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Padre Victor Melícias: "Temos de começar a organizar a nossa vida com mais trabalho e sentido de poupança"
2011-06-17
VÍTOR JOSÉ MELÍCIAS LOPES, nasceu no Ramalhal (Torres Vedras) a 25 de Julho de 1938. Foi ordenado padre 24 anos mais tarde. É licenciado em Direito Canónico em Roma e em Direito Civil pela Universidade Clássica de Lisboa. Foi sempre um homem ligado às causas da solidariedade. Franciscano de formação é um humanista do terreno que gosta de intervir e de participar activamente na sociedade do seu tempo. Mas decerto que do mais importante que fez, foi ter sido conjuntamente com o seu amigo Valentim Morais o fundador de O Emigrante, em 1970. Em entrevista a este semanário que co-fundou há 41 anos, compara esses tempos com os que vivemos hoje...

Recorde-me as circunstâncias do nascimento do EMIGRANTE em 1970...
O jornal nasceu de facto no início da década de 70 e no seguimento da grande hemorragia migratória iniciada na década anterior. Vivia-se então em Portugal um drama populacional enorme sobretudo para a classe trabalhadora. Por um lado era a ida dos jovens para a guerra colonial, por outro a autêntica hemorragia da emigração económica. Os cidadãos que aqui não encontravam trabalho nem condições mínimas para assegurar a susbsistência e a dignidade das suas famílias, eram obrigados a emigrar, e faziam-no para os locais tradicionais da emigração transoceânica, mas também iniciando novos destinos na Europa que por via do desenvolvimento económico que se fazia sentir precisava de muitos trabalhadores. Por isso eram imensos aqueles que deixavam as suas casas, muitas vezes até em situação de ilegalidade formal para irem ao encontro de melhores salários e um mínimo de condições para as suas vidas.
Nessa época eu era um jovem clérigo regressado de Roma que conhecia o senhor Valentim Morais, também ele um jovem empresário na altura ligado à área editorial e juntos concebemos este projecto de lançamento de um jornal que de algum modo pudesse intervir neste momento nacional que se vivia, procurando estabelecer ligação entre os que eram obrigados a sair do país e os que cá ficavam. Tratava-se sobretudo de uma ligação de esperança, principalmente para aqueles que iam para longe. 

Emigrar naquela época era sempre ir para longe...
Naquele tempo emigrar era ir para longe e continuar longe, sobretudo para os que partiam em situação de ilegalidade, ou como na época se dizia com o "passaporte de coelho" como se designava a emigração a "salto". Partiam para um mundo que lhes era relativamente hostil, não pelas populações que os acolhiam, mas sobretudo pelas autoridades portuguesas que continuavam a tentar controlar essa saída em massa que então se verificava. 
Nessa época a polícia política e o regime de censura levava a que as pessoas vivessem com um certo medo, quer daquilo que se dizia quer daquilo que podiam dizer. Era um clima de extrema cautela que as pessoas tinham de ter no seu dia a dia. 

E em relação ao jornal qual era a posição das autoridades da época?
Um dos fenómenos que mais caracterizava a emigração da época, era a multidão de pessoas que saíam do país por motivações económicas, mas também num contexto politico que condicionava em muito a liberdade individual. Ora o jornal «O EMIGRANTE» pretendia chegar até onde os emigrantes estavam e tinha como grande objectivo conseguir que os emigrantes pudessem exercer o seu direito fundamental de emigrar, em condições pessoais e sociais aceitáveis, coisa que na época em Portugal nem se podia pronunciar, porque era considerado subversivo. Daí que os próprios responsáveis políticos da época, incluindo o Prof. Marcelo Caetano, que curiosamente tinha sido meu professor e com quem eu tinha alguma relação, não direi de amizade mas pelo menos de respeito mútuo, chegaria a escrever à censura alertando para os "perigos" do jornal "O EMIGRANTE", como um perigoso jornal, quase se insinuando que era de ideologia comunista, o que para ele e na época era o perigo máximo.
O jornal aparecia assim num contexto difícil e por isso desde o início que começámos a envolver também a sociedade portuguesa neste projecto, tendo ido designadamente, apresentar cumprimentos ao Presidente da República e desde logo mostrar a nossa intenção de promover a ajuda aos emigrantes. Foram muitas as personalidades que desde o início nos deram apoio e estímulo como por exemplo o Prof. Adriano Moreira porque também ele reconhecia que a emigração era um direito fundamental dos cidadãos, de procurar melhores condições de vida para si e para as suas famílias. Mas todo o contexto era extremamente delicado pelo que o jornal «O EMIGRANTE» começou a enfrentar a oposição de alguma parte das autoridades que controlavam a emigração e das próprias autoridades policiais.

Mas foi também certamente um período estimulante para desenvolvimento do próprio projecto...
Foi sem dúvida um período bastante promissor e cheio de expectativas já que os emigrantes iam aos poucos tomando conhecimento do jornal e usavam-no, quer para saber algumas coisa das suas terras, quer também para saber quais os direitos que tinham. Inicialmente os assuntos relacionados com a segurança social e o direito ao trabalho, eram os mais procurados,  mais tarde já para o exercício de alguns direitos políticos o jornal também começou a ser procurado.
Naquele tempo não era tão fácil como hoje os emigrantes voltarem à sua terra, por isso o jornal que lhes levava essas notícias e um pouco do que tinham deixado era extremamente importante e sobretudo bastante apreciado. Foi com este ideal de AGIR SERVINDO, em que se promoviam acções concretas entre os emigrantes e seus familiares, entre o seu país de origem e o mundo novo em que se encontravam, que nós aos poucos fomos singrando. 

Os tempos hoje são muito diferentes?
Julgo que em relação aos dias de hoje há diferenças fundamentais, o facto de estarmos integrados na Europa e por isso já não sermos cidadãos estranhos em países estranhos. Os direitos cívicos e políticos são os mesmos, há uma grande identidade cultural o que torna tudo mais fácil e por isso o emigrante, quer por razões económicas que volta hoje a ser um importante factor na decisão de emigrar, quer por outra qualquer razão, desloca-se e integra-se em condições totalmente diferentes, o que nos convida a analisar esta nova realidade da emigração. Hoje em dia para os portugueses não há problemas de maior na integração, mas este é, sem dúvida, um dos principais problemas da emigração num mundo em acelerada globalização onde tudo é feito em nome de interesses económicos, seja de países, seja de grupos. Basta reparar no que se passa na faixa sul do Mediterrâneo em que quase não se distinguem os emigrantes dos refugiados.

Será porque a Europa hoje está menos solidária?
Há obviamente pontos de vista diversos sobre a sociedade,  caracterizados por posições de direita, normalmente xenófobas e não favoráveis ao acolhimento dos estrangeiros e a esquerda com preocupações mais sociais, daqueles que acham que todo o cidadão tem o direito de se deslocar para qualquer parte e de ser acolhido como ser humano. Hoje em dia os dirigentes da Europa não estão a assumir-se nesta matéria da maneira como o deviam fazer. Importa não esquecer os ideais de solidariedade que estiveram na génese da formação europeia, nomeadamente por Jean Monet e outros, que conceberam um movimento de boa vontade entre países, para terminar com os horrores da guerra, mas sobretudo por razões de solidariedade e de entreajuda criando um futuro para os seus países onde os povos pudessem conviver em paz, guiados pelos princípios da justiça e da solidariedade. Actualmente o que vemos é que a Europa está a tornar-se num espaço de conflitualidade, ou pelo menos de mútua suspeição por razão de defesa de interesses mais nacionais do que globais no contexto europeu. 

Sei que preside à União Europeia dos Frades Menores e que em Outubro próximo vão estar em Lisboa num encontro. A questão da emigração na Europa vai estar na agenda?
A emigração é uma das grandes prioridades para a Europa e para o mundo, e tem de ser resolvida e enfrentada de outra maneira, mas entre as entidades com força moral para resolver esta situação está a igreja. Eu pessoalmente presido há 4 anos à União Europeia dos Frades Menores (franciscano de todo a  Europa, que abrange mais ou menos 8600 pessoas), e no próximo mês de Outubro vamos ter em Lisboa um encontro onde será elaborado o documento final do projecto "Franciscano Europa" e um dos pontos principais a abordar é exactamente a nossa atitude perante o mundo emigrante na Europa porque há consciência de que a Europa do futuro vai ser bastante diferente do que é hoje, será certamente muito mais plural tanto do ponto de vista politico como religioso. Para isso é preciso saber criar e ir preparando elos de solidariedade e humanismo entre todos os homens independentemente do posicionamento religioso e politico de cada um.

A crise económica é o aspecto pior da crise portuguesa?
Portugal está a braços com uma crise que começou por ser financeira e já é económica e nalguns casos até já é uma crise social. O problema que estamos a enfrentar é de índole económico-social por motivações indevidas de usura financeira e de ganância com que o mundo se debate. Para tudo estar certo deviam ser as finanças a comandar a economia. Actualmente o problema é que a politica deixou de comandar a economia e esta já não comanda as finanças. Portugal com uma economia muito aberta e muito débil é uma grande vítima desta situação, pelo que o momento em que nós vivemos tanto para os residentes como para os que foram para o estrangeiro, como para os próprios imigrantes, é uma situação que exige uma grande dose de solidariedade. Cada um tem de se assumir e de se responsabilizar por todos e pelo bem comum. O bem de cada um é na realidade o bem de todos e deve ser este pensamento a conduzir as nossas opções pessoais e sociais.

Portugal tornou-se um país pouco solidário?

Temos de começar a organizar a nossa vida com mais trabalho, sentido de poupança e sobretudo sentido de poupança mais racional, estando mais atentos aos nossos vizinhos com aquela solidariedade de proximidade que hoje em dia já nem nas aldeias se encontra. Desde o alimento ao emprego, às vivências pessoais e à saúde de cada um. É preciso estar atento ao outro, a meu ver é essencial para que o mundo volte a ser um mundo de desenvolvimento humanizado e solidário. A não ser assim corremos o risco do mundo vir a perder o caminho por estar a perder os próprios valores.
Existe actualmente uma desorientação generalizada porque as pessoas estão fascinadas a partilhar experiências e coisas secundárias, criando sensações e descurando aquilo que efectivamente é essencial. No caso de Portugal somos um povo que pela própria história nem sempre se soube governar e cuidar dos seus próprios recursos da melhor forma, como a seguir aos descobrimentos. Mas mais do que não nos sabermos organizar também não soubemos ser diariamente solidários nas situações de crise. Os portugueses sabem ser solidários mas não sabem organizar essa mesma solidariedade.
Este é o momento de sermos de novo solidários porque esta crise não é para ter medo nem para estarmos a atirar pedras uns aos outros e por isso é preciso trabalhar com racionalidade. 
Recordo que já nos tempos do nascimento do jornal «O EMIGRANTE», Portugal era um país em crise, e por isso acredito que esta crise vai ser superada. Temos de ser  muito conscientes, muito serenos e sobretudo não se pode perder a alegria nem a esperança...

Crise de valores falta de autoridade das famílias, desencanto dos jovens, tudo isto não o assusta?
Claro que me assusta. Se calhar a palavra assustar não é a que melhor se aplica a um homem sem medo como eu me defino. Mas de facto a nossa sociedade está a reger-se por interesses imediatos com um certo desligar da causa comum. Ora isto é preocupante porque está a acontecer em todos os sectores da vida nacional.

E o futuro?
O futuro, diz-se, a Deus pertence, mas neste caso pertence também aos homens. Penso que o homem tem capacidade para sair destas crises. Repare-se que já há sinais muito positivos, como a consciência dos riscos climatéricos e ambientais, a injustiça da globalização em curso, tudo isto é bastante positivo e abre de novo a porta à esperança. No fundo a humanidade está apenas no principio da sua própria pré-história desde a aprendizagem do sua própria capacidade mental, à interacção dos homens com a própria natureza. Tudo está ainda no princípio e apesar de toda a sua loucura o homem não tem capacidade para destruir o mundo, porque não foi ele que o fez...
José Manuel Duarte
Jduarte@mundoportugues.org

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