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Escritos de Toronto – História da cantadeira mais antiga da comunidade portuguesa
2011-06-27

Sempre viveram no N.º 6 da Calçada da Pampulha até que ela emigrou para o Canadá.
Eis o que transpareceu de uma entrevista que lhe fiz a 9 de Junho de 2003: 
Seu pai era um homem de Carreira Policial Internacional. Deslocava-se muitas vezes ao estrangeiro para exercer as suas funções, porque dominava com grande facilidade a língua inglesa, alemã, francesa e outras mais. Adorava tocar guitarra portuguesa e possuía alguns instrumentos de corda na sua casa. Às vezes, quando ele se sentava para executar os mesmos, Maria Gomes contando apenas três anos de idade, segundo sua mãe, apoiava-se sobre os joelhos de seu pai para escutar mais de perto as músicas que ele executava. E assim, aos poucos, foi tomando gosto pelas mesmas, pois na sua maioria eram fados já conhecidos que a menina lentamente ia aprendendo. Mais tarde, começou por cantá-los às suas amigas na escola. Entre essas amigas, havia uma que, infelizmente M. Gomes já não se recordava do seu nome, era sobrinha do grande Martinho da Assunção. A jovem pediu a seu tio que ouvisse aquela pequena cantadeira. Ele cedeu ao pedido de sua sobrinha e ficou de facto muito surpreendido com a potente e bonita voz que ela tinha. Convidou-a para participar em festas de angariação de fundos e outras com as quais o exímio professor de viola se envolvia.
Maria Gomes recordava-se de quando era muito pequena ter actuado nas Verbenas de Carcavelinhos ao lado de Amália Rodrigues que naquela altura já era muito conhecida e um pouco mais velha. Actuou também nas verbenas de Almada Almadense e tantas outras mais.
Contou-me que ao cimo da Calçada do Combro, antes de chegar ao largo do rato, havia ali um portão, e ao trespassá-lo deparava-se com um carreiro, ao fundo do qual havia um lugar com mesas e cadeiras aonde se cantava o fado. Acrescentou que na rua da Maria Pia havia um pátio com um palco improvisado aonde ela cantou o fado muitas vezes. Lembrava-se também que na Rua do Conde havia uma associação aonde cantou várias vezes ao lado do saudoso Fernando Farinha e Maria Rodrigues e de naquele tempo ter ido cantar a uma verbena para os lados da rua Morais Soares.
Sua mãe não lhe permitia que ela usasse o seu próprio nome, quando cantava, com medo de que se viesse a difamar porque as cantadeiras daquele tempo todas tinham má fama, e ela poderia ter dificuldade mais tarde em encontrar um marido. 
Um dia, sua mãe para desencorajá-la, vendeu a vitrola que tinha e todos os instrumentos musicais que haviam em casa, e obrigou-a a casar-se, apenas com quinze anos de idade, com seu primo António Rodrigues que era então Camarada da Fragata L486 pertencente a José Oleiro. Com ele veio a ter uma filha à qual deu o nome de Maria Suzete Rodrigues que desafortunadamente veio a perecer muito cedo vítima de Hepatite B, em Lisboa.
Maria Gomes perdeu o seu marido vítima de um acidente a bordo do veleiro onde trabalhava e em 1968 veio para o Canada para logo se casar com o conhecidíssimo Xico Alentejano. Este, um dia ao entrar em casa, surpreendentemente, deparou-se com sua esposa cantando o fado enquanto exercia as suas lides caseiras. Notou que ela tinha boa voz. Ela própria admitiu-lhe que adorava cantar mas que nunca lhe havia confessado essa particularidade, porque sua mãe sempre lhe havia dito que ser-se cantadeira não era boa coisa e os homens não queriam casar-se com uma mulher que o fosse! O Xico Alentejano, que também adorava as cantigas, tentou arranjar um grupo de pessoas para irem ao Restaurante Octávio, que ainda nos dias de hoje existe, situado na Rua Augusta, em Toronto, para ouvirem cantar sua esposa que se iria fazer acompanhar pelo saudoso Mariano do Rego, à guitarra, e à viola, por quem Maria Gomes infelizmente já não se recordava.
Naquele tempo, José Gomes, Fadista Castiço, também a viver em Toronto, formou o grupo a que deu o nome de "Alegres do Fado" e convidou o Xico Alentejano para fazer parte do mesmo como membro organizador. O Xico veio a colaborar com o referido grupo até perecer. Disse-me sua esposa que muitas vezes lhe dava dinheiro para comprar a gasolina que gastavam com seu carro para ir levar os ingressos às pessoas que iam aos espectáculo e ir buscar as ofertas que as casas do comércio faziam para o grupo leiloar nas suas festas que se destinavam a angariação de fundos. A tia Maria Gomes, como nós a chamava-mos, admitiu-me nunca ter recebido um cêntimo pelas suas actuações. 
Do referido grupo, "Alegres do Fado" também fazia parte um fadista, então bem conhecido em Toronto, que dava pelo nome de Fernando Silva. "Quem não se recordará deste homem que tanto deu do seu próprio tempo em prol da comunidade portuguesa de Toronto, acabando por viver o resto dos seus dias numa casa da terceira idade, talvez sem um amigo à sua volta?! O certo é que - continuou Maria - o grupo, fez muitas digressões pelas várias cidades do Ontário, fazendo espectáculos para angariações de fundos nos quais sempre participavam, a convite, muitos outros artistas que viviam em Toronto. Confidenciou-me a minha saudosa amiga que nunca recebera um cêntimo pelas suas actuações, e que num certo dia, actuando em Chicago, lhe deram um cheque de cento e sessenta dólares o qual foi entregue à "Luso Brasilian Society of Dificients of Toronto. Sempre cantei por amor à camisola e para beneficiar os carenciados. Fi-lo acompanhada por todos os guitarristas que viviam em Toronto, alguns dos quais infelizmente já não estão entre nós". 
Maria Gomes manifestou-me, com grande pesar, de nunca lhe ter sido possível gravar pois todo o dinheiro que amealhava enviava-o para sua filha para que esta pudesse manter a sua família que vivia em Portugal por vezes em condições muito precárias devido à condição de saúde dela própria e de um filho, que também era canceroso. Naquela altura, a Tia Maria Gomes já estava limitada a deslocar-se, fazia-o em cadeira de rodas. Mesmo assim, até aos seus últimos dias, antes do cancro voltar a dominá-la, muitas vezes levada em braços por amigos para salas em pisos superiores, tentava estar presente nas festas de beneficência, fosse solicitada ou não, para dar o seu contributo porque afinal era isso que sempre tinha feito desde que começara a cantar publicamente aos oito anos de idade. Raramente perdia sessões de fado vadio que ela tanto adorava.
Soube que José Pereira, conhecido poeta da nossa Comunidade, propôs à "Acapo" o nome da Maria Gomes, para que esta fosse reconhecida por aquela instituição na festa de entrega dos diferentes awardsaquando das celebrações do dia de Portugal de 2004. Mas a sua nominação não foi aceite. Muito possivelmente por lhe faltarem os padrinhos porque o merecimento estava lá. 
Vivia só e com muitas dificuldades físicas. Apenas aguardava um telefonema de um amigo, ou uma palavra de consolo, porque muitos dos seus dias eram vividos com muito sofrimento. 
Era uma assídua ouvinte minha quando eu fazia rádio durante a noite na AM 530. Telefonava-me constantemente para não se sentir só. Eram longas, emotivas e tristes as suas interessantes histórias das quais hoje tenho saudades.
Sem que ninguém soubesse e sem nenhum alarde, depois de uma grande luta contra várias enfermidades e persistentes tratamentos, foi admitida por um dos hospitais de Toronto, que se dedicam a doenças incuráveis, vindo a sucumbir, depois de alguns dias em coma, talvez só, às seis horas da madrugada do dia 13 de Junho de 2011. 
Oxalá a nossa comunidade não esqueça esta honesta e leal amiga, que apesar de não ter sido uma fadista sofisticada, ainda cantava com garra o que lhe ia na alma tal como sempre o fez desde pequena. 
Paz à sua alma.

 

 Avelino Teixeira

 

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