Por Natália Faria
A imagem de um Portugal rural e atrasado - onde fado, futebol e Fátima
educavam e instruíam - continua enraizada na cabeça de muitos emigrantes
espalhados pelo mundo. Ou continuava. Porque, sobretudo a partir do Campeonato
Europeu de Futebol de 2004, o futebol tem projectado na diáspora portuguesa a
imagem de um país moderno, organizado, cosmopolita, produtor de heróis à escala
global. Resultado: muitos emigrantes de segunda e terceira geração
reconciliaram-se com o país de origem e começaram a afirmar com orgulho a sua
condição de luso-descendentes.
Mas o papel do futebol na construção do sentimento de pertença entre os emigrantes portugueses vai muito para além do Euro 2004, segundo Clara Nina Tiesler, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa que coordenou o primeiro estudo comparativo da relação sócio-cultural que os emigrantes portugueses mantêm com o futebol. O projecto Diasbola, que é hoje apresentado em Lisboa, levou seis investigadores a analisarem seis "espaços lusófonos": Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França, Brasil e Moçambique.
Depois de centenas de entrevistas, os investigadores apuraram que, independentemente das especificidades de cada uma das comunidades de emigrantes, o futebol funciona em todas como o principal link ao país de origem. Mais do que a língua, o bacalhau, a cerveja, o rancho folclórico ou a política. "Dos elementos que servem para reconstruir a cultura portuguesa no estrangeiro, o futebol é o elemento cultural mais moderno, o que fala uma língua internacional", diz Nina Tiesler. "Enquanto um rancho folclórico transmite a imagem do campesino do século XIX, o futebol centra-se em figuras internacionais e modernas como Mourinho ou Cristiano Ronaldo: sobre estes pode-se falar com pessoas de qualquer nacionalidade."
Dito de outro modo, o futebol marca golos relativamente aos restantes transmissores de portugalidade, porque rasga a fotografia a preto e branco da aldeia transmontana e troca-a pela imagem a cores do Centro Cultural de Belém e, lá está, do Euro 2004. "O futebol tem esse papel de ajudar a desfazer a imagem que os emigrantes tradicionais tinham de um país subdesenvolvido e que tem perdurado porque, quando regressam nas férias de Agosto, estes emigrantes raramente vão a Lisboa ou ao Porto: ficam-se pelas aldeias de origem", explica ainda esta investigadora de origem alemã.
Orgulho português
Além de reconciliar os emigrantes com o país de origem, o futebol pode ser motor de emancipação social. Em França, por exemplo, onde existem 250 clubes de futebol portugueses, o jogo tem também ajudado os emigrantes a sair da posição subalterna em que ainda se encontram. "Lá, o futebol português tem um estatuto muito elevado e não foi por acaso que o Pauleta foi contratado para jogar no Paris Saint-Germain. De algum modo, isso ajudou a que os portugueses tenham deixado de querer manter-se invisíveis. Aliás, quando uma equipa lusa joga em França, é garantido que o estádio fica lotado e essa é das poucas ocasiões em que os emigrantes assumem livremente toda a paixão e toda a lealdade aos clubes portugueses. Curiosamente, quando os argelinos fazem isso relativamente aos seus clubes, são logo acusados de falta de lealdade à República."
Na Alemanha, o futebol também foi veículo transmissor do orgulho português, sobretudo a partir do momento em que a "geração de ouro", onde se destacavam Luís Figo, Sérgio Conceição, Rui Costa e João Pinto, ganhou à selecção alemã no Euro 2000 (por 3 a 0). "Não era moda as elites alemãs exteriorizarem a sua paixão pelo futebol, que tinha sido estilizado como um fenómeno das classes baixas. Em Portugal, ao contrário, a paixão pelo futebol é transversal a todas as classes sociais que a vivem sem vergonha. Aliás, quando Saramago regressa a Portugal depois de receber o Nobel, a primeira entrevista que dá é ao jornalA Bola e isso também ajudou a que Merkel [chanceler alemã], quando teve o Mundial [de 2006] nas mãos, pedisse ao Instituto Alemão uma lista de nomes de celebridades portuguesas que assumiam a sua paixão clubística para encorajar as elites alemãs a fazer o mesmo."
Ao contrário do futebol, transformado assim em veículo de assimilação, a língua portuguesa pode funcionar como factor de auto-isolamento das comunidades emigrantes nos países de acolhimento e tende a perder-se de pais para filhos."Mesmo que em casa falem português com os pais, as crianças não chegam a aprender a ler e a escrever correctamente, até porque, em muitos casos, a formação dos pais não é muita. Além disso, o poder político diz-se superpreocupado com a língua portuguesa, mas depois não dá dinheiro às escolinhas e, se hoje alguns emigrantes de segunda geração insistem em aprender a língua, não é porque queiram ser "portugueses verdadeiros", mas porque sabem que o facto de serem bilingues é uma mais-valia em termos de currículo."
O corretor e o trolha
O futebol assume-se, além disso, como mais democrático do que os demais elementos que reproduzem a portugalidade, porque consegue juntar na mesma tasca o português que trabalha na Bolsa de Londres com aquele que ganha a vida na construção civil. "Os jovens que trabalham na Bolsa ou andam na faculdade em Londres acham graça a irem juntos a uma tasca de Stockwell, onde os velhotes portugueses se juntam para jogar cartas, para assistirem a um Porto-Benfica", sublinha a socióloga, que defende que, não fosse o jogo das quatro linhas, aqueles dois tipos de emigrantes que caracterizam a comunidade de mais de 200 mil portugueses em Londres dificilmente se cruzariam.
Já em Moçambique a mistura entre futebol e passado colonial produz um resultado diferente. "Os moçambicanos partilham com a minoria portuguesa a preferência pelos clubes portugueses e exibem com muito orgulho umat-shirt do Benfica que lhes custou dois meses de salário. A minoria portuguesa nunca o faria, porque o futebol ganhou ali uma conotação de classe baixa e eles não querem pôr em risco o seu estatuto elevado", acrescenta Nina Tiesler.
Apurado o papel do futebol nas comunidades emigrantes portuguesas, não é difícil perceber por que é que o poder político usa o futebol como bandeira no processo de sedução de eleitores. "Só cinco por cento dos emigrantes votam nas eleições portuguesas, porque muitos consulados estão a fechar e também porque, para votar, é às vezes preciso recorrer ao correio ou andar 300 quilómetros de carro. Apesar disso, quando visitam as comunidades de emigrantes naquelas campanhas de incentivo ao voto, a promessa mais recorrente dos políticos é que vão tentar que mais jogos da Super Liga corram na RTP Internacional", lembra a investigadora, ressalvando que este jogo é recíproco, porque "a solicitação parte dos próprios emigrantes". Não por acaso, o desportivo A Bola, que até tem uma edição local em New Jersey, nos Estados Unidos, é o jornal português mais vendido fora do país.
Curiosamente, parece não existir reciprocidade neste jogo de espelhos entre a imagem que os emigrantes têm do país e a imagem que o país tem dos emigrantes. "O luso-descendente na Suíça, que fala perfeitamente o alemão e está integradíssimo na sociedade de acolhimento, mas que até se orgulha de aparecer na televisão a falar português quando a selecção lá vai, continua a ser mal visto pelos portugueses que residem no território nacional: porque fala mal o português, de forma arcaica."
Por outro lado, o país desdenha os seus emigrantes, mas espera que estes se mantenham leais à pátria e à república. "Aquela janelinha que se abre para dar voz ao emigrante, por ocasião de um jogo importante lá fora, não permite que ele critique o país", alerta Nina.País 0 - emigrantes 1.
Público, aqui.