Trem de imigrantes com europeus.
A
acelerada industrialização de São Paulo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) - um dos mais importantes capítulos da história do estado - já pode
agora ser mais bem contada. O que pouca gente sabe é que nesse processo se
tornou fundamental, por exemplo, a presença de grandes levas de imigrantes
qualificados vindos da Europa e do Japão, duas das regiões mais afetadas
durante o conflito. Aconteceu, então, não apenas um incremento das entradas de
trabalhadores na indústria da Grande São Paulo. Deu-se também na agricultura,
que se modernizava e caracterizava "os novos imigrantes" no sentido de uma mão
de obra mais especializada, não tanto em termos formais, mas de qualificação
mais técnica e prática.
Essa nova visão começa a ser delineada graças ao projeto Os novos
imigrantes - Fluxos migratórios e industrialização em São Paulo
(1947-1980), do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de
Campinas (Nepo/Unicamp), em que foram cadastrados ao longo de cinco anos, entre
2003 e 2008, mais de 60 mil documentos que perfazem um banco de dados com
aproximadamente 200 mil registros de pessoas que chegaram ao país e passaram a
fazer parte do mercado de trabalho. O farto acervo, que promete fazer a alegria
de pesquisadores tanto do Brasil quanto do exterior, foi montado de modo que as
informações possam ser exploradas de diversas formas: por nome, nacionalidade,
profissão, região de origem, empresa empregadora etc.
Não só isso. Podem-se cruzar dados mais detalhados como, por exemplo, todos os
mecânicos de automóveis de nacionalidade alemã, solteiros ou aqueles com grau
de escolaridade "universitário" - nesse caso, independentemente da
nacionalidade. É possível também elaborar gráficos, tabelas e outras formas de
consolidação de dados, o que pode ser uma importante ajuda em estudos de
demografia, só para citar uma possibilidade. O banco de dados já está
disponível no Nepo/Unicamp e no Memorial do Imigrante, em São Paulo.
A disponibilização fez com que a equipe do projeto
considerasse o trabalho encerrado enquanto contribuição coletiva para outros
pesquisadores. Mas o grupo permanece unido para o que chama de continuidade do
trato com as informações e o diálogo com outros interessados. À frente estão os
pesquisadores Maria do Carmo Carvalho Campello de Souza (USP e Idesp,
coordenadora entre 2003 e 2006), Teresa Sales de Mello Suarez (Nepo/Unicamp),
Célia Sakurai (Museu da Imigração Japonesa e Nepo/Unicamp), Odair Paiva (Unesp
e Memorial do Imigrante), José Renato de Campos Araújo (USP e Idesp) e Maria do
Rosário Rolfsen Salles (Unesp e Idesp, coordenadora de 2006 a 2008).
A socióloga Maria do Rosário Rolfsen Salles, idea lizadora do projeto ao lado
de Célia Sakurai, explica que na primeira etapa buscou-se a identificação,
organização, catalogação, informatização e arquivamento dos documentos
depositados no Memorial do Imigrante em São Paulo, relacionados à chegada de
aproximadamente 500 mil estrangeiros, muitos dos quais estiveram alojados na
então Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. A segunda etapa do projeto
consistiu no desenvolvimento de pesquisas temáticas que resultaram na produção
de trabalhos que discutiram aspectos pouco explorados pela historiografia sobre
a imigração no período.
"O grande mérito do nosso projeto, se assim podemos falar, é a possibilidade
de novos pesquisadores terem acesso a um tipo de documentação, agora
informatizada e que pode orientar um sem- -número de pesquisas sobre o período,
as nacionalidades, os organismos internacionais, os refugiados, os apátridas etc.",
avalia Maria do Rosário. De acordo com ela, entre as conclusões, destaca-se o
perfil diferenciado de pessoas provenientes dos países europeus
tradicionalmente fornecedores de imigrantes ao Brasil, além de outras
nacionalidades da Europa Central e do Leste, em relação ao perfil menos
qualificado das entradas que caracterizaram a grande imigração de finais do
século XIX e primeiras décadas do século XX. "As origens dos imigrantes são
interessantes também", ressalta. Por exemplo, com relação aos italianos, eram
procedentes das regiões meridionais da Itália, ao contrário do que se poderia
esperar, uma vez que se tratava de áreas menos desenvolvidas, cuja mão de obra
apresentava uma especialização mais técnica do que formal.
Para compreender melhor o processo, a professora recomenda voltar ao
século XIX. Podem-se identificar alguns períodos bastante significativos de
entradas de imigrantes no país a partir dos anos de 1870, momentos mais longos
e de maior intensidade, sobre o crescimento da população brasileira. Como a
expansão da cafeicultura no oeste paulista, o início da política de subsídios,
a vinda maciça de imigrantes - entre os quais predominavam os italianos. "Esse
perío do terminou em 1902, com a proibição da emigração subsidiada pela Itália,
pelo conhecido decreto Prinetti e o redirecionamento da imigração italiana para
os EUA", afirma. O segundo ciclo se caracterizou pelo Con vênio de Taubaté
(1906) e pela chegada maior de portugueses e espanhóis e o começo das entradas
dos japoneses (1908) e vai até a Primeira Guerra Mundial.
O período seguinte se caracteriza por uma menor vinda de imigrantes, devido a
uma série de fatores: restrições que se colocaram já na década de 1920, como o
fim da política de subsídios, a crise do café que atingiu seu auge em 1930,
caracterizando-se como a fase de entradas de portugueses e os classificados
como de "outras nacionalidades" (poloneses, russos, romenos, judeus etc.), além
de japoneses. O último ciclo migratório começou com a reabertura da política
imigratória pelo Brasil no final da Segunda Guerra Mundial, com a aber tura
política surgida do fim do Estado Novo, e representou um volume de entradas bem
inferior ao anterior, tendo imigrado sobretudo italianos, espanhóis e os
classificados de "outras nacionalidades", como vimos, da Europa Central e do
Leste etc., além dos japoneses a partir dos anos de 1950. Uma das
características desse contingente, diz Maria do Rosário, foi a presença de
refugiados entre 1947 e 1951 e de apátridas, pessoas que haviam perdido a nacionalidade
por diversas razões durante a guerra e que não podiam ou não queriam retornar
aos seus países de origem.
Durante o trabalho, os pesquisadores tiveram inúmeras surpresas. Como o grande
número de italianos e espanhóis, assim como de japoneses, que vieram para o
interior do estado a fim de trabalharem em empresas agrícolas e na cidade de
São Paulo. Notou-se também concentração desses imigrantes em bairros
industriais da Zona Leste à Zona Sul, além de outra regiões como Centro, Zona
Norte, Vila Leopoldina, Lapa e Zona Oeste de maneira geral. "Enfim, será
preciso pesquisar cada uma das nacionalidades para determinar a direção seguida
em São Paulo."
Para a doutora em ciências sociais pela Unicamp Célia Sakurai, o banco de
dados que resultou da pesquisa abriu a possibilidade de se refletir com maior
acuidade o peso dos imigrantes em São Paulo. Ela observa que não sabia da amplitude
da imigração do pós-guerra, sobretudo em relação ao perfil dos imigrantes,
bastante diferente dos que vieram antes da Segunda Guerra. "A variedade de
ocupações também chamou a atenção, assim como o perfil das empresas, desde as
multinacionais japonesas que vieram no final da década de 1950 até as pequenas,
algumas até familiares, que acolheram esses imigrantes." Para os japoneses, diz
ela, chamou a atenção para o número elevado de agricultores para projetos de
colonização.
A pesquisadora acredita que mudou na imigração depois da Segunda Guerra o
perfil dos imigrantes japoneses, que eram jovens, solteiros, com especialização
profissional que contrastava com os patrícios vindos no período anterior à
guerra. Esses novos imigrantes, prossegue ela, encaixavam-se no processo de
industrialização de São Paulo nos postos que exigiam qualificação. Vieram
técnicos de setores novos como eletrônica, metalurgia, desenho de projetos de
circuitos de ar-condicionado, por exemplo. "A contribuição que esse tipo de
informação dará para o estudo da imigração no Brasil será apresentar uma face
diferente e muito pouco conhecida dessas pessoas em nosso país."
O custo total do projeto foi de aproximadamente R$ 130 mil, aplicados na
criação do programa para o desenvolvimento do banco de dados, constituição de
equipes de digitadores, tratamento e velatura dos documentos, compra de
material permanente e bibliografia nacional e internacional sobre os processos
migratórios de pós-guerra, constituição de organismos internacionais como
International Refugees Organization (IRO), Comitê Internacional para as
Migrações Europeias (Cime) e Japan Migration and Colonization (Jamic). Segundo
Maria do Rosário, ajudou na consolidação do projeto a oportunidade de duas
equipes de pesquisadores ligadas ao tema: do Instituto de Pesquisas Econômicas,
Políticas e Sociais de São Paulo (Idesp) e do próprio Memorial do Imigrante,
que posteriormente incorporou também uma pesquisadora do Nepo/Unicamp.
O professor Odair da Cruz Paiva, doutor em história social pela USP, entrou no
projeto quando trabalhava no Memorial do Imigrante. Uma das suas funções,
então, era a organização do acervo documental. Naquele momento, tudo referente
à imigração pós-Segunda Guerra estava bastante disperso pelo acervo e sem
nenhuma organização, o que inviabilizava eventuais pesquisas sobre o assunto.
Ele recorda que a ideia do projeto Os novos imigrantes surgiu a partir
de conversas com as professoras Célia e Maria do Rosário. "Aos poucos, fomos
definindo o que se tornou seu maior objetivo: a organização e informatização
dos dados constantes naquela documentação." Quando da elaboração do projeto, a
equipe já estava formada e com alguma discussão acumulada do que seriam os seus
rumos.
As funções foram divididas em dois núcleos centrais. No primeiro estavam os trabalhos de organização do acervo e a inserção dos dados no banco informatizado. "Esta tarefa ficou a cargo de uma equipe de estagiários contratados pelo Memorial do Imigrante." A turma de pesquisadores - na qual Paiva se incluía - supervisionava e orientava o trabalho dos estagiários, ao mesmo tempo que fazia as correções no banco de dados e os levantamentos dos dados. Cada pesquisador elaborou e desenvolveu um projeto individual que era alimentado com os dados que iam sendo inseridos. "No meu caso, desenvolvi uma pesquisa sobre a inserção desses imigrantes no mercado industrial paulista nas décadas de 1940 a 1970." Célia ficou com a imigração japonesa e Maria do Rosário com os refugiados de guerra que adentraram de 1947 a 1951 em São Paulo.
Ficou sob a responsabilidade de Paiva também a concepção do banco de dados,
tarefa dividida com um técnico de informática, Paulo Eduardo de Vicente.
"Queríamos inicialmente a inserção das informações da documentação sobre a
imigração nesse período. A maior parte dela é composta por registros
individualizados com dados pessoais, profissionais e familiares dos imigrantes
provenientes da Europa, Japão e Oriente Médio." Esse propósito se manteve
durante todo o projeto, mesmo porque esse era o seu objetivo principal. "O que
ocorreu no transcurso dos quatro anos de duração do mesmo foi a necessidade de
adaptações e mudanças na sistemática do trabalho de inserção das informações e
mesmo na estrutura do banco de dados; isso se deveu em muito à multiplicidade
de suportes documentais."
Paiva acredita que todo o sistema montado tem feito com que os dados revelem
informações muito mais precisas sobre esse momento do processo migratório
brasileiro. "No meu caso, por exemplo, agora é possível um mapeamento completo
das empresas que receberam essa mão de obra, o perfil profissional desses
trabalhadores e sua experiência pretérita na Europa." Trata-se, acrescenta ele,
de um conjunto de informações muito rico e variado. "Creio que o projeto tem
potencial para auxiliar ainda muitos pesquisadores e produzir um conhecimento
fundamental sobre a imigração nesse período."
No momento, os coordenadores de Os novos imigrantes querem dar o
máximo de publicidade à iniciativa como forma de incentivar outros
pesquisadores a trabalharem com as informações agrupadas. A equipe, destaca
Paiva, tem plena consciência de que muitos outros "olhares" são fundamentais
para potencializar a infinidade de dados. De outro modo, pretende-se continuar
o trabalho de análise das informações e paulatinamente levá-las a público. Este
ano foi organizado o livro Migrações pós-Segunda Guerra Mundial, editado com auxilio da FAPESP. "Neste texto, algumas das questões que surgiram
no exercício da pesquisa foram anotadas, particularmente com as contribuições
de especialistas que trabalham com o tema das migrações no período."
De certa forma, finaliza o pesquisador, trata-se de uma documentação
praticamente inédita e que tem potencial para desvendar muitas dimensões da
imigração para São Paulo.
Fonte: Revista Pesquisa - http://www.revistapesquisa.fapesp.br/
Blog do IZB, aqui.