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Mais de 100 licenciados deixam o país todos os meses
2009-10-17
Emigração Falta de saídas profissionais motiva a fuga de milhares de jovens qualificados. Lá fora sentem-se valorizados e não querem voltar tão cedo

Textos Isabel Leiria e Joana Pereira Bastos

Durante seis meses, Ana Cristina Pereira enviou mais de 100 currículos para todos os pontos do país. Só por cinco vezes teve resposta. Sempre a mesma: "Neste momento não precisamos dos seus serviços". A enfermeira que sonhava trabalhar com recém-nascidos acabou a servir cafés numa pastelaria. "Estava cansada de ficar em casa à espera de um D. Sebastião e de me sentir uma inútil", recorda.

Mas a experiência não durou muito. Um dia lembrou-se de um anúncio de emprego que o pai lhe tinha mostrado e que pedia profissionais de saúde para a Irlanda. Não hesitou mais. Custou-lhe partir, mas aos 23 anos, pouco tempo depois de concluir com média de 15 valores o curso na Escola Superior de Enfermagem do Porto, fez as malas com a certeza de que "emigrar é bem melhor do que ficar e ser explorado". Hoje, passados dois anos, trabalho no serviço de Neonatologia de uma maternidade de Dublin, ao lado de mais cinco colegas portuguesas. Ganha quase 2600 euros por mês e tem um contrato de trabalho sem termo, algo impensável em Portugal, garante. Pela primeira vez sente que tem valor.

Como Ana Cristina, mais de 100 licenciados abandonam Portugal todos os meses em busca de um emprego à altura das suas habilitações e de um salário condigno. O número peca por defeito, admite o próprio presidente do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), já que os dados só contabilizam quem estava registado nos centros de emprego e comunicou que ia partir. Milhares de outros tomam a mesma decisão sem avisar.

No início da década, eram já 146 mil os licenciados portugueses que tinham emigrado, segundo os últimos números do Banco Mundial. Portugal é, aliás, o terceiro país da OCDE mais afectado pela "fuga de cérebros", ou seja com maior percentagem da sua população qualificada a viver no estrangeiro (quase 15%), apenas atrás da Irlanda e da Nova Zelândia.

Apesar de o número de licenciados ser dos mais baixos da Europa, o país parece já ser demasiado pequeno para todos. Ao fim de anos de estudos, muitos repetem estágios não remunerados, acabam no desemprego ou vêem-se obrigados a atender telefones ou servir à mesa. É lá fora que acabam por encontrar o reconhecimento que sempre ambicionaram.

"Estamos por toda a parte"

"Tenho um primo licenciado em Gestão Hoteleira que também vive em Dublin. E conheço pelo menos mais dez enfermeiros que estão cá, um farmacêutico, uma licenciada em Letras, além de uns quantos engenheiros portugueses no Reino Unido, Espanha, Bélgica ou Noruega. Somos muitos e estamos por toda a parte", diz Ana Cristina.

Os números atestam-no. Só na sua área, a Adecco, uma das maiores multinacionais de recursos humanos em Portugal, recrutou mais de cem enfermiros para Espanha desde finais de 2007. O êxodo não surpreende quando se olha para o estudo realizado no mês passado pela Ordem dos Enfermeiros sobra a empregabilidade: metade dos que acabaram o curso em 2008 não estão a exercer. Engrossam os números do desemprego e parte trabalha "na restauração e em grandes superfícies comerciais".

Entre os dentistas, outra das profissões que mais tem emigrado, o cenário também não é animador. De acordo com o bastonário da Ordem, mas de 400 profissionais portugueses estão a trabalhar no Reino Unido, onde ganham valores "impensáveis" para o mercado nacional. O fluxo da emigração não tem parado nos últimos anos, com novas vagas a surgir para destinos como Suécia, França ou Dinamarca. Mas são de todas as áreas  os que trabalham além-fronteiras. De acordo com dados do IEFP, Gestão, Marketing, Engenharia Civil, Economia, Direito e Ensino são algumas das formações mais representadas na lista dos "emigrantes qualificados" que participaram este ano. No blogue Mind the Gap (Graduados Abandonam Portugal), criado por uma arquitecta a trabalhar em Nova Iorque, vão deixando muitas histórias.

A fuga não deverá parar. Por falta de perspectivas em Portugal, entre os quase 49 mil diplomados inscritos nos centros de emprego, 7500 já manifestaram a intenção de partir. Os que já foram não fazem planos de regressar tão cedo. Apesar das saudades "dos cafés decentes, dos tremoços, do sol, do cheiro a maresia e dos amigos e familiares" que não puderam levar na bagagem. "Seria uma estupidez tremenda. Era como passar de cavalo para burro", confessa Ana Cristina.

Três perguntas a Francisco Madelino

Presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional

P. Apesar de Portugal ser um dos países com mais défice de qualificações, o desemprego entre os licenciados tem aumento. Como explica esta evolução?

R. É certo que tem aumentado, mas menos do que o desemprego total. Os licenciados não são os que têm mais dificuldade em arranjar emprego e, em média, encontram-no ao fim de oito meses, menos seis do que o tempo de espera normal. Portugal ainda é um país onde mais compensa estudar. Agora é óbvio que a retracção da economia desde 2008 fez aumentar o desemprego.

P. Mas a tendência para o crescimento do desemprego entre os diplomados é anterior à crise...

R. Há um certo desfasamento entre a oferta educativa e as necessidades do mercado de trabalho, que tem vindo a ser corrigido. Mas é preciso entender que quanto mais se generalizar o ensino superior, mais difícil será a inserção profissional. Os jovens portugueses vão ter de se habituar à ideia de que ter um canudo não significa entrar logo no topo da escala social em termos de emprego. Isso acontecia nos anos 60/70, quando o número de licenciados era muito escasso.

P. De que forma o Estado pode intervir para combater o problema?

R. É fundamental que o Estado tenha uma política que promova e facilite a entrada de licenciados em segmentos onde ainda não há grande sensibilização para a importância da formação superior, como acontece nas pequenas e médias empresas. Se não for resolvido, o desemprego de jovens diplomados pode ser no futuro um foco de tensão social muito complicado em Portugal e em toda a Europa. Estamos a produzir jovens altamente qualificados que têm grandes expectativas e maiores exigências a nível da cidadania. Daí a tensão.

Números

44.700 é o número aproximado de licenciados que estavam a desempenhar no início do ano trabalhos de baixa qualificação ou não qualificados como operadores de call center ou empregados de comércio e restauração.

48-851 licenciados estavam inscritos nos centros de emprego em Setembro, o valor mais elevado dos últimos três anos.

9,6 por cento dos portugueses têm habilitação superior, um dos valores mais baixos da OCDE.

 

Cursos com maior número de desempregados                       %de desempregados

Sociologia - Fac. Economia Univ. Coimbra                         29

Sociologia e Planeamento - ISCTE                                   26

Psicopedagogia curativa - Univ. Lusófona do Porto             23

Sociologia - Universidade do Minho                                  22

Educação de Infância  - ESE Jean Piaget de Arcozelo         22

Gestão de Empresas - Instituto Superior da Maia               22

Sociologia - Fac. Letras Univ. do Porto                            21

Geografia e Planeamento - Universidade do Minho              21

Serviço Social - Instituto Superior Serviço Social Porto       20

Psicologia - Instituto Superior da Maia                             20                   

Nota explicativa: os dados foram retirados do relatório "A procura de emprego dos diplomados com habilitação superior", publicado em Fevereiro deste ano pelo Ministério do Ensino Superior. O ranking é feito com base no número de licenciados que concluíram os respectivos cursos entre 2005 e 2007 e que estavam inscritos nos centros de emprego em Dezembro do ano passado face ao número total de diplomados na mesma licenciatura e instituição de ensino, em idêntico período. Segundo o relatório, os licenciados nas áreas de Serviço Social, Protecção do Ambiente, Jornalismo e Ciências Sociais e do Comportamento são os que têm maior dificuldade em encontrar emprego, por oposição a cursos nas áreas de Matemática e Estatística, Saúde e Informática.                                                                                                                                                      

Uma decisão fácil

Ao contrário de muitos dos seus colegas da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, Miguel Veiga não estava disposto a "suplicar trabalho em clínicas verdadeiramente indecentes, em termos de condições de trabalho ou de algo que não devia estar em causa, como a "higiene". E a maior das ironias, aponta, é que, apesar de haver "dentistas sem trabalho, as pessoas em Portugal continuam a sofrer de dor de dentes ou acabam por ficar desdentadas". Perante tal cenário, a decisão de emigrar "até foi fácil". Bem como a escolha do destino. "Seja no privado seja ao abrigo de um contrato, com o Serviço Nacional de Saúde inglês, ainda há muita oferta de emprego. E a remuneração é de facto algo com que não sonhava em Portugal, tendo muito mais opções relativamente ao rumo que posso dar à minha carreira". Miguel não foi o único a percebê-lo. Em Birmingham, conheceu mais 15 dentistas portugueses. Em Edimburgo, onde trabalha agora, exerce com outros três, mais dois espanhóis, um iraniano, uma malaia e três escoceses. "São experiências de vida que não troco por nada", afirma.

 

Salário: 250 euros

Quando, em 2007, acabou o curso de arquitectura, Rita Burnay nem se p~de queixar da sorte. Durante um ano esteve a estagiar no ateliê Aires Mateus, um dos mais conceituados do país. Ganhava €250 a trabalhar mais de dez horas por dia, mas não se sentia explorada, até porque era das que recebia melhor. O problema foi quando, findo o estágio, se apercebeu de que o salário não iria além dos €500. "Aos baixos ordenados junta-se a precariedade, porque os arquitectos trabalham a recibos verdes, o que quer dizer que em qualquer momento podem ser dispensados sem direito a subsídio de desemprego", explica. A questão é que é difícil reclamar melhores condições quando, todos os anos, saem mais de mil licenciados "para um mercado que já não tem capacidade para os suportar". Por isso, Rita garante que só existem duas soluções: trabalhar por uma miséria ou sair do país. Metade dos colegas de turma optou pela segunda hipótese. Ela também. Juntou-se ao marido, igualmente arquitecto, que estava a trabalhar em Madrid. Hoje ganham quase €3500, em conjunto, e não pensam regressar.

 

"Quase passei fome"

A viver em Londres há dois anos, não há dia nenhum em que João Costa não pense em regressar. Mas acaba sempre por desistir da ideia porque sente que Portugal nada tem para lhe oferecer. Tendo em conta a sua experiência não é difícil perceber porquê. Licenciado em Biologia (via ensino) pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, João sempre quis ser professor, mas só conseguiu colocação um ano. Sem emprego, viu-se obrigado a traalhar "no buraco dos licenciados": um call-center da TV Cabo, onde recebia €500 e "passava oito horas por dia a ser insultado". Mesmo acumulando com o trabalho em dois centros de explicações, João confessa que teria passado fome se não fosse a ajuda da família. "Era uma frustração terrível. Em Portugal uma pessoa não se realiza, não conquista nada, não avança na vida", diz, sem esconder a mágoa. Ainda assim, emigrar foi a sempre a sua última opção. Até que em 2007 não hesitou mais. Soube por um colega que era muito fácil arranjar emprego como professor em Inglaterra e partiu. Hoje ganha €2500 como vice-director de uma escola em Londres. Sente-se finalmente realizado.

 

Três anos insatisfeito

Foi penoso e conturbado o percurso profissional de Orlando Correia depois de ter concluído o curso superior. Entre "milhares" de currículos enviados e dois períodos de desemprego que se prolongaram por seis meses, o licenciado em Gestão foi arranjando trabalhos, ora mal ora nada pagos, precários, que não o satisfaziam minimamente. Recuperou o ânimo depois de ser colocado numa escola como professor de Economia, mas as esperanças voltaram a ruir quando não conseguiu renovar o contrato. "Tomei a decisão de deixar Portugal no momento em que comecei a duvidar das minhas capacidades pessoais e profissionais", recorda. Rumou a Inglaterra, onde chegou a trabalhar num McDonald's. Dois meses depois, conseguiu finalmente um emprego relacionado com a sua área de formação, "apenas enviando currículos e sem precisar de padrinhos ou cunhas". De Londres acabou por partir para Gibraltar onde se encontra actualmente a fazer a contabilidade de uma empresa. "No estrangeiro senti-me valorizado em termos financeiros e pessoais".

Expresso, edição impressa.

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