento aos filhos de emigrantes portugueses que se instalavam em Portugal - como ela - era uma boa missão de vida.

Em Vouziers, onde viveu até aos 20 anos, esforçava-se por provar a ela mesma (e aos outros) que ser filha de portugueses não fazia dela uma condenada a ser dona de casa ou mulher das limpezas. Escolheu o percurso das Grands Écoles (bem mais exigentes do que as Universidades), e entre nove mil candidatas destacou-se a ponto de merecer uma das cinquenta vagas abertas no curso em Lille. «Acho que desde cedo percebi - mesmo sem racionalizar - que a integração e o reconhecimento viriam apenas pelo sucesso escolar», recorda, sorrindo com a lembrança de que o Afonso do seu sobrenome denunciava uma origem não francesa que provocava curiosidade. «Quando dizia que era um nome português, lá vinha a constação "ah, a minha mulher-a-dias é portuguesa"», explica.

Os pais não sentiam qualquer apetência pelo associativismo que juntava portugueses em grupos de jogar às cartas e dançar folclore, e Emmanuelle, que até só falava francês e escutava mirandês em casa, temia que ao participar nos bailes e actuações juvenis acabasse por sofrer «um nivelamento por baixo».

Foi em Brighton, em Inglaterra, durante uma bolsa Erasmus em 1992, quando até já tinha um namorado inglês, que lhe surgiu a oportunidade de uma nova bolsa - «na altura talvez o programa não estivesse bem organizado e estas coisas ainda aconteciam», sorri - e para uma instituição de ensino em Portugal. Pensava que era temporário, acabou por ficar. Fez mestrado no ISEG, já tinha estagiado na Câmara de Comércio Luso-Francesa, por essa altura já sabia falar bem português, embora com pormenores de insuficiência que só mais tarde percebeu.

Entrou no mundo do trabalho em Portugal, foi recrutada pela L"Oréal, prosseguiu carreira na Merck, nos Laboratórios Azevedos, passou para a fileira alimentar e viajou, viajou muito: «Intensamente. Durante um ano e meio chegava a apanhar três aviões por dia, mas foi esse período que me fez perceber que Portugal, Lisboa, era o país e a cidade onde queria viver.»

Parou com as correrias, dedicou-se a programas de voluntariado, começou a estudar mirandês, e foi quando entendeu o motivo pelo qual nunca conseguira pronunciar correctamente as palavras avô e avó. «Em mirandês, diz-se abolo das calças e abolo das saias». Em breve, poderá ensinar ao filho o mirandês, o português, o francês, o inglês e a linguagem que lhe é mais cara de todas: a da positividade, de encontrar soluções e não se deter nos problemas.

 

Pascal Teixeira da Silva

Um embaixador lusodescendente

Pascal Teixeira da Silva é o novo embaixador de França em Portugal, o primeiro lusodescendente a ocupar o cargo. Com a nacionalidade do país para onde o seu avô, pedreiro, emigrou nos anos trinta do século passado, precursor de um movimento que, até 1975, levara 758 925 compatriotas a instalarem-se na terra da «Liberdade, Igualdade e Fraternidade», o diplomata considera que os laços entres as duas comunidades nos dois países é um património subavaliado, «sobretudo nos domínios económicos e culturais».

_De que forma pode o embaixador de França em Portugal, um luso-descendente, apoiar o estudo e o conhecimento sobre a lusodescendência no país?

A imigração portuguesa em França (o país que mais a acolheu) e os seus lusodescendentes precisam de ser ainda mais conhecidos, uma vez que os perfis socioeconómicos e os itinerários pessoais se têm diversificado, incluindo os dos que regressaram a Portugal ou dos que vivem entre os dois países. Há já associações em França que se debruçam sobre esta matéria. Foi recentemente criado, em Lisboa, o Observatório dos Lusodescendentes que constitui especificamente um centro de estudos sobre esta questão. Como embaixador de França, e também como lusodescendente que sou, avalio atentamente os esforços empreendidos nesse sentido. Acho que os estreitos laços humanos existentes entre França e Portugal são uma riqueza subvalorizada, especialmente nos domínios económicos e culturais. Por isso, é meu desejo intensificar os contactos com as associações envolvidas em melhorar o conhecimento sobre a lusodescendência - razão pela qual participei no lançamento oficial do Observatório - e favorecer o empenho deste «viveiro» dentro da cooperação franco-portuguesa.

_Está em Portugal há alguns meses. Depois do conhecimento superficial das férias de Verão e das viagens de lazer, o que encontra no nosso país que ressoe na sua identidade lusa?

Decorridos apenas dois meses, é-me ainda difícil entender a realidade profunda de uma identidade nacional. Porém, já se destacaram alguns traços, alguns específicos, outros demonstrativos das semelhanças entre França e Portugal. Somos duas velhas nações cujos Estados têm desempenhado um papel importante na história e em relação à sociedade. A adaptação dos nossos sistemas estatais e sociais ao novo contexto da globalização é difícil em ambos os países e, sobretudo, porque queremos preservar o nosso modo de vida. Tenho-me apercebido de que os portugueses incarnam uma mistura de aspirações contraditórias: o apego à terra natal e a capacidade de procurar novas oportunidades no além-mar; a tentação pelo fatalismo e a forte resiliência face à adversidade; a famosa saudade que resume a ambivalência entre a preservação do ser e do estar e a necessidade de mudar e de partir. É um sentimento que eu conheço pessoalmente pois, para além de ser «luso», é muito humano.

_Considera Portugal um país bom e de oportunidades para os seus filhos?

Portugal, embora atravessando, como outros países europeus, um período difícil de adaptação, aposta no futuro e já iniciou reformas e inovações exemplares, por exemplo, nos campos das energias renováveis, da mobilidade eléctrica, da investigação médica, da exploração do potencial marítimo. Estou convencido de que este país conseguirá ultrapassar os actuais escolhos e que, tal como as antigas caravelas, virá a abordar novas costas. Além disso, a língua portuguesa encontra-se entre as grandes línguas de comunicação do mundo globalizado do século XXI. Portugal faz parte de uma rede de países cujo papel e perfil têm vindo a reforçar-se, o que alarga o seu campo de acção. Os jovens da geração dos meus filhos têm uma visão muito mais global e móvel do que a nossa. A Europa é já um espaço comum para eles, não só no que diz respeito aos estudos (graças ao Erasmus) mas também ao emprego. Eles têm de ter um sentido apurado para descobrir as oportunidades onde quer que se encontrem. Desejo que Portugal, cuja língua os meus dois filhos estão a aprender, se situe neste horizonte.

 

António Braga

«Regresso significa que aqui há oportunidades»

O programa Netinveste, que procura captar investimento e capacidade realizadora dos emigrantes portugueses e seus descendentes, está há quatro anos em preparação, mas o secretário de Estado das Comunidades, António Braga, garante à nm que no primeiro trimestre de 2011 entra em funcionamento. Em cinco anos, estima-se que origine captação de investimento directo e de fluxos de exportação de cinquenta milhões de euros, com potencial de criação de 1500 postos de trabalho.

_O que pode a Secretaria de Estado acrescentar aos objectivos do Observatório dos Lusodescendentes?

O Observatório dos Lusodescendentes tem muito pouco tempo de vida, mas anuncia um projecto dinâmico com muitas potencialidades. Ao converter-se um grupo informal de lusodescendentes numa associação, nasceu um compromisso que certamente resultará numa organização muito actuante, com iniciativas que produzirão impacte na comunidade. Aliás, a comunidade onde a associação se insere, neste caso os lusodescendentes, precisa de ter referências da actividade da associação para que possa apoiá-la. Os resultados são importantes e não são alheios aos bons projectos. Boas ideias, projectos bem construídos, em regra dão bons resultados. A actividade associativa desenvolve-se em plena liberdade, pelo que não cabe ao governo acrescentar objectivos ao Observatório dos Lusodescendentes.

_Que conhecimento desta realidade tem a Secretaria de Estado?

Em Janeiro de 2009 lançámos o Observatório da Emigração (OEm), numa parceria com o Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa. Nestes dois últimos anos, o Observatório da Emigração realizou um importante trabalho de sistematização e pesquisa de informação sobre a diáspora portuguesa, tendo disponibilizado parte destes dados na internet, para que sejam do conhecimento de todos e não apenas da comunidade científica. Este é constituído por uma equipa dinâmica de investigadores nas áreas de economia, antropologia e sociologia orientados pelo Dr. Rui Pena Pires. Hoje podemos dizer que há informação sólida sobre a presença de portugueses em praticamente todos os países do mundo. Entende-se por informação sólida toda a que é recolhida segundo as premissas do conhecimento científico e é validada. No entanto, não detemos informação significativa sobre lusodescendentes. Esta é uma categoria de muito difícil identificação nas estatísticas. A complementaridade entre os trabalhos de ambos os observatórios pode ser feita, eventualmente, por aí. Talvez o Observatório dos Lusodescendentes possa dar a conhecer uma componente primacialmente qualitativa!

_De momento, onde se situa a mais expressiva comunidade lusa no estrangeiro?

É um trabalho complexo averiguar com cem por cento de rigor onde residem mais emigrantes e lusodescendentes portugueses, com os dados estatísticos oficiais dos diferentes países. Os últimos números publicados pelas entidades oficiais francesas, por exemplo, deram-nos a saber que o número de residentes nascidos em Portugal era próximo dos 570 mil. Evidentemente, este número exclui aqueles que já terão nascido em França. Aliás, o número de residentes em França com nacionalidade portuguesa mas sem nacionalidade francesa pouco ultrapassava os 490 mil. Os dados dos registos consulares dão-nos uma ideia do número de lusodescendentes, por convenção, até à terceira geração, mas longe de nos permitir certificar um número com rigor científico. De todo o modo, considerando os lusodescendentes, residirão em França mais de um milhão de indivíduos de origem portuguesa.

Nos EUA coloca-se a questão de o número de lusodescendentes ser bastante elevado já que, nesta altura, nascidos em Portugal residirão aí cerca de duzentos mil pessoas. Os EUA, contudo, fazem por amostragem o levantamento do número de pessoas que afirmam ser de origem portuguesa. Esse número é bastante elevado: 1,472 milhões em 2007. Torna-se difícil fazer a comparação com as pessoas de origem portuguesa em França. Não há variáveis idênticas para estabelecer um termo correcto de comparação - por exemplo, um indivíduo nos inquéritos realizados nos EUA pode afirmar-se de origem portuguesa tendo antepassados muito remotos. É certo que os países onde residirão mais pessoas de origem portuguesa serão estes dois. Excluímos o Brasil porque, evidentemente, se considerássemos no perímetro dos lusodescendentes indivíduos com ascendência portuguesa mais remota (quarta, quinta geração) seria o país com mais pessoas de origem portuguesa.

_O que é feito do Netinvest?

A implementação do projecto Netinvest está em curso tendo-se até esta data concretizado um conjunto de acções de identificação e estruturação do networking do projecto bem como a planificação das acções a realizar junto das comunidades empresariais da diáspora. Por outro lado, foram concretizadas também as acções que permitiram mobilizar os meios financeiros necessários à sua execução. Nesta data está em curso a estruturação de toda a informação relevante relativa aos apoios que o Estado Português disponibiliza aos investidores empresariais, bem como o desenvolvimento do Balcão Único Netinvest, instrumento fundamental para a articulação das potenciais intenções de investimento oriundas da comunidade empresarial da diáspora com os instrumentos de apoio financeiro disponíveis. Tendo em consideração as restrições orçamentais conhecidas foi necessário proceder ao reajustamento da programação financeira do programa sendo expectável que o mesmo esteja totalmente operacional durante o primeiro trimestre de 2011.

_Há números que permitam quantificar a riqueza de investimento que está a ser perdida?

A avaliação ex ante que foi efectuada conduziu à definição das seguintes metas para um período de cinco anos após o seu arranque operacional: captação de investimento directo e de fluxos de exportações no montante de cinquenta milhões de euros e criação potencial de 1500 postos de trabalho.

_Falta alguma coisa para deixarmos de chamar emigrantes aos portugueses que saem para trabalhar e viver fora de Portugal? Porque é que um francês é um expatriado ou trabalhador no estrangeiro, um italiano a mesma coisa, um inglês idem aspas e só os portugueses são os «emigras»?

Há todo um preconceito inerente à emigração que deve ser ultrapassado. O fenómeno recente de imigração em Portugal, em particular a que chegou de alguns países da Europa, veio dar uma nova perspectiva do importante papel que um trabalhador expatriado do seu país tem no desenvolvimento económico e social da sociedade em que se insere. Acresce que hoje em dia há já um reconhecimento entre os jovens de que trabalhar num país estrangeiro pode ser uma boa oportunidade para progredir profissionalmente.

_A modernização consular pode ser complementada com alguma discriminação positiva para corrigir erros do passado cometidos com lusodescendentes?

Na área consular, o trabalho mais importante está realizado e consistiu em dotar estes serviços de funcionalidades e missões que anteriormente não lhes estavam cometidas. Desburocratizar, informatizar e desmaterializar era fundamental para o bom funcionamento de serviços que se situam a milhares de quilómetros de distância de Portugal. Ganhou-se muita qualidade no atendimento com diminuição drástica dos tempos de espera. Simplificaram-se procedimentos. Por outro lado, alterou-se a ambição das missões com reforço de responsabilidades na acção de diplomacia económica, cultural e social ao nível descentralizado dos Estados onde se localizam estas estruturas, integrando-as, em rede, na missão mais vasta no que ao relacionamento bilateral diz respeito.

_O que pode o trabalho do OLD acrescentar à sua Secretaria de Estado?

Poderá complementar, certamente, ajudando a tornar mais visível a informação qualitativa sobre os lusodescendentes. No entanto, a questão mais oportuna será reflectir sobre o que poderá o OLD acrescentar às comunidades portuguesas, aos lusodescendentes e a Portugal. Penso que ajudar a difundir e a consolidar a imagem de Portugal junto dos lusodescendentes como sendo um país moderno, de valores democráticos, de elevado património cultural e de ciência. Será uma missão de muita responsabilidade e trabalho.

_Como comenta o regresso e a instalação de tantos lusodescendentes em Portugal?

Creio que é mais do que uma espécie de regresso às origens. Portugal tem factores de atracção, indiscutivelmente. É um país capaz de proporcionar oportunidades. Encaro o fenómeno nessa dupla perspectiva. Por um lado, algum carácter mítico na procura do lugar onde os progenitores nasceram, mas ao mesmo tempo a lucidez de saber que também aqui há oportunidades de realização que muito provavelmente os seus familiares não tiveram e nunca sonharam ter. Mas não são apenas os lusodescendentes que regressam. Há outros povos que escolhem Portugal para viver e isso deve querer dizer alguma coisa.

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